verve
Revista Semestral do Nu-Sol-Núcleo de Sociabilidade Libertária Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciéncias Socials, PUC-SP
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VERVE: Revista Semestral do NU-SOL • Núcleo de Sociabilidade Libertaria/ Programa de Estados Pós-Graduados em Ciencias Sociais, PUC-SP. N° 1 (ullíiío 2002 ). Sao Paulo: o Programa, 2002 Semestral
1. Ciencias Humanas - Periódicos. 2.Anarquismo. .3. Abolicionismo Penal. I. Pontilícia Univcrsidade Católica de Sao Paulo, Programa de estudos Pós-Graduados em Ciencias Sociais.
ISSN 1676 9090_CDD300.5
VERVE é urna publicagao do Hu Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciencias Sociais da PUC-SP. Coordenadoras: Lucia M. M. Bógus e Vera L. M. Chaia.
Editor ia
Nu Sol Núcleo de Sociabilidade Libertária. Nu-Sol
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ISSN 1576-9090
revista de a ti ti id es. transita por limiares e instantes arruinadores de liierarquias. riela, nao há dono, chefe, seniior, contador ou programador, verve é paite de urna associagáo livre formada por pessoas diferentes na igualdade. amigos, vive por si, para uns. instala-so numa universidade que alimenta o fogo da liberdade. verve é urna labareda que lambe corpos, gestos, movimentos e fluxos, como ardentía, ela agita liberado es. a tica-me!
verve é urna revista semestral do nu-sol que estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz anarquias e abolicionismo penal.
Algumas Obscrvacóes Provisorias a Rcspeito do Estado Fundado no Amor
A Alte da Amizade Edson Passetti 22
Ocie
Lindares
Equívocos dos Movimentos Sociais Anti-globalizagao
José Mcuia Ferreira Carvalho 75
O-BE-DE-CER: o "abcd" do Principio fia Autoridade, ou da Covardia. Rogétio Nascimento 90
Convereas cora um Abolicionista do Sistema Penal
Entrevista com Louk Hulsm.an 106
Abram as Prisoes, Diapersem as Tropas
A Escola Pública mima Perspectiva Anarquista
Süvio Gallo 124
Escola Droga Guilherme Corréa ¡ 55
Antimilitarismo e Anarquismo Jaime Cubero
Revolta e Ética Anarquista Nildo Avelino
Anatomia da Crise; do Sindicalismo Revo lucio nário ao Colaboracionismo Cooperativista. Alexandre Samis e Renato Rcunos 211
Misterio e Hierarquia
Christian Ferrer 226
Analíticas Anarquistas do Federalismo
RESENHAS
A Dialética da Autoridade e da Liberdade
Visóes do Estado
Andre Degenszajn 264
Luce em Travessias, Memorias e Percursos Anarquistas
Edson Lopes 266
Ousar ser uns
Thiago Rodrigues 269
Estrela de Vestido Azul e Óculos Esculos
Sálete Oliveira 273
amigos, a nossa época nao está doente. nao a torture também tentando curá-la, apresse a sua última hora abreviando-a, e como nao é possível ctirá~la, deixe-a morrer.
Max Stjrner
algumas observares provisorias a respeito do estado fundado no amor
max stirner 1
O "Memorándum" do Baráo de Steiri é umversalmente conhecido. É a esse texto que remonta a opiniáo segundo a qual a época da Reagáo que mais tarde íará a sua aparigáo, ter-se-ia afastado dos principios ai expressos, tendo-se orientado para outra forma de pensar; assim, o liberalismo dos anos 1808, após urna curta duracao, teria socobrado num sono que prosseguiria ainda nos nossos dias. Todavía, pode pór-se em dúvida o pretenso desconhecimento desses principios; mesmo a um oihar superficial deveria parecer surpreendente que tenham sido as mesmas pessoas cheias de energía, que alias se pretende que ostentaram alguns anos antes, ñas circunstancias mais tumultuosas, um espirito liberal, afastarem-se desses principios, sem cerimónia, pouco tempo depois, tomando urna via oposta. Nao se reconheceu finalmente, que a opiniáo durante muito tempo sustentada, segundo a qual a Revolugao Francesa teria sido infiel a si própria devido á mudanga de diregáo que
Ihe foi imprimida pelo imperio napoleónico, assentava apenas num erro e nao nurn ajuizamento superficial? Por que razao nao existiría entre o liberalismo de Stein e o dito período de Reagáo que se seguiu, ura encade-amento semelhante? Nesta perspectiva examinemos de perto o Memorándum de Stein.
Stein, e isto salta ¿mediatamente á vista, tem em comum com a Revolugáo Francesa duas finalidades — a liberdade e a igualdade; trata-se entáo de saber o modo como ele caracteriza urna e outra.
Relativamente á igualdade, ele reconhece que a preponderancia das pessoas favorecidas por privilegios devidos ao seu estado, deveria ser eliminada: para isto precisava-se substituir a multiplicidade dos governos por urna completa centralizagáo. Deveria terminar também essa forma de "vassalagem" que possibilitava a dominagáo dos súditos de um soberano, o rei, por numerosos pequeños senhores: deveria subsistir somente urna forma de vassalagem, universal, que precisamente consoiidaria a deposigáo desses numerosos senhores. As forgas de pollcia privadas também deveriam desaparecer a fim de que apenas urna única policía vigiasse todos súditos. A justiga senhorial, apanágio de alguns senhores privilegiados por antigos direitos, deveria ceder perante urna única justiga, a da monarquía, dependendo os juízes apenas "do poder supremo". Através desta centralizagáo o interesse de todos fica centrado num único ponto: o rei. Doravante, apenas se está submetido a ele, está-se desobrigado de qualquer vassalagem para com outros súditos; está-se sob a dependencia de suas forgas de policía exclusivas. Somente á justiga real cabe pronunciar urna sentenga. Já nao se depende da vontade das pessoas de alto nascimento, mas exclusivamente dos altamente colocados, daqueles que o rei, para realizar o seu querer , introduz em seu lugar e coloca acima das pessoas que eles deveráo cuidar em seu nome ou seja, em suma, os funcionarios. A doutrina da igualdade ta! como se acha expressa no Memorándum equivale portanto a colocar cada um tío mesmo "nivel" de submissáo. Nenhum súdito do rei poderá ser, simultáneamente, súdito de um vassalo. As formas de dependencia, devidas as diferengas de con di cao, seriam assimiladas, tornando-se igual para todos.
É impossível confundir este principio da igualdade corrí o da Revolucáo Francesa. Enquanto esta reclamava a igualdade dos cidadáos, a do Memorándum é a igualdade dos súditos, a submissáo legal. Esta diferenca consegue também exprimir-se de forma adequada no falo de que a "representagáo nacional" invocada pelo Memorándum deve relatar junto do trono os "desejos" dos súditos cujo grau de submissáo está nivelado, enquanto que em Franca os cidadáos tém, expressa por intermedio dos seus representantes, urna vontade, muito embora seja urna vontade de cidadáos e nao urna vontade livre. É que, de direito, um "súdito" náo pode fazer mais do que "emitir os seus desejos".
Em segundo lugar, o Memorándum náo se limita a exigir a igualdade, reclamando também a liberdade para todos. Daí o seguinte apelo: "Cuidai que cada um — é através des las palavras que se exprime a igualdade dos súditos —, cuidai que cada um possa desenvolver livremente as suas forjas numa perspectiva moral". Numa perspectiva moral? Que se deverá entender por islo? Seria erróneo opó-la á perspectiva física já que o Memorándum "visa alcanzar urna espécie moral e físicamente iríais forte". Também só muito difícilmente se poderia excluir da perspectiva moral a perspectiva intelectual, porque se procurava favorecer a ciencia tanto quanto possível. Da forma mais simples do mundo, resta em oposigáo á perspectiva moral, a perspectiva imoral. Ora um súdito só se torna imoral quando sai do círculo das suas atribuigoes. Um súdito que, na vida do Estado, na vida política, pretendesse ter urna "vontade" em vez de emitir "desejos" seria manifestamente imoral, porque na submissáo só subsiste o valor moral do súdito — isto é, na obediencia e nao na livre determinagáo de si. Assim, a perspectiva moral manifesta-se incompatível com urna perspectiva de espontaneidade, com a de uní querer livre, de urna autonomía e soberanía da vontade, e como a palavra "moral" está referida a urna idéia de obrigagáo, ter-se-á procurado despertar o sentimento do dever compreendido como "livre desenvolvimento das suas torgas". Sois livres se fizerdes o vosso dever, é este o sentido da perspectiva moral. Mas em que consiste o dever? O Memorándum <:li-lo em termos claros e precisos através destas palavras, de que se fez urna divisa: "o amor a Deus, ao rei e á pátria". Desenvolve-se livremente numa perspectiva moral todo aquele que se transforme por este amor. Conferia-se assim á educacao urna finalidade bem definida — tornava-se numa edu cacao para a moralidade ou para a lealclade, numa educagáo para o sentimento do dever, a que certamente se deverá acrescentar a educagáo religiosa; esta, ao inculcar os deveres para com Deus, nao passa na realidade de urna educagáo para a moralidade. Sem dúvida é-se moralmente livre desde o momento em que se cumpra o dever. A consciéncia, essa instancia da moralidade, juiz da moral, soberana do homem moral, diz ao homem do dever que ele agiu corretamente: "O que fiz foi-me ditado pela minha consciéncia". Mas que o dever cumpl ido fosse realmente um dever, isso já a consciéncia nao o diz. fíla só fala quando negligenciou o que considera corno tal. Aliás, o Memorándum também recomenda que se desperte a consciéncia, se impregnem os coragoes com o "dever para com Deus, o rei e a pátria", se informe o espirito religioso e que se tenha o máximo cuidado com a educagáo e o ensino da juventude. É com esta liberdade que, segundo o Memorándum, dever-se-ia gratificar o povo: a liberdade do cumprimento do dever, a liberdade moral.
Da mesma maneira que, como vimos acima, a igualdade enunciada era essencialmente diferente da que tinha sido proclamada pela Revolugáo francesa, dá-se o mesmo com a liberdade. A doutrina da Revoluyáo era que só é livre o cidadáo soberano de um povo soberano. O ensinarnento do Memorándum é que só é livre aquele que ama Deus, o rei e patria. Ali, é o cidadáo soberano que é livre, aqui, o súdito fortalecido pelo seu amor; ali, tratava-se de urna liberdade civil e aqui, de urna liberdade moral.
E aliás o principio dessa igualdade e liberdade, igualdade na sujeigáo e liberdade moral, náo era apanágio exclusivo dos redatores do Memorándum, porque correspondía ao sentimento prevalecente em todo o povo. Foi com apoio neste principio novo e entusiasmante que se investiu contra a dominagáo napoleónica. Eram a liberdade e a igualdade revolucionarias tornadas cristas. Numa palavra, este foi o principio do povo alemáo e, em particular, do povo prussiano, desde a sua sublevagáo contra a potencia estrangeira, durante o periodo dito de Rcacao ou de Restauragáo até..., bem, até que acabe! Deverá também rejeitar-se, por falsa, a opiniáo segundo a qual teria sido urna necessidade de liberdade política idéntica á da Revolugáo que conduziu o povo á vitória sobre Napoleáo. Se o seu principio tivesse sido político, o povo náo o teria abandonado ou náo consentiría no seu enfraquecimento. É indevidamente que se imputa ao governo a responsabilidade de ter retirado ao povo algo porque este aspirava conscientemente. Abstraindo de que semelhante subtragáo é impossível, acontece que o governo e o povo estavam realmente de acordo em se defenderem contra a liberdade política, esse "aborto da revolugáo" Issoexigiu de Frederico Guilherme III tanta dedicagáo e amor que este acabou por ser, por- assirrr dizer, a encarnacáo acabada dessa liberdade moral, de tal modo que foi, integralmente, um homem do dever, um homem consciencioso, "o justo"!
Como vemos, o amor ao dever está no centro da liberdade de moral. É costume conceder, e com razáo, que o cristianismo, em conformidacle com a sua esséncia iríais auténtica, é a religiáo do amor. A liberdade moral, que se resume a um mandamento — o amor, será portanto a realizagáo inais pura e consciente do cristianismo. Arpíele que só tem amor atinge o supremo, o verdadeiramente livre, tal é a proclamagáo do evangelho da liberdade moral. Mal esta convicgáo desponta coragoes para os repletar com a beatitude da verdade triunfante, a forga do déspota será inevitavelmente demasiado ínfima para se opor ao poder de semelhante sentimento e assim, o cristianismo, na mais elevada transfiguragáo da sua envergadura moral, como amor, avanga inflamando os povos e certo da sua vitória, contra o espirito da Revolugáo. Esta pretenderá apagá-lo da superficie da térra, mas ele reergueu-se com toda forga da sua natureza e entrou na liga contra ela, como amor. Seja o que for que do cristianismo foi derrubado pelos golpes da Revolugáo, o amor, a sua esséncia mais auténtica, permaneceu acoitado no coragáo da liberdade revolucionária. Esta alimenta va o inimigo no seu seio e tinha necessariamente que sucumbir quando ele acatou também do exterior.
Todavia, aprendamos a conhecer um pouco melhor este inimigo da liberdade revolucionária. Costuma-se opor o egoísmo ao amor porque está na natureza do egoísta o agir sem contemplagóes e sem piedade para com os outros. Se postularmos que o valor do homem estaría em ser determinado por si mesmo e em nao se deixar determinar por urna coisa ou urna pessoa alheias, sendo antes o seu próprio criador, englobando assim, num só, o criador e a criatura, é indubitável que o egoísta é o que está mais afastado da finalidade crista. O seu principio enuncia-se assim: as coisas e os homens estáo aquí para mim! Se ele pudesse acrescentar: e eu também estou aquí para eles, entáo já nao seria inteiramente um egoísta. A sua única finalidade é a de se apoderar do objeto do seu desejo e no seu ardor perseguirá, por exemplo, umajovem para seduzir... essa "coisa" adorável (pois, para ele, esta náo passa de urna coisa). Tornar-se outro homem, fazer de si alguma coisa para merece-la é algo que nem Ihe passa pelo espirito: ele é como é. E o que precisamente o torna táo desprezivel é que náo se possa descobrir nele nenhum desenvolvirnento, nem nenhuma determinagáo de si.
Bem distinto é o amante. O egoísmo náo muda o homem, mas o amor transforma-o "Desde que ama tornou-se urna pessoa totalmente diferente", costuma-se dizer. É que, ao amar, ele faz de si qualquer coisa, destruindo nele tudo o que contradiz a amada; com a sua anuéncia e até com abandono, ele deixa-se determinar e, transformado pela paixáo do amor, conforma-se ao outro. Se no egoísmo os objetos náo estáo aqui para mim, no amor eu estou aqui para eles: nós somos um para o outro.
Deixemos, contudo, o egoísmo entregue ao seu destino e comparemos ao invés o amor com a determinagáo de si ou liberdade. Através do amor, o homem determina-se, confere-se certas características, torna-se o seu próprio criador. Somente faz tudo isto tendo em vista um outro e náo a si mesmo. A determinagáo de si está ainda dependente do outro: ela é simultáneamente determinagáo pelo outro e paixáo: o amante deixa-se determinar pela amada.
Pelo contrario, o homem livre náo é determinado nem por um nem por outro, mas puramente a partir de si. Ele "escuta-se" a si próprio e encontra nessa "escuta" de si o impulso para se determinar: "escutando-se" somente a si, ele age como um ser fundado na razao livre. Há urna di fe renga entre aquele que se deixa determinar por um e aquele que é a origem das suas próprias detenniiiagóes, entre um homem repleto de amor e o que se funda na razáo. O amor vive segundo a máxima de que cada um aja tendo em vista o outro, e a liberdade segundo a máxima que cada um aja tendo a si mesmo em vista. Na primeira, é o respeito por outrem que nos faz agir, na outra, obedego ao meu próprio impulso. O homem amante age por amor a Deus, por amor aos seus irmáos nao tendo, regi a geral, nenhuma vontade própria. "Que seja feita, nao a minha vontade mas a tua", é esta a sua fórmula favorita; o homem de razao nao quer realizar nenhuma outra vontade que nao seja a sua e concede a sua estima ao que obedece á sua vontade pessoal, e nao ao que segue a de um outro. Assim, o amor pode perfeitamente ter razao contra o egoísmo pois é mais nobre fazer a vontade de outro que a sua própria e, realízala do que deixar-se aguilhoar, sem vontade, pela avidez excitada diante da primeira coisa aparecida. É mais nobre deixar-se determinar por outro do que simplesmente nao se determinar, deixando-se ir. Mas contra a liberdade o amor nao tem razao porque é somente nela que a determinagáo de si acede á sua verdade. O amor é decerto a mais bela e derradeira repressáo de si, a forma mais gloriosa de se aniquilar e sacrificar, a vitória sobre o egoísmo mais culminante em delicias; mas ao despedagar a vontade própria obstaculiza ao mesmo tempo a própria vontade que é, para o homem, a fonte primeira da sua dignidade de ser livre. É por isso que no amor deveremos distinguir duas coisas. Em com para cao com o egoísmo, o homem celebra no amor a sua glorificagáo, porque o ser amante, se nao tem vontade própria, demonstra pelo menos vontade, diferentemente do egoísta. Ele determina a si mesmo porque faz de si alguma coisa por amor ao outro e porque se metarmofoseia na forma que mais lhe convém; por seu lado, o egoísta ignora qualquer determinagáo, permanecendo no seu estado grosseiro e em nenhum grau se torna seu próprio criador; o homem amante é criagáo de si mesmo pelo fato de se buscar e achar no outro, enquanto o egoísta é um produto da natureza, urna pobre criatura que nao se busca nem se acha. Mas como se manifesta o amor perante a liberdade? A Noiva de Corinto pronunciou estas palavras que nos desvelam o crime horrível que ele comete contra a liberdade:
"Aqui as vítimas caem
Náo sao nem cordeiros nem touros,
Mas vítimas humanas, Oh, coisa inaudita!"
Sim, coisa inaudita, sao vítimas humanas! Porque aquilo que antes de mais nada faz de um homem um homem é a vontade livre; o amor, montado ñas costas do cavalo, ao declarar que o seu reino é a única fonte de beatitude, o terrago iluminado pelo relámpago, proclama a soberanía da privagáo da vontade.
Como nem tudo se pode dizer erri qualquer época, detemo-nos aqui e remetemos para circunstancias mais favoráveis á exposigáo pormenorizada das manifestagoes do Estado fundado no amor2. Por todo lado tropegaremos entáo no principio de que o homem submetido ao amor náo tem vontade, só tem desejos para exprimir, e veremos quáo profética era essa grande sentenga do governador de Berlim, o conde de Schulenburg: a tranqúilidade é o primeiro dever dos cidadáos! Nos bracos do amor repousa e dorme a vontade e só os desejos e petigóes estáo de vigilia. Mas náo há dúvida de que um combate ainda perpassa nesta época arregimentada pelo amor: é o combate contra as pessoas sem amor. Como o entendimento é a esséncia do amor, como os príncipes e os povos estáo unidos por ele, é preciso excluir tudo o que tende a desmanchar essa alianga: os descontentes (Demagogos, Carbonários, as Cortes em Espanha, os Nobles da Rússia e da Polonia). Eles perturban! a conñanga, a abnegagáo, a concordia, o amor; essas "cabegas quentes" turvam a tranqúilidade suscitadora da confianga e a tranqúilidade é o primeiro dever dos cidadáos.
Nota
1 Valeria a pena fasé-lo porque é a forma mais acabada — e a última — do
Estado (Nota do autor).
Um homem maduro, após dedicar muitos anos de sua vida atuando diretamente ao lado dos governantes, ao ser desalojado de suas tarefas, toma a iniciativa de escrever dois estudos normativos sobre a soberanía e os encaminha a potenciáis governantes. Esse homem foi Maquiavel. Pensava na unificagáo da Itália, extraindo dos estudos sobre a antigüidade e das suas experiencias na diplomacia urna gramática do poder centralizado. Ao soberano, governante legítimo do povo num territorio, caberia zelar pela sua conservagao no governo protegendo as pessoas sob seu comando e buscando unificar as armas para garantir novas conquistas. Para a seguranca de todos, o soberano precisa ser amado e temido pelo povo. Se por ventura tiver de fazer urna escolha, nao deverá duvidar: é preferível ser temido a amado.
No mesmo século XVI, um jovem, chamado Etienne de La Boétie, investe radicalmente contra a figura do soberano centralizado, o UM. Num territorio unificado como
Professoi no Departamento de Política, no Progiama de Estudos Pós-
Graduados em Ciencias Sociais e Cooidenadox do Nu-Sol.
o da Franga, levanta a seguinte questáo: por que escolhemos servir voluntariamente a um soberano? Para respondé-la, náo se volta para o humanismo renascentista em busca das fonnas da antigüidade ou de uma historia da origem da servidáo voluntaria. Sua preocupagao é ¡mediata e trans-histórica. É preciso mudar.
Maquiavel via os costumes como fonte de referencia para a unificagáo em torno da figura do governante centralizado do Estado moderno. Procurava encontrar meios para afirmar uma reforma italiana e acabava por fazer de O príncipe e Comentarios sobre a primeim década de Tito Lívio — ambos escritos simultáneamente, no exilio, em 1513 — duas referéncias obrigatórias para a ciencia política. La Boétie, publicava "A servidáo voluntária", agitava os acomodados e marcava uma descontinuidade. Era preciso pensar e agir para mudar os costumes. Diante da unificagáo pelo alto, por parte do soberano, propunha a associagáo por baixo, por meio da associagáo de amigos, dissolvendo a hierarquia. Diante da maturidade de Maquiavel e da política moderna emerge, simultáneamente, a juventude e a radicalidade de La Boétie, apostando em novos costumes vivenciados corno crianga a partir do momento em que cada um disser náo ao soberano. Para o sim do povo ao governante, de Maquiavel, um náo afirmativo dos súditos para abolir esta condigáo, de La Boétie.
Educar as criangas para a liberdade é o tema do ensaio XXVI do livro I escrito por Montaigne. Curiosamente, é o escrito que praticamente arrtecede aquele muito conhecido, dedicado ao amigo La Boétie e á amizade, o de número XXVIII. A curta e incisiva rellexáo estoica de Montaigne, fala de uma educagáo livre voltada para o corpo e o espirito na mesma grandeza, na qual o instrutor náo busca um discípulo, mas uma amizade. Á sua maneira, o ensaísta francés se opunha á consagragáo do soberano na casa, na escola, no exército, no comando do trabalho. Sua delicada e contundente visáo das coisas náo dissociava o homem dos animais e meio ambiente. Havia, como há, milito a aprender com a natureza por sermos parte déla e nao seus domesticadores.
A contestacáo ao UM e a educagáo de changas evitando a prática moderna mais eficiente da soberanía — pela ameaga e o exercício do castigo —, tornou a dianteira ñas análises críticas empreendidas pelos anarquismos desde William Godwin, no final do século XVIII. Proudhon, em seu muito criticado e pouco lido Filosofía da miseria., encerra o livro afirmando ser impossível pensar em igualdade sem estética. Ela é a base do novo mundo da liberdade que se constrói diutumámente lutando contra o soberano onde quer que ele se encontre, da casa ao Estado e em sentido contrario.
Na passagem da primeira para a segunda parte do século XIX — muito antes do anarquismo se tornar um grande movimento social capaz de desestabilizar o Estado, como na Comuna de París — em Berlim, um jovem professor, chamado Meix Stirner, após urna serie de escritos para publicagoes locáis, dedica-se a escrever um longo e único livro, chamado, precisamente, O único e sua propriedade. Para ele a educagáo das criangas dependia de um distanciamento radical tanto do humanismo como do realismo advindo com a descoberta da utilidade dos corpos. No opúsculo O falso principio de riossa educara o, dedica-se a opor saber a vontade e a encontrar na crianga nao o lugar de investimento em libertagáo, mas o principio da liberagáo. Interessava-Ihe um pensar crianga que viesse a se opor ao casamento indissolúvel entre fé e razao celebrado pelo Estado moderno. Ao declarar-se livre da religiáo, este nada mais teria feito que consagrar a sua proliferagáo e substituí-la pela razáo científica. Diante dos soberanos ou de solugóes para a sociedade como identificavam as propostas de Proudhon, Stirner prefere associagóes livres, formadas por individuos livres educados para serem livres para si e nao para a sociedade.
Desta maneira, o percurso que seguiremos vai da maturidade do adulto, seu saber continuo e civil iza torio, normativo e adestrador de Maquiavel, ájuventude de La Boétie e sua aversáo ao UM buscando afirmar a soberanía do individuo, para chegarmos ao pensar crianza de Stirner como forma de afirmagáo de um Único diante de todos, muitos ou seletos grupos. Neste percurso, nos encontraremos com um duplo fluxo. De Maquiavel procede a crenga e a afirmacao do Estado moderno laico e racional de cuja centralidade depende nossas vidas, assim como a continuidade das relagóes de soberanía pela sociedade, por meio dos costumes favorecem as reformas necessárias para a conservagáo. O grande tema daí derivado é o da amizade entre os povos, coisa somente possível por meio de tratados que celebrara a paz temporária. A centralidade do poder e a amizade entre os povos confirmam a guerra como mote da vida. De La Boétie a Stirner procede um outro fluxo, heraclítico, que se volta para a vida livre com base na amizade associativa, maneira pela qual somos capazes de inventar a vida, um povo, por meio de miríades de associagoes.
Contudo, daí jorra um terceiro fluxo e, possivelmente, outros mais. Ele diz respeito a nogáo de poder de Maquiavel como forgas em atuagáo que náo dáo descanso ás utopias e que alimentaráo a filosofía crianga de Nietzsche: guerreira sem ser destruidora fazendo aparecer o amigo como o melhor inimigo. Vem de Nietzsche um caudaloso rio que lambe riachos e se embebeda de outras águas, um ato sem descanso repleto de desassossego. Entáo, se alguém imaginava que esta reflexáo iria desembocar na mera oposigáo entre soberanía e autonomía individual, já deve ter reparado que se equivocou.
Ame e tema seu príncipe em nome do povo e de sua vida
Somos invejosos e dispostos a agir com perversidade. É assim que os escritos sobre política e numerosos exemplos históricos orientam Maquiavel a constatar que os homens sornente fazein o bem quando necessário. Na maior parte do tempo, nao vaciiam em caluniar. "Os povos que receberam sua liberdade sao mais atrozes na sua vinganga do que povos que nunca foram livres"1. Agimos por necessidade ou escolha e a coragem brillia mais intensamente quando a escolha é livre. Nada é permanente ou estável. As coisas sempre mellioram ou pioram, exigindo esforgos dos homens para conservarem o que conquistaram. É preciso o governo e este deve sempre manter-se cheio de vida mesmo depois da morte do governante.
Nada é mais inconstante que a multidáo. Abandonada aos próprios impulsos ela busca o tirano como forma de superagáo do caos momentáneo. Somente a República, segundo Maquiavel, traz o sentimento de igualdade entre os homens, diferentemente do principado governando por urna aristocracia que vive no ocio. O príncipe, preferivelrnente, deve ser sempre um republicano.
Os legisladores sabios escolhem sempre urna forma mista de governo. Maquiavel se distancia da tipología descendente dos regimes elaborada por Platáo, que vai da monarquía degenerando em aristocracia e culminando em democracia. Assume, também, posigáo equidistante de Aristóteles que elabora as degeneragóes sendo correlatas aos melhores regimes hierarquicamente dispostos. Á monarquía corresponde a tirania, á aristocracia a oligarquía e á democracia a permissividade, também redimensionada mais tarde, por Rousseau, como oclocracia. Segundo o autor florentino, "se o príncipe, os aristócratas e o povo governarn em conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente."2. Entende-se porque na abertura de O príncipe irá afirmar que para conhecer a natureza dos povos é preciso ser príncipe e para se conhecer a natureza do príncipe é preciso ser povo. A relagáo governante/governados é urna relagáo de mando e obediencia estabelecida por cada um dos polos e desta unidade depende a realizagáo do desejo natural de conquista e as suas respectivas conservagoes.
Uma boa república depende de sorte e disciplina (militar, religiosa e das leisj para que sua conservagáo seja garantida por meio da expansáo de territorios. Um bom governo republicano (Roma) cuida do seu povo em qualquer lugar. Investir contra o Estado, por conseguinte, é uma agáo pela qual os agentes náo desconhecem o exercício do castigo. A punigáo por meio de leis, mesmo injustas, náo causa desordem á república. É preciso conter as paixóes no povo porque sao agenciadoras de interesses de terceiros capazes de trazer um perigo maior. É preciso saber governar para evitar as calúnias. O bom governo deve estar aberto as denúncias. Desta forma, evita a aplicagáo ¡mediata de castigos, reforga as leis, infunde o temor e inibe o crime. Todos devem saber a todo instante que o interesse do povo está acima de tudo.
Maquiavel classifica os que sao dignos e os que merecem infámias. Os primeiros sao por ordem hierárquica: os chefes e fundadores de religioes, seguidos dos fundadores de repúblicas e reinos, os chefes de exércitos, os letrados e o número infinito de homens que meregam elogios por sua arte e profissáo. Os indignos maiores sao os destruidores de religioes, seguidos dos que permitem as repúblicas e reinos que Ihe foram confiados se perderem em tiranías, dos inimigos das virtudes e das letras e, enfim, dos impíos, furiosos, ignorantes, covardes, ociosos e inúteis. Notava, ainda, que a república deveria manter as religioes e as instituigóes religiosas separadas do Estado, contudo, ressaltando suas importáncias, pois délas depende o Estado para obter a confianga dos soldados diante da guerra. A confianga gera, quase sempre, vitória.
O povo náo suporta viver sob a lei de outrem, mesmo que este o tenha libertado. A minoría dos libertos se levanta pretendendo assumir o comando, enquanto a maioria exige vi ver em se gu ranga. Em O principe, Maquiavel, deteve-se longamente sobre as forma da conquista. Os libertos em sua maioria aderiráo, de imediato, ao príncipe libertador por supor que melhoraráo de vida. Contudo, o príncipe deve tornar cuidado com aqueles que se sentiráo ofendidos e os que o apoiaram na empreitada. Oferecer liberdade a um povo que compartilha a mesrna língua é urna agao mais eficiente se conseguir eliminar a linhagem do antigo príncipe, recomendando-se nao alterar os impostes e leis consideradas justas pelo povo. Mas se o principado conquistado tiver leis e costumes diferentes, as dificuldades seráo maiores, seja trazendo ao povo liberdade ou submissáo. É preciso que o príncipe vá ali residir ou instale colonias, a forma mais barata por evitar gastos com forgas armadas e ofensas suplementares aos conquistados (os únicos prejudicados seráo aqueles que cederáo térras e moradias aos conquistadores). Os súditos veráo uestes gestos mais razao para amá-lo e temé-lo. Portanto, é preciso prudéncia para ganhar a adesáo da maioria que apenas cleseja viver em seguranga. Nada de cercar-se de autoridades locáis ou estrangeiros poderosos. É conhecendo os males com antecedencia que se evita a protelagáo. Um bom príncipe deve ser inovador, prudente, imitando os grandes conhecidos pelo povo e possuir fortuna.
Conquistar para conservar exige que o príncipe se assegure contra os inimigos; venga pela forga e astucia; seja amado e temido pelo povo; seguido e respeitado pelos soldados; capaz de extinguir todos aqueles que possam ofendé-lo. Ele deve ser um renovador de antigas instituigóes por meio de novas leis; mostrando-se ao mesmo tempo severo e grato, magnánimo e liberal. É imperativo dissolver toda milicia infiel. Para manter a amizade de reís e príncipes deve certificar-se que estes seráo solícitos no beneficio e temerosos se ofendé-lo. Maquiavel consegue apanhar ao mesmo tempo as relagóes territoriais do Estado moderno e as relagoes internacionais.
Sublinha em Comentários..., que a corrupgáo e a inaptidáo para viver em liberdade decorre das desigualdades introducidas no Estado. Para postular um cargo no Estado o cidadáo de ve na, anteriormente, ser considerado digno. Mas a realidade nada tem a ver com o ideal. A decadencia dos costumes faz com que os cargos de magistrados sejam postulados pelos mais poderosos e náo pelos mais virtuosos. Maquiavel está atento ás exigencias da burocracia moderna, sua impessoalidade como forma de dar continuidade ao Estado, ou seja, adianta-se em mostrar a necessidade do Estado ser o proprietário de seus meios materiais de gestáo. Ele quer uma burocracia limpa e para manté-la nesta condicáo é fundamental a institucionalizagáo da demencia. Entretanto, esta só se torna possível e digna na medida em que o povo se veja livre e acima de tudo seguro na polis ou na colonia articuladas por uma cid adama que dá os mesmos direitos em territorios distintos. O governante depende da burocracia para levar a cabo as reformas que evitem na sucessáo que príncipes vigorosos sejam substituidos por fracos.
Ao lado da burocracia, o príncipe necessita um exército próprio e forte, tremando os cidadáos como soldados.3 Uma ditadura nem sempre é um mal; o é quando deixa de ser urna delegagáo temporaria perra se caracterizar como usurpagáo. No primeiro caso é de curta duragáo e restauradora. No segundo, é devastadora, provocada por maldade do príncipe ou por favorecimentos aos conterráneos, náo necessitando de muitos méritos, apenas da astúcia do demagogo.
A conservagáo de uma república exige a anexagáo de territorios, um império. Para se manter no governo, o príncipe deve realizar os beneficios gradualmente e executar medidas punitivas e de restrigáo de uma só vez. Deve ser amigo ou conquistar a confianga do povo. Segundo Maquiavel, o povo deve devotar a amizade ao príncipe ou ele fracassará (pelas ameagas externas ou internas). Na verdade, o príncipe depende da fidelidade do povo. Este é o sentido que o autor atribui á amizade entre povo e governante. É preciso ser fiel. Nao precisamos nos alongar. A fidelidade supóe trapazas tanto no ámbito da burocracia civil como militar, fomentando possíveis ditaduras, na mesma medida em que supóe traigáo. O traidor do príncipe pode ser entáo, tanto da ordem interna do governo como exterior a ele. O Estado moderno será sempre guerra.
Segundo Foucault, a guerra nao é um prolongamiento da política por outros meios, mas ao contrario, a política é guerra prolongada por outros meios.4 Está no interior como guerra civil antes de qualquer confronto com outros Estados. Amigos e inimigos interna e externamente dependem das circunstancias. Por isso mesmo, Maquiavel defenderá o temor do povo ao príncipe como virtude primordial do príncipe.
Amar supóe fidelidade, trapagas e traigóes, odio, um valor que se apresenta altruista para realizar seus interesses mesquinhos e misteriosos. O amor ñas religióes é o espelho do amor ao Estado. O amor pelo pastor é o mesmo que o amor pelo pai ou governante. Quem sabe o que é o amor é o soberano esteja ele no governo, em casa, na escola, ñas fábricas, ñas empresas. O amor é um valor que vem de fora para sufocar as paixóes, domesticar os impulsos, dar sentido á liberdade. Maquiavel sabe de tudo isso.
O príncipe deve se rnanter sem a ajuda de terceiros. Para possuir exércitos próprios é preciso além de homens devotos, dinheiro. Quando nao se tem condigoes materiais necessárias deve-se evitar o combate em campo aberto com o inimigo e fortificar suas muralhas, o que supóe capacidade de infundir no povo a idéia de inimigo cruel.
Um bom Estado deve possuir boas leis elaboradas por legisladores sábios, sob a forma mista de regime e boas armas. Para conservar o governo, o príncipe tradicional ou moderno, deve aprender a ser man e prudente. Os seus defeitos ele deve saber utilizá-los ao sabor das situagóes. Vicios e virtudes, segundo as situagóes trocara de sinais, para trazerem seguranga. Para precaver-se de calúnias o governante eleve evitar demonstrar suntuosidade ou avareza. Ele deve saber ser parcimonioso. Contudo da mesma maneira como o autor lida com a relagáo amor-temor, entre a suntuosidade e a avareza o governante deve preferir demonstrar ser avaro. O povo deve desejá-lo piedoso e cruel, o que lhe exige cuidados para nao ultrapassar a linha do temor e passar a ser odiado, uma precaugáo relativa ao sentido do próprio amor. O temor implica uso de lei e forga, a ameaga do uso do castigo físico ou nao por meio da lei como prevengáo geral.
O bom príncipe nao pode ser, deve aparentar ser car id oso, fiel, humano, religioso e íntegro. Ao mesmo tempo deve ter clareza ñas decisóes para evitar a ira dos estrangeiros, manter a estabilidade interna e evitar conspiragóes. Nao pode descuidar de criar grandes empreendimentos, ser um exemplo, obter fama de grande homem e sempre ser verdadeiramente amigo ou inimigo, ou ainda, jamais deve se mostrar neutro ou estabelecer alianga com outro príncipe mais poderoso. A prudencia faz do príncipe alguém capaz de introduzir uma novidade como se fosse uma tradigáo. Deve fomentar entre o povo festas e espetáculos com a mesma prudencia que utiliza na escolha dos ministros (estes devem sempre pensar no príncipe e nao ern si mesmos) para honrá-lo e enriquecé-lo. Há uma nova precaugao relativa á burocracia. O príncipe deve evitar os bajuladores: um príncipe se aconselha quando quer e nao quando os outros pedem. Enfim, o príncipe deve preferir ser impetuoso a circunspecto.
Segundo Maquiavel, um governante deve ser amado e preferencialmente temido pelo povo e ter na prudencia a sua principal virtude, ao lado, é claro, da sorte. Para bem governar é preciso ser um inovador. Sao as reformas que dáo continuidade aos governos modernos. É preciso manter os costumes ajustando-os gradativamente, criandoa sensagaoque cada gesto inovadoré uma tradigao reescrita. O povo espera boas leis e boas armas, isto é certo. Mas só é possível saber se as leis e as armas sao boas se elas inspiraren! seguranza. Para isto existe Estado, porque somos incapazes de nos sentir seguros sem um soberano que nos mostré os valores corretos, as boas leis, e nos introduza gradativamente nos costumes e numa tradigáo que já existe antes de eu nascer e que deve perpetuar-se depois de minha morte. É preciso seguranza para haver liberdade!
Cuida-se do povo e do territorio, das novas conquistas anexadas, das colonias ai instaladas, dos cidadáos livres, por meio de uma legislagáo elaborada por homens sábios, o que modernamente pode ser definido como os competentes dentro da racionalidade legal e legítima. Um povo é o que o Estado agrupa, organiza, define e controla. Náo é uma abstragáo, é apenas o produto de um determinado entrevero de forgas em constante atualizagáo, porém dirigidas para a continuidade do soberano, da autoridade central. Religiáo e Estado, sorte e privilegios, senhores e súditos, sao elementos constantes que expressam as virtudes das torgas em combate. Náo há relagóes apartadas da simultaneidade entre vicios e virtudes. A moral do governante é a moral do Estado, sem ela náo há ética. O Estado moderno requer a continuidade da antigúidade, um humanismo na forma, uma afirmagáo de origem religiosa e de chefias abragadas para criar seguranga entre os súditos. Oremos e devenios crer nisso. Náo pode haver vida fora do Estado e de toda e qualquer relagáo fundada na autoridade centralizada. Maquiavel pretendía ver apenas como uma gramática do poder se afirma a partir da autoridade centralizada. Nisso nos legou livros normativos que servem a gregos e baianos. Eu só existo mediante o Estado exercitando uma liberdade que se funda na prevengáo geral para a manutengáo dos governos.
Foucault mostrou em "A govemamentalidade" que nesta época uma vasta bibliografía abordava as relagóes de poder segundo o movimento ascendente e descendente em relagáo á soberanía política. Para ser um bom soberano se exigia nao apenas as virtudes do príncipe na condugáo do governo, mas também na casa e na economía. Contudo, este discui-so acabou sendo interceptado pelo contratualismo. As relagóes de poder como torcas instituidas a partir da centralidade da autoridade como protegáo ao território descritas por Maquiavel, coloca modernamente, e em poucas palavras, a possibilidade de vida a partir de uma relagáo de seguranga que a autoridade central cria. Sem ela, nao é possível existir ordem.
Deixando de lado os efeitos consensuáis de poder decorrentes do exercicio do soberano que supóe adesáo, ameaga de punigáo e omissáo, legitimando o exercicio legítimo da forga repressiva, um outro discurso anti-Maquiavel também se afirma corno forga e encontra em Etienne de La Boétie um dos seus formulad ores. Tratase do discurso libertário que ganhará projegáo como anarquismo a partir do século XIX. É um discurso ao mesmo tempo anti-Maquiavel, mas também avesso á govemamentalidade ou, se quisermos, que apanha a ambos como formas de continuidade do UM.5
Há um infortunio que nos atinge: é o de estar sob um ou mais senhores sern possibilidade de certificarmo-nos que eles sejam bons, apenas de que tém o poder para fazer o mal. Por que, entáo, preferimos tolerar- o tirano a contradizé-lo? Estamos enfeitigados? Diante da fortuna do príncipe de Maquiavel, La Boétie opóe o infortunio dos súditos e sua imobilidade diante desta condigáo de servidáo voluntaria. Sen timo-nos ñus diante da possibilidade de nao obedecermos ao soberano e, por isso, nos deixamos dominar. Precisamos da liberdade do soberano. Perdé-ia é estar a mercé ele uma serie de males. Devenios obediencia. Pouco importa se diante da situagáo na qual o governante se aprésenla como amigo, este a qualquer instante possa fazer o mal.6
Para La Boétie náo é preciso guerrear para ser livre, basta náo servir mais ao soberano. Elaborando um vetor no sentido inverso de Maquiavel, náo está mais em discussáo maneiras pelas quais os súditos podem desestabilizar um soberano, mas a afirmacao de outras existéncias alheias ao príncipe e capazes de anular o sentido da autoridade centralizada. Náo é por meio da política e da guerra que se encontra liberdade ou garantías de vida. O ato de pronunciar-se contra o Um instituí outras possibilidades de vida. Diante da política e da sociedade, La Boétie insinúa a vida em associagóes livres de amigos que pelas suas próprias existéncias inibem, até anular, a pertinencia do soberano e da autoridade centralizada. O autor está interessado em mostrara liberdade do soberano de si diante do soberano sobre todos nos.
O que teria levado ao enraizamento de nossa vontade de servir, esta vontade de ser súditos, de assujeitar-se, de criar entre nós esta condigáo de reprodugáo do soberano para além de sua existencia?
Segundo La Boétie, os direitos de natureza nos mostram que somos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos á razáo e, portante, servos de ninguém. Na natureza náo há servidáo, mas uma liberdade que nos indica um governo de irmáos, de companheiros, que náo desconhece a diferencia de talentos e de estruturas físicas e incentiva a ajuda e o recebimento de ajuda.7 La Boétie náo se propóe a encontrar o momento histórico em que um mau-encontro apareceu para desnaturalizar o homem. Como bern notou Pierre Clastres, em "Liberdade, raau encontro, inominável", o problema abordado pelo jovem La Boétie é trans-histórico, liberto de territorialidade social e política. A sociedade que serve ao soberano é histórica, náo é eterna, nem sempre existiu. Algo se passou para que o homem passasse da liberdade para a escravidáo. Para Clastres, o nascimento da historia é acidental e coincide com o nascimento do Estado, perda da liberdade na resignagáo e amor á servidáo4. Náo espere de La Boétie um tratado psicológico, ele está interessado em mostrar uma mecánica, nao havendo, portanto um deslizamento progressivo da liberdade para a servidáo. O nascimento da historia é fruto de um raau encontro.
Há trés tipos de tiranos. Os que obtém o reino por eleigáo do povo (democracia), pela forga das armas (ditaduras) e por sucessáo de sua raga (monarquías). Mesmo com di fe rengas a respeito dos meios, eles geram maneiras semelhantes de governar. É preciso obediéncia para conter aqueles a serem domados, as presas de guerra e os escravos naturais. Qualquer forma de governo centralizado é, portanto, uma tiranía. Daí decorre tanto uma aversáo ás tipologías de Platáo e Aristóteles, como á prescrigáo do governo misto de Maquiavel ou ainda suas respectivas justificativas para ditaduras. Diante da veracidade das proposigoes herdadas da antigúidade, La Boétie introduz uma outra vontade de verdade proveniente de um sujeito avesso ao assujeitamento naturalizado pela servidáo voluntária.
O assujeitamento para La Boétie9 exige uma outra coisa. Eles precisam de ilusáo ou de serem forgados a algo: nascidos sob ojugo, educados sobo jugo, os hornens se conformam. Sob a tiranía, as pessoas se tomam covardes e efeminadas, fracas. Os costumes sáo a primeira razáo da servidáo. Neste sentido, seria precipitado apenas opor La Boétie a Maquiavel, ou seja, diante da inevitabilidade do soberano para um, a negagáo do mesmo para o outro. O percurso é mais acidentado. Para la Boétie está em jogo reverter a tradigáo dos costumes, desnaturalizá-los da obediéncia, operar existéncias de associagoes de amigos que anulam a falsa amizade no interior dos governos e entre E stados que é fomentadora de guerras, rodízios de governantes e perpetuagáo da condigáo de súdito. Mesmo porque para
La Boétie tu cío isso depende de uma vontade voluntaria dos súditos para que isso acontega e nao somente da prudencia do príncipe.
O tirano teme a todos, afirma La Boétie, invertendo a máxima de Maquiavel. Há um perigo rondando o príncipe advindo dos próprios súditos. Caso nao houvesse o temor dos súditos pelo príncipe jamais existiriam leis e armas para se governar a todos, O argumento nao se escuda na justificativa que entre os súditos haverá sempre aquele que postulará a soberanía do príncipe. O autor vai mais longe. O príncipe precisa ser temido nao apenas porque outros possam postular o cargo — solugáo que a democracia encontrou para pacificar esta forma de i uta institucionalizando o conflito —, mas porque também vive o risco de ter a autoridade centralizada contestada. No limite, diante da democracia e da necessidade de ela compor formas mistas de governos, encontra-se o risco da revolta pacífica, aquela na qual se diz apenas náo.10 Depreende-se de La Boétie que qualquer revolugáo nada mais cria do que a restauragáo cía autoridade soberana superior.11
O tirano necessita de um anteparo que é a religiáo. Toda autoridade soberana exige devogáo. Portanto, quem governa precisa de obediéncia, servidáo e devogáo. É bom lembrar, diz La Boétie, que o povo náo acusa os governos, mas os governantes, e dessa maneira exige substituigóes e reformas constantes.
O tirano náo é amado nem ama o povo; ele o teme. Desta maneira, por dentro do territorio ou ñas relagóes com outros Estados náo há amizade que náo esteja baseada na diplomacia externa ou no reconhecimento da autoridade dos governantes, maneiras para a realizagáo do prolongamento dos estados de paz. É preciso uma paz precaria e uma ilusáo de paz perpetua que cada governo instaure e que cada súdito aspire. Náo há Estado sem religiáo, trata-se de um casamento indissolúvel na Terra, aínda que La Boétie imagine que o amor a Deus possa ser uma maneira de estancar a violencia, como se houvesse uma existencia para religiáo monoteísta dissociada de Esleído12. Seráo os costumes inventados pelos que dizem náo ao soberano e se associam, que daráo conta de equacionar esta e outras questoes que se respondem por meio de novas perguntas. Apenas é certo que devenios voltar á natureza, incluindo-nos como sua parte constitutiva e náo domesticadora.
No ámbito público, La Boétie opoe á tiranía a amizade, a qual nos entregamos como pessoas de bem com tnútua estima e que se mantém por meio de uma vida boa, nem tanto pelos beneficios, reconhecendo-se a integridade de cada participante: "as garantías que se tem sao sua bondade natural, fé e constancia"13
Os discurso de Maquiavel e La Boétie funcíonam em diregoes opostas. Para a necessidade de autoridade centralizada de um, a liberdade de cada um, para o outro. Se para Maquiavel há uma natureza humana negativa fomentadora de conspiracóes e cumplicidades, em La Boétie há uma volta á natureza que nos indica a amizade como forma pacífica de convivencia. Diante de um príncipe amado e temido, o Um para o qual o respeito á liberdade se funda na obediéncia ao soberano, se opoe um príncipe temido e que teme o povo, o Um que precisa ser ignorado para que a liberdade corno soberanía de si possa ocorrer. Para as formas diferentes de governo, na qual sobressai a república, a constatagáo da invariáncia dos governos como exercícios de tiranía. A amizade é a resposta, á vida pautada na guerra. Aos costumes a serení respeitados pela continuidade dos governos é interposta outra 11 oca o de costumes vistos de dois ángulos: a traclicáo que se atualiza para manter o UM e a experiéncia de novos costumes para inventar povos. Diante de um povo unificado pelo Estado, a diversidade de povos, o que náo sitúa La Boétie num campo multiculturalista como o atual, pois para ele, este seria uma nova recriacáo das unidades estatizantes. Em vez de continuarmos na condicao de servos voluntários, uma nova vontade de verdade. Enfim, para o discurso histórico fundado na conquista e conservagáo, apanhado na normatividade por Maquiavel, abre-se com La Boétie a possibilidade de máquinas desejant.es. Para uma sublimagáo chamada povo, um soberano real, Eu.
Montaigne foi o primeiro a dedicar-se á sugestáo de La Boétie acerca da amizade e da educagáo para novos costumes, náo deixando de atentar para o fato de que sua realizagáo somente é possívei por meio de investimientos na educagáo autónoma e livre.
A amizade para Montaigne está relacionada com a vida adulta, a maturidade dos espíritos, e se diferencia do amor pela concordáncia de vontades, por ser temperada e serena, suave e delicada, sem aspereza e excessos. Nela as almas se confundem numa só. Tratase de uma identidade compartilhada, desterrito-rializante, alheia á prudencia, servigos e favores. O que se dá ao amigo é por satisfagáo, por prazer. É urna relagáo pautada na indivisibilidade. Nada resta para dividir; estamos desobligados de tudo e silenciamos segredos. Contudo, a reflexáo de Montaigne sitúa a amizade no ámbito privado. Ainda que no ámbito público possa vir a ser confrontada, como ética, ao plano político, náo devenios esquecer do conservadorismo político de Montaigne14.
Contudo é no seu ensaio "Da educagáo das criangas", afirmando-se seguidor de Plutarco e Séneca, que ele trará urrr detalhamento importante para entendermos a invengáo dos costumes, sob a perspectiva de La Boétie. Para ele a grande dificuldade do humanismo repousa no tema da instrucáo e educagáo das criangas. Os filhotes de animais mostram suas tendencias naturais. Os homens por sua vez, "sob hábitos, preconceitos e leis, mudam ou se mascaram constantemente"15. Um instrutor deve ter mais inteligencia que ciencia para exercer suas fungóes evitando que as criangas sejam em suas máos aqueles que repetem o que foi dito. Para tal, ele deve estabeiecer com a crianga uma re la cao na qual náo fale sozirrho, mas crie condigóes para que o discípulo fale. Está em jogo estabeiecer uma relagáo que se paute pela diluigáo da hierarquia, na medida em que sua tarefa primordial é a de evitar a continuidade em crengas e fantasmagorías que nos tornani servos cativos. Um instrutor inteligente náo pode subestimar a inteligencia da crianga e urna boa maneira de implementar esta inteligencia é náo a fazendo depositária de costumes tradicionais. Diante de um diálogo em que o mestre provoca o esclarecimiento no discípulo, afirma-se um debate diante do conhecimento, sem tomar a priori um valor universal.
Náo há um principio único na educagáo, seja ele estoico, epicurista ou aristotélico, diz Montaigne. Náo há principio quando está em jogo a escoiha livre. É preferível a dúvida diante da certeza, pois somente os buoos térn certeza absoluta de sua opiniáo. Seguir a outro é o mesmo que nao encontrar nada, pois náo há procura. Apoiando-se em Séneca dirá: "náo estamos sob o dominio de um rei; que cada qual governe a si"16.
Uma crianga náo deve ser poupada do perigo. Deve viver ao ar livre, viajar, tomar contato corrr outros povos e línguas, fortalecer sua alma tanto quanto o corpo17. É preciso pronunciar a palavra nao18. O livro do aluno é o mundo. É ele qrre nos ensina a comparar, reconhecer nossas imperfeigóes, as fraquezas naturais, a diversidade cultural, e isso náo é pouco. É preciso mais: conhecer-se, saber viver e morrer bem. É preciso trabalhar: ojovem deve estar apto á fadiga e á aspereza. Náo pode haver en si no dissociado do trabalho.
A restrigáo de nossas necessidades para a existéncia informa que "a rriaior parte das ciencias em uso é senr utilidade para nós"19. Montaigne está ao mesmo tempo voltando-se para a natureza, constatando a distáncia das ciéncias da própria natureza e propondo ter a crianga o mundo como livro. Andar, conhecer pessoas, conhecer-se, notar, anotar e reparar na diversidade, na regra geral da submissáo. O jovem tem pressa e náo pode fiear entregue após os 15 ou 16 anos aos pedagogos. O instrutor se dissolve em poucos anos porque ele está lá para náo formar discípulos. Ali se encontra para fomentar a agáo. Nossos colegios sáo "verdadeiras prisoes para cativeiro da juventude, e a tornara cínica e debochada antes de o ser"20. Montaigne anuncia a rebeldía stirneriana contra a educagáo e a instrugáo e a bizarra busca por um en si no geral e público comandado pelo Estado.
Para Montaigne a crianga e o jovem devem reconhecer os erros para evitar a teimosia e a contestagáo, considerados clefeitos de almas vulgares. Para ha ver filosofía, e agora segue Epicuro, é preciso praticá-la desde pequeño e delajamais se cansar mesmo na velhice. Para haver filosofía é preciso voltar atrás, corrigir-se, saber que tuclo se encontra sob mudanga. Portante, um péssimo instrutor é aquele que prende o jovem a horas intermináveis de estudo tanto quanto Ihe infunde o espirito melancólico e reservarlo do amor aos livros, que afastam o jovem da vida. Uma filosofía contemplativa é aquela que tem regras que váo do recém-nascido ao decrépito. "O oficio da filosofía é serenar as tempestades da alma e ensinar a rir da tome e da febre, náo mediante um epiciclo imaginario qualquer, mas por meio de razoes naturais sólidas. Tem por firn a virtude, a qual náo está, como quer a escolástica, colocada no cimo de algum monte alcantinado, abrupto e inacessível. Os que déla se aproximara afirmam-na ao contrário, alojada em bela planicie, fértil, e florida de onde se descortinara as coisas"21.
A um jovem basta "urri gabinete, um jardim, a mesa e a cama, a manhá e a tarde, todas as horas e lugares Ihe serviráo"22. Náo há escola para acolher as crian gas e jovens e também náo há um instrutor único ou especialista. A educagáo das criangas em Montaigne, relacionada á associagáo de amigos na agáo pública de
La ESoétie, inventa outras maneiras de existir23. Uma educagáo livre é aquela que implica instrugáo pela qual "é melhor atrair a vontade e a afeigáo, sem o que se conseguem apenas asnos carregadores de livros"24.
Outros costumes, livres da servidáo voluntaria, em busca de um sujeito soberano de si, acoplam as reflexóes de La Boétie e Montaigne como partes constitutivas do discurso libertário anarquista. É preciso inventar um povo agora e náo no futuro guiado por uma consciéncia superior. Dizer náo ao soberano é afirmar a crianga, náo a partir de quem disse náo como se ai repousasse a verdadeira consciéncia, mas como potencia de liberdade. Neste caso náo há porque subordinar a crianga a uma pedagogia superior. Educar exige um reposicionamento do adulto diante da crianga, um descolamento das fantasmagorías da razáo e da religiáo. Montaigne que se mostrava um homem estoico maduro ao falar da amizade, neste momento encontra-se tocado pela rebeldía de La Boétie. Mais do que se podia imaginar é neste "Educagáo das criangas", que mais presente está o seu consagrado amigo.
Max Stirner é um homem feito ao escrever seu O único e suapropri.ed.ade. Um homem maduro tomado pela juventude como La Boétie e voltado para a liberdade da crianga. Em Stirner náo há a busca pela sociedade humanista realizando a autonomía do sujeito. Diante da sociedade somente o individuo e este se realiza ao náo sacrificar sua individualidade á coletividade, mas ao afirmar a associagáo.
Entre os anos de 1842 e 1844, ele escreve alguns opúsculos publicados em Berlim, que dizem respeito diretamente aos preceitos dos governos e á educagáo livre. Sáo escritos preparatorios para seu único livro. Diz-se, e também o afirmo, que Stirner teria levantado diversos problemas anteriores e análogos a Nietzsche25.
O principal deles diz respeito á criagáo do Homem, um efeito filosófico de transcendentalidades. Ele quer, como o outro pensador alemáo, algo mais do que nos legou Kant e Hegel como apogeu da filosofía. É preciso uma filosofía crianga, comum aos homens livres, instintiva, capaz de despedacar a relagáo entre razao e religiáo. Náo há no mundo moderno mais do que um reacender da antigüidade capitaneada por Platao. É preciso abandonar apólis, a cidade feliz, as utopias, a dicotomía que assola os livres opondo Bem e Mal, vicio e virtude, saúde e doenga, amor e odio, certo e errado, guerra e paz. O melhor inimigo é o amigo, afirmará Nietzsche. Náo há único sem outro único, eu e tu associados pela razao do outro, afirmará Stirner. Náo há outro, espelho, identidade, continuidade, mesmo de mim. Só há únicos e como tal náo almejam ser todos, muitos ou alguns especiáis. Sao apenas vns que náo se apartam da vida política, sabem da sua existencia como realizagáo da democracia corno religiáo do rebanho moderno, mas náo se voltam para integrar-se a ela como contestagáo ao soberano e afirmar lutas que se quereráo capazes de uma consciéncia superior. Stirner, incisivamente quer imediato prazer, vida iinediata para aqueles que privilegiam a vontade diante do saber. Náo é possível subordinar-se ao soberano centralizado.
Em Stirner náo há uma negagáo a ser superada numa síntese. A associagáo náo é mais do que vontade de pessoa livre, algo que se passa por dentro e por fora da tradigáo. Náo há um passado a ser negado por um presente mais justo, real e pleno. Há uma vontade de único que se associa a outra cuja existencia se opoe á moral, sem desconhecer a historia da moralidade e da piedade, ao afirmar os instintos. Náo se trata de mera oposigáo de instinto á razao, de pré-historia á historia e de um pensar apartado do dominio das paixóes, mas fusáo de corpo e pensar, um corpo que ataca a razao para defender a pele. Trata-se de um pensar pela vontade de verdade avessa a domesticagóes, capaz de realizar a morte do saber, mostrando como se sabe morrer. Nao é a morte da filosofía que faz renascer uma nova filosofía. S uma filosofía, de criangas jovens e adultos, feita da preciosidade que é lutar por um objeto, de náo se apartar do objeto por criagóes da razáo ou das religioes. É debate aberto, construgáo da associagáo, efeito do ato de saber dizer náo ao soberano.
La Boétie expressava a profusáo instintiva ao nos apanhar como seivos voluntários. Stirner, a seu modo, investe na associagáo de amigos livre da transcen-dentalidade da amizade. Náo há Amizade, mas amigos que a fazem em cada associagáo, coisa que jamais poderá ser apanhada pelo conceito. É existéncia pelo lado de lora do privado, diferenciando-se de Montaigne; ela é sempre pública e, obviamente, jamais aparentada com a sua versáo estatal: amizade entre os povos e sua possível derivagáo em hospitalidade como projeto filosófico de paz perpetua, como o elaborado por Kant. Amizade náo como conceito e tampouco como prática, uma possível rotína, mas experiencia pública entre amigos, livres de Estado, de autoridade centralizada.
De La Boétie a Stirner há forga como vontade e uma constatagáo de que jamais se encontrará uma autonomía real. Vontade de oposigáo e contestagáo, devo sublinhar, que náo aguarda ou constituí compatibilidades com a vontade da coletividade — uma espiritualidade —, mas que faz e quer acontecer independentemente da vontade do mundo. Diráo: é niilismo. Pouco importa o que diráo, o nada ciiador náo se refere a palavras, substancia ou experiencia passada revigorada por tradigóes, experiencia congelada: "O homem prefere a vontade do nada ao nada da vontadef, encerrou Nietzsche a Genealogía da moral.26
Seria convincente, ainda nesta brevíssima apresentagáo de Stirner, afirmá-lo como um anarquista? Sem dúvida, do ponto de vista da crítica da sociedade, do Estado e da afirmagáo da liberdade, as dúvidas náo permanecen! de pé. Seria um desváo colocá-lo pacificamente neste lugar. O humanismo anarquista que se anunciava com Proudhon, a quem ele dedica longuíssima reflexáo em seu livro, é inaceitável, transcendental, utópico e exercicio de inversáo de termos (ou series no dizer de Proudhon), no qual deixamos o mundo restrito da propriedade privada pelo impessoal da propriedade coletiva ou posse transitoria. Para os anarquistas, Stirner somente tem sentido se for lido como um anarquista no anarquismo, vontade que náo Ihe dá sossego diante da utopia e da justiga social. Para ele náo há um agora como preparagáo para o futuro; náo há futuro, somente o presente. Diante da preparagáo pelo saber, a intensidade. É um anarquista que se distancia das afinidades que os diversos anarquismos buscam por meio de suas singularidades. É uma singularidade que se lixa para afinidades. Nao é uma extravagáncia, apenas um atrevimento. É o inacabado como constatagáo que o distancia da conclusáo perfeita. Trata-se de uma ética e náo mais de moral.
É preciso ser guerreiro. O pensar crianga tem sempre um objeto com que se ocupar, como a crianga mesma. Choca-se com outro com a mesma pretensáo e conflito. Lutamos quando criangas contra a razao: Estado, religiáo, ciencia e filosofía. E reagirnos fortemente ás caricias e aos castigos. Vida, na forga e no instinto, na qual náo precisamos destruir o outro. Entre criangas o guerreiro existe na luta pelo objeto e náo pela destruigáo da outra crianga. Uma batalha sem guerra diante de uma paz que o pensar adulto pretende impor a esta su pos ta guerra.
Quando atingimos a juventude o processo de distanciamento do objeto está para se completar. País, escolas, relagóes de vizinhangas, paróquias, diversas maneiras de realizagáo da sociabilidade contribuem com igual forga. Prepara-se o momento para o distanciamento final do objeto, a confirmagáo do absoluto. É o momento de tensáo e apaziguamento, explosáo de rebeldías como expressáo do resultado da domesticagáo dos instintos. A pessoa está quase pronta para a vida em sociedade segundo os costumes e a política; encontra-se na iminéncia de tornar-se um adulto. Estamos diante da gloria do humanismo, que corresponde segundo Stirner ao tempo de Péricles e Maquiavel, tempo de Sócrates revigorado, liberto do cristianismo que afirmou o amor desinteressado. Estáo os jovens educados pela possessáo do Espirito invisível e sagrado que náo Ihes pertence e os confunde. Créem, agora, num homem superior. E todo homem superior é apenas uma moralidade que se opóe á piedade. O Homem substituiu Deus, instituindo a nova moralidade que substituí um pelo outro.
Como lidar com educagáo de criangas? Como tal educagáo é parte constitutiva da associagáo e náo é como pedagogía sua condigáo de existencia? Tomaremos quatro artigos de Stirner, anteriores ao O único e suapropriedade {1845). Sáo eles "Arte e religiáo", "Algumas observagóes provisorias a respeito ao Estado fundado no amor", "Misterios de París" e "O falso principio de nossa educagáo". Os dois primeiros de 1842 e os seguintes de 1844. Sendo o foco da discussáo a emergencia de um discurso libertario a respeito da supressáo do soberano e da relagáo amor-temor que ele exige, a apresentagáo da vontade de Stirner estimula o leitor a ler sua realidade presente. O homem deverá ser formado para a sociedade ou para si próprio?
"Amigos, nossa época náo está doente, acontece que já viveu tudo; náo a torturéis também vós tentando curá-la, aligeirai antes a sua última hora abreviando-a e já que náo é possível curá-la, deixai-a tnorrer"27. Ela está velha e náo necessita de uma medicina de charlatáo, afirma Stirner ao comentar neste artigo o livro, de Eugéne Sue, Mistérios. Está em jogo a discussáo moral acerca do vicio e da virtude, no qual o Bem é tomado como algo sem existéncia, que exige de nós a exemplaridade obrigando-nos a eonfessar: "a verdadeira moralidade e a verdadeira piedade náo se deixam nunca distinguir completamente. É que mesmo os adeptos da moral que negam a existencia do Deus pessoal conservara no bem, na verdade e na virtude, o seu Deus e a sua De usa"28, Um moralista liberal exige nada de excessos, tanto quanto um piedoso. O que era virtude para um ou vicio para o outro, se intercambiara sem abalar a ordem, ao mesmo tempo em que se erguem os deuses da virtude e do vicio e os seus respectivos fiéis.
Pessoas honradas exibem uma existencia virtuosa e submissa a Deus. É preciso tanto a punigáo canónica como a punigáo moderna; é preciso castigar para libertar o corpo tomado pelo mal; é preciso antes de mais nada interceptar a sexualidade. As acóes se voltam para melhorar o estado das coisas. Ern tempos mais distantes, afirma Stirner, procurava-se reformar a [greja, agora se busca melhorar o Estado. Moralidade e piedade precisara afirmar seus deuses diante de uma guerra de deuses, advindos da precária cura dos instintos. A nós resta constatar que para tornar a crianga um ser moral precisa-se antes de tudo reconhecer nela o potencial do mal expresso pela intensidade dos afetos. Ela pode ser guerreira e amante pela forga dos instintos, mas deve-se incutir-lhe o amor como maneira de sujeitá-la antes a si própria. É preciso formar as massas; entretanto, náo se pode desconhecer que as massas também possuem calosidades na pele e sao "capazes de mostrarem-se insensíveis perante as circunstancias rigorosas dos seus artigos de fé"29.
É possível imaginar, a partir de Stirner, que existe uma massa tomada por uma falsa consciéncia? A resposta positiva diria que somente os esclarecidos seriara capazes de critica. A maioria náo passaria de receptores inofensivos subjugados ao poder das instituigóes e que ao ter suas boas almas sendo instruidas por uma moral e pelos deuses da virtude dos modernos missionários da filosofía seriam despertas da vida vegetativa para seu grandioso destino. Elas náo sabem que fazem a historia? Qual historia? Aquel a a ser reconstruida pelos historiadores que a sabem fazer e dar-lhe infinitude? Aquela a ser ordenada e provocar respostas á sua época? Pobres massas dispostas aos saberes dos condutoresl Mal sentem os calos na pele! Reconhecem-se pobres de Espirito, incapazes de perceber seus próprios problemas e que somente encontraráo solugóes por meio de reformas que lhe sao exteriores. Criaram a si próprios em conformidade com a piedade. Esperam da moral do Estado a mesma piedade da Igreja. Sao súditos que reescrevem sua con di gao de súditos.
Quem quer pai, Estado ou Deus, quer pai, Estado e Deus. Precisa de amor: "é o mistério que faz duma questáo do entendimiento um assunto do coragáo — o homem inteiro, através de seu entendimiento, é o seu assunto isto é o que faz deste último um assunto do coragáo"30. Para Stirner a crianga comporta-se como um ser sensível que náo experimenta o amor a náo ser quando em sua relagáo com os homens passa a distingüilos e aos objetos transferindo sua afeigáo a outro. E com temor e respeito que comega a sentir amor. "Uma crianga ama porque uma forma exterior ou objeto, uma presenga humana, exerce sobre ela o seu império ou seu encanto — ela corrsegue distinguir perfeitamente dos outros seres a significagáo maternal da sua máe, mesmo que náo saiba exprirrri-la de forma racional. Antes de sua inteligencia despertar, a crianga náo ama e o seu mais profundo abandono amoroso rráo é mais que compreensáo intima"31. Para haver amor é preciso urn objeto com propriedade de entendimento e este necessita de um objeto para fazer valer a compreensáo de um mistério. Desta maneira é ao se refazer que o amor náo se dissolve e se faz coisa do coragáo. Amar aos pais, a Deus e ao Estado sáo deveres do entendimento tocados pelos mistérios do coragáo.
Na soberania moderna há menos vida no ditador que ñas instituigóes democráticas, mesmo porque estas se baseiam no reconhecimento da imperfeigáo humana. A perfeigáo de Deus jamais poderá ser alcangada pelo ditador, um homem. Nós, homens, diante do Um, o Deus, somente damos longevidade á nossa soberanía como povo por meio de instituigóes fundadas na impessoalidade. O entendimento acerca do imperfeito faz com que amemos a democracia. A busca da perfeigáo, por sua vez, realiza-se no desejo de ditador — um misterioso pai que ao mesmo tempo é o entendimiento pelo ato de existir como o corpo acabado dos que abdicaram de si. Amor e temor sao partes constitutivas do ideal, do amor ao Estado.
Respondendo a Hegel, Stirner procura mostrar que a arte náo segue a religiáo, mas é sua companheira, comeco e fim das religióes. "Sem a arte e o artista, criador do ideal, a religiáo náo poderia nascer"32. O artista cria o ideal a partir de uma projegáo futura, um além que deve comportar a completude que os estados naturais e animais atuais sao impossíveis de satisfazer. Cria o objeto para o entendimento, repleto de seu espirito que perdura pelo olhar do outro e pela reprodugáo da forma. A religiáo é a manifestagáo do ideal da criagáo artística, a separagáo do homem de sua existencia, o entendimento. A arte constitui o objeto e "a religiáo vive somente pelo encadeamento a este objeto"33. Seria leviano identificar razao com entendimento. O esforgo de Stirner é para liberar a razáo de sua forma acabada como idealizagáo sustentada pelo entendimento. Se é este que faz a crianga amar e temer, e o homem ver a inocencia da crianga realizada na moral do ideal, nada mais verdadeiro que fazer saber ser a religiáo urna arte perfeita e limpa inventada pelo próprio homem. A crianga é um objeto de entendimento, um objeto de investimento do ideal, e o homem moral é o futuro da crianga e de sua inocencia, Náo há vida como obra de arte, mas arte e religiáo como ideáis de vida. Entáo, na medida em que o homem se distanciou de Deus e da piedade e projetou seu ideal no humano bascado na moralidade, o odio perdeu parte de sua forga tanto quanto o amor a Deus. O amor e o temor ao homem agilizan! a perfeigáo, uma guerra interminável entre piedade e moralidade, apesar de ambas jamais se dissociarem.
Teocracia e democracia se digladiam no mundo moderno em torno dos ideáis, do entendimiento. Contudo, seria equivocado dizer que se opoem. Concentram torgas diferenciadas em turno do amor e do temor. O artista da piedade cede lugar ao artista da moralidade sem progresso ou superagáo, apenas como efeito de forgas em torno do entendimiento sobre o ideal. O artista anónimo das paredes das cavernas externava o mundo na sua completude animal e natural, da mesma maneira que o artista indígena deixa invadir-se pelas suas relagóes com a natureza. Mas diante do sobrenatural ele também inventará o objeto de cura, temor, culto e parte de ritual que traz certo entendimiento as coisas. Inventa mitos que criam os homens, aqueles específicos homens. Esta arte de viver e criar objetos procura responder ao presente, ao fortalecimento dos lagos entre os homens, mulheres e criangas que o constituem. Náo trazem piedade ou moralidade, náo criam o Estado e as figuras soberanas. Assim como na natureza, nada é fixo, constante e iinutável.
A arte moderna vai em busca da expressáo da perfeigáo visível do corpo herdada do renascimento para decompó-la pela genialidade do artista revolvendo o entendimiento do ideal. Ela náo reinventa a natureza, mas interpóe o homem revolvendo sua natureza humana, até chegar ao surrealismo como ato de exposigáo dos interiores, renovando o ideal pela assimilagáo do inconsciente, sua desmesura, um irracional como parle constitutiva do racional. Um outro entendimento projetado sobre o objeto que se projeta como objeto de arte, ideal que se perpetua tanto quanto imagens santificadas apropriadas por colecionadores privados e públicos como expressáo artística. É espelho que projeta um ideal aos espectadores. É parte constitutiva da continuidade para a qual a descontinu-idade da arte primitiva se interpoe desalojando o entendimento. A arte cria o ideal, a religiáo seus misterios.
Stirner irá contrapor brevemente a filosofía á arte, Para o filósofo a razao busca a si própria, náo ama pois se relaciona consigo e náo com qualquer objeto. "Quando se ocupa de Deus náo é para venerar, mas para rejeitar, — nela só habita a razáo que busca a centelha de razáo que se ocultou sob esta forma"34. A filosofía é um ato de instabilidade, de crítica sobre o pensamento, de liberagáo dos ideáis.
Se a arte é comego e fim das religióes o que seria o Estado fundado no amor? Para Stirner, a liberdade democrática será superior á liberdade cristá. Entretanto, ela só existe pela negagáo da autonomía. A revolugáo Francesa introduziu uma representagáo da vontade, que embora seja uma vontade de cidadáos náo é uma vontade livre. Stirner se encontra no interior de vasta discussáo radical da década de 18-10 que investe no entendimento acerca do direito e que o coloca como forma específica diante da generalidade, tema que atravessou os jovens hegelianos. Os direitos como entendimento do dever agilizam ti liberdade moral em progresso e fazem com que os efeitos da Revolugáo Francesa sejam disseminados pelo mundo. Um progresso que refaz a beleza do amor: "o amor é decerto a mais bela e derradeira repressáo de si, a forma mais gloriosa de aniquilar e sacrificar, a vitória sobre o egoísmo mais culminante em delicias; mas ao despedagar a vontade própria obstaculiza ao mesmo tempo a própria vontade que é, para o homem, a fonte primeira de sua dignidade de ser livre"35.
Amor e temor pelo soberano sáo expressos por incontáveis atos dirigidos a objetos e a idealizagóes. É preciso melhorar o Estado, amá-io acima de todas as coisas, porque na sua materialidade ele acomoda o amor e o temor a Deus. É preciso a confissáo do rebanho crente na razáo de Estado como representagáo da vontade de todos. Ele castiga para ensinar, ameaga cora punigáo para ser melhor arnado e respeitado. Apresenta-se como a parte real diante do ideal religioso e é o meio para ascendermos de nossa condicáo de miseria. Respeitando sua forga e amando suas agóes melhoramos de vida.
O Estado possui seus artistas que materializam seus grandes feitos em obras públicas; e também genialidades que criam leis, sao capazes de nos representar interpondo ao monarca uma razáo comum e humana. Se a democracia perpetua no futuro o presente pela imperfeigáo institucional, o socialismo é a realizagáo da perfectibilidade no futuro. Se antes teocracia e democracia compunham a familia e o amor aos súditos e cidadáos, o socialismo será a dissolugáo da generalidade na emancipagáo humana, colocando-nos o ideal de igualdade, aínda que o homem livre, mais uma vez náo passe de um ideal em progresso.
Por Stirner encontramo-nos diante do entendimento da gramática do poder maquiaveliana, tanto quanto o intempestivo e voraz "náo" proferido por La Boétie. O jogo de forgas que se encontra pacificado em Maquiavel pelo exercício do soberano e que foi instabilizado por La Boétie como reverso do temor do príncipe pelo povo, encontra em Stirner uma possibilidade para a relagáo de homens livres de Estado, inventando associagoes diante da recriagáo da arte da sociedade.
Talvez seu mais contundente opúsculo seja "O falso principio de nossa educagáo". O tema é apresentado ao leitor havendo uma oposigáo entre humanistas e realistas. Ele designa os primeiros como aqueles cuja formagáo está pautada nos ensinamentos da antigúidade, voltados para a erudigáo e o investimento ñas massas visando a superagáo da ignorancia; e os segundos, que pretenden! sucedé-los, voltados para a utilidade. Stirner procurará mostrar as complementaridades.
O ensino superior até o iluminismo, incontestavel-mente dirigido pelos humanistas, debrugava-se sobre a compreensáo dos antigos tanto quanto aos estudos da Biblia, que também tinha por referéncia a mesma antigüidade. O povo deveria permanecer ignorante para venerar o saber dos humanistas.36 A educagáo deveria ser formal, fundada no gosto, o aprego pelas formas, um ensino elegante. O realismo veio interpolase trazendo programas pedagógicos a serem aplicados a Lodos contemplando os principios do moderno direito de igualdade para a emergencia de um individuo independente e autónomo, segundo os principios da liberdade. Desta maneira, se o humanismo pretendía enaltecer o passado, o realismo voltava-se para o presente. Entretanto, a distingáo nada mais faz do que reafirmar o dominio do temporal. A libertagáo da autoridade náo trazia consigo, segundo Stirner, a igualdade e a liberdade sem autodeterminagáo, mas apenas uma reconciliagáo com o nosso ser eterno. O homem deixava de voltar-se para uma cultura formal baseada na cultura geral para compor-se com autilidade do homem prático.
A educagáo formal, realista e moderna va i em busca do útil e utilizável consagrando as formas e propiciando a habilidade. Ela passa a ser inevitável. Assim sendo a obrigatoriedade se entende pela educagáo das criangas, voto e servigo militar. (A passagem do tempo consagrará melhor ainda a escolha obrigatória por meio da legitimidade da abstengáo eleitoral e do servigo militar opcional). A escola, particular ou estatal, segundo Stirner, é afirma educativa para volatilizar a autonomía individual em obediencia. É a maneira pela qual o saber se consagra e os realistas explicitam sua hostilidade á filosofía. A educagáo com base na utilidade visa longevidade, aperfeigoamento, ascensáo, dedicagáo, especializagáo, dominio37. Corresponde ao industrialismo, um tempo de saber simples e direto que "manifesta-se e recria-se em vontade em todas as nossas acóes"-1®. Náo devenios, diz Stirner, passar por cima da "vontade de Saber"39, para afirmar um estado de Querer, pois o saber culmina em querer ao despojarse do sensível, criando-se como um espirito que constrói o próprio corpo. E qual humanismo ou realismo desejará a morte de tal saber? Um saber impessoal náo nos prepara para a vida, mantém-se como abstragáo, so pode ser o fim último da educagáo. É inibigáo da vontade, contradizendo, simultáneamente, o idealismo e o materialismo.
A educagáo ensina a obedecer. Impede a vital indisciplina ao mesmo tempo em que interrompe o próprio saber se transfigurando em vontade livre. Para Stirner náo está em discussáo opor, táo somente, Saber e Vontade. Náo há vontade que emerja senáo a partir de uma vontade de morte ao saber, o que por si nos reporta á crítica á vontade de saber (o espirito criando o corpo) para vontade de querer (o corpo e suas calosidades). Stirner náo está declarando a morte do saber pelo exterior, mas pelo exercício livre de suas próprias proposigoes levadas ao limite. A morte do saber está nele mesmo, o que faz da filosofía um exercício para qualquer um opondo-se a uma verdadeira educagáo ñas rnáos dos filósofos. Saber e poder náo estáo dissociados. A consciéncia maior do filósofo sucumbe diante da menoridade do exercício crítico de filosofar. Nao se trata de liberdade de vontade — o que é próprio do saber — pois "se a idéia de liberdade desperta no homem, uma vez livre, ele náo cessa de continuar a libertar-se; mas se é apenas culto, ele se adaptará ás circunstancias como pessoa altamente culta e refinada e náo será mais do que servidor de alma submissa"40. Náo está em questáo formar homens de principios que respeitem leis, e que se mantenham fiéis ás suas convicgóes. É preciso sofrer de liberdade, estremecer, um rejuvenescimento constante. Uma situagáo na qual se instala a dúvida que nos faz escolher, transfigurando o saber em vontade. Náo há pedagogía que náo infunda um saber sem vontade visando a concordancia entre a escola e a vicia. Stirner quer que a escola seja a vida. "A teimosia e a indisciplina da crianga tem tantos direitos quanto seu desejo de saber. Estimulan! deliberadamente este último; que também suscitem essa forga natural da Vontade: a oposigúo. Se a crianga náo aprende a tomar consciéncia de si, é claro que ela nao aprende o mais importante. Que náo seja sufocado nem seu orgulho, nem sua franqueza natural. Minha própria liberdade permanece sempre ao abrigo de sua arrogancia. Pois se o orgulho degenera em arrogancia, a crianga desejará usar ele violencia contra mim"41.
Para uma educagáo que en si na "a arte de fazer hábilmente seu caminho na vida, esta dá o poder de fazer brotar das profundezas do Eu a fagulha da vida; aquela prepara para estar consigo num dado mundo, esta a estar consigo mesmo"42. Trata-se da liberdade ele si na c|ual o saber só se torna livre internamente, diferindo daquela dos humanistas e realistas que velam pela liberdade de pensamiento, pela libertagáo, uma liberdade que nos calcifica submissos. O saber depende elesta liberdade exterior tanto quanto a vontade depende ele uma liberdade interior. Diante cía moral, a ética. Somente uma existencia ética sustenta uma educagáo pessoal.
Abalando as convicgóes humanista e realista, Stirner também abala os anarquismos no que créem de futuro e utopia. Se eles térn algo a ver com Stirner está em desfazer-se das construgóes do presente em diregáo ao futuro, para ser presente despojado de moral, A táo efetivos e esfuziantes críticos ela sociedade, capazes de inventarem associagóes para a vida livre, reclamaría deles Stirner a vontade ele cleixar ele ser sociedade, Serem nómades, como bandos de homens e bichos abandonando os grandes defensores do saber — e os que o denigran — á própria sorte dos seus criadores. Mas isto é ele um laclo, a confirmagáo da própria liberdade do saber que cedo ou tarde a ele declarará guerra; e de outro laclo, é a constatagáo dos limites elesta liberdade, um efeito ele libera cao, uma ética da amizade que ri entre amigos, os melhores inimigos, a cada inigragáo. Aos tristes e aos escravos as migalhas da liberdade, ou os sonhos de uma liberdade que jamais será vivida!
Por Stirner se redimensiona a arte da amizade, a arte dos amigos pessoais alheia a convicgoes, algo que ocorre pelo ato de fazer e existir, náo regulando a moral no ámbito dos espagos delimitados, mas fazendo-a acontecer por fluxos. Náo se queira eterno como idéia ou realidade. Nem o Estado é para todos, de todos e de todas as épocas, nem a associagáo é para sempre. É preciso ser livre para sair e inventar. Os anarquismos precisam de outras liberdades anárquicas.
Um comentário final, até certo ponto alheio ao que foi discutido. Se há alguma relagáo entre este percurso de La Boétie a Stirner e, a partir deste principalmente em relagáo á arte que conhecemos, a relagáo pode ser encontrada no dadaísmo; arte aquém e além do objeto.
Hans Richter afirmou que "Dada náo se limitava a náo ter programa, era contra todos os programas". Isso náo excluí, completou Paul Feyerabend, em Contra o método, "a habilidosa defesa dos programas para mostrar o caráter quimérico de todas as defesas, aínda que raáonais"43. Um anarquista, para Feyerabend, "é como um agente secreto que participa do jogo da Razáo para solapar a autoridade da razáo (Verdade, Honestidade, Justiga e assim por diante)" 44. Aí se encontra Max Stirner, numa posigáo de agente secreto, radical e distante, daquilo que concluiu Sun Tzu, em A arte da guerra, escrito na China por volta do século V AC: "somente um príncipe esclarecido e um general digno podem aliciar os espíritos mais penetrantes e realizar feitos notáveis. Um exército sem agentes secretos é um homem cegó e sur do."
Este rio náo desernbocou na oposigáo entre soberanía e autonomía individual, apenas passou, por grandes rios, como um afluente que se ramifica segundo a época das chuvas. Em tempo: as chuvas náo foram suficientemente abundantes para fazé-lo náo mais que resvalar em Nietzsche. Será preciso esperar a nova estagáo das chuvas. Mas com ou sem ela sabemos que a amizade náo é um tema exclusivo de filósofos, nem a eles cabe localizar as práticas de amizade. A arte da amizade está em fazer publicamente miríades de associagóes formadas por pessoas conclutoras de desejos, uns. Os anarquistas sáo uns.
Notas
1 Nicolau Maquiavel. Comentarios sobre a primeira década de Tito Uvio. Brasilia, UNB, 1994, p. 97.
2 Idem, p. 25.
3 A fase mais férhl de Maquiavel como homem público é no governo SoredinL Propoe e organiza o alstamento e treinamentos militares, inclusive em dias de feriados, com o objetivo de formar milicias própnas e acabar com anecesádade de se recorrer a exércitos de mercenarios. O confronto com os espanhóis e o fracasso desta milicia custa-lhe o cargo e o exilio. Apesar de Floren^a ser considerada a mais republicana das repúblicas do norte da Italia, desde a Constituidlo de 1293, transformando os privilegios dos nobres (esercício do poder central e monopolio da cavalaria) para acomodar os interesses dos comerciantes, ela nunca deixou de ser oligárquica.
11 Neste sentido é sempre bomlembrar do opúsculo de Plutarco, "Como discernir o bajulador dos amigos", baiefa ardua e mcansável do governante.
5 Arebeldia de La Boétie atinge em cheio as formas de continuidade do soberano lia Terra. Porém, o autor se esquiva em ampliar sua demolido á religiáo, que permanece intocável, uma forma moral irredutível, aínda que os governantes venham a utíiizá-La como escudo. Uma familiaridade a ser melhor trabada pode ser localizada no transcendentalismo emersoniano de David Henry Thoureau, no opúsculo conhecido por "A desobediencia civil".
d "Nossa natureza é de tal modo justa que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconliecer o bem de onde o recebemos, e multas vezes diminuir nosso bem-estar paraaumentar ahonra e avantagem daquele que se ama e que o merece" (La Boétie, E. Discurso sobré a servidáo vduniária, Sao Paulo, Brasiliense, 1982 p. 12).
' Muito tempo depois, napassagem do XIX parao XX, o pensador anarquista Pióte Kropotkin,partirádano5ao de ajuda mutua para opor-se á construyo da natureza humana competitiva aprofundada pelo darvinismo, procurando elaborar um anarquismo científico. Para nossos interesses, neste momento, basta reconhecer isto. Entretanto, convertí nao deizar de sublirihar que a visao positivista de Kropotkin, estabelecendo urna lei determinista para sociedade igualitaria será bastante combatida no interior do próprio anarquismo que considera a aútude como existencia libertaria diante das leis da historia.
8 Um outro per curso, por meio da análise do nomadismo é elaborado, em especial, por Gilíes Deleuze e Félix Guattari em "Tratado de nomadologia", publicado em Miiplatos (Sao Paulo, 34Letras, 199?, vol. 5). Para Clastres, La Boétie sena o fundador de uma antropología moderna; as sociedades primitivas evitam o rnau encentro pela recusa da instituido Estado.
9 Tomo aquí a nogao de assujeitamento depreendida de Foucault por Guilherme Castelo Branco em "Consideragoes sobre ética e política" (in, Portocarrero, Y. e Castelo Branco, G. (orgs) 'Retratos de Foucault, Rio de Janeiro, Ñau Editora, 2000 p.326) que diz: "escolhi a expressáo 'assujeitamento' ao invés de 'sujeitamento' para seguir a risca a idéia de Foucault: trata-se de um modo de realisagao do controle da subjetividade pela constituigáo mesma da individualidade, ou seja, da construgáo de uma subjetividade dobrada sobre si e cindida dos outros" Sobre as relances entre o pensamento de La Boétie e Foucault ver Amizade: Ensatas, Foucault, Niet%sche, Stirner.,., tese de livre-docéncia, PUC-SP, 2000, por mim apresentada e defendida.
10 Para CLaude Lefort, em "O nome do Um", em La Boétie nao há transigao da autoridade para a liberdade. Trata-se de uma inversao do desejo: deixar de querer o tirano é derrotá-lo. Há no poder um feitigo e, neste sentido, La Boétie, chamou atengao para os elementos sobrenaturais do poder.
11 Neste caso as reflexoes levadas a cabo por anarquistas como Godwin, Proudhon e mesmo Stirner, filiam-se a essa reflexao, ainda. que no anarquismo o vetor revolucionario tenha grande penetragao e, sem dúvida, predominancia, o que sob certas circunstancias, também deriva para o terrorismo.
Talvez tenha sido Errico Malatesta, entre os anarquistas, o autor que tenha melhor captado uma dissociagao da religiáo do Estado. Para ele o movimento anarquista nao pode excluir apnort os devotos de uma religiáo. Encontra na lutapela liberdade afinidades entre pessoas que vivem sob o jugo da autoridade. O movimento anarquista deveria incorporar todos aqueles que se véern oprimidos independentemente de coloiagao religiosa. A educagao na luta libertaria incluindo vivencias, solidaiiedades, ajudas mutuas, elaboragao de novos costumes e existencias é que situará os efeitos religiosos entre eles. Portanto, se havia em Maquiavel urna associagáo intrínseca, entre religiáo e governo de maneira positiva, em La Boébe e no anarquismo de Malatesta, com as diferengas notadas, evita-se prescrever quais serao as necessárias tarefas para a edificagáo do Hbertarismo.
13 Etaeruie de La Boétie. Dircuno da ssmdao volmtána. Sao Paulo, Brasiliense, 1987, p. 35.
14 Ver a esserespeito as sugestivasreflexoes de Salma Tannus Muchail "Sobre a amizade - considerares casuais", Sao Paulo, Margem n° 9, Faculdade de Ciencias Sociais PUC-SP/ EDUC/FAPESP, pp. 131-139 e deJeanStarobinski,^/^
em movimento, Sao Paulo, Companhia das Letras, 1992.
15 Michel de Montaigne. "Da educado das crianzas" in Ensaios, vol. I, Sao Paulo, Nova Cultural, Cole^ao Os pensadores, p. 76.
1S Ibidem, p. 78.
17 Segundo Montaigne, devemser as seguintes as materias para educar o corpo: exercícios, jogos, corridas, lutas, música, dan^a, cat;a, equita^ao e esgrima. O corpo deve estar habituado a todos os usos e costumes. Seguindo Cicero, afirma que desejaria formar o jovem envergonhando-se de seus trapos e espantándose com a riqueza. Seus conhecimentos devem servir-lhe, nao para mostrar o que sabe mas para ordenar seus hábitos, se é capaz de se dominar e obedecer a si pióprio.
18 A inspirado para La Boétie escrever "A servidáo voluntaria", de acordo com Montaigne, que foi seu amigo intenso durante quatro anos, veio da constatacao que os habitantes da Asia, acostumados a servir um único senhor, náo pronunciavam a palavra nao.
19 Michel de Montaigne, op. cit, p. 81.
20 Ibidem, p 84.
21 Ibidem, p. 82.
22 Ibidem, p. 83.
25 Foi comum na educacao anarquista que os jovens fossem estimulados a conhecer o mundo como aspecto principal da sua forma^ao.
24 Michel de Montaigne, op. cit, p. 89.
25 Sobre a influencia de Stirner em Nietzsche, ver inventario em Passetti op. cit., e em especial, Rüdiger Safranski, Nietzsche: biografía de uma tragedia, Sao Paulo, Geranio Editorial, 2001, pp. 97-119.
26 Segundo Bragar^a de Miranda na apresenta^áo de Textos Dispersos (Lisboa, Via Editora, 1979, pp. 26-27) de Stirner, "o Eu, o Único é uma dessas metáforas brancas que nao significam nada. Daí sua ambigüidade fundamental. Stirner pretendeu ctrnhar uma pakvra que cortasse com a abstrajo e o geral, que consegjisse designar o mdizível, o inexprimível, sem que este algo ¡mediatamente se evaporasse no nada; sem conteúdo, ela nao remetería para conceitos, nem permitida que se encetasse uma 'nova serie conceituai', socavando, simultáneamente, o terreno da metafísica onde medram os sistemas. (...) A metáfora branca, sem significado, é uma metáfora produtiva de diferenciales, oferece-se como passagem ao Tuque projetando-se nelaa encheria de conteúdo." Stirner quer saber o que ñzemos de nós e o que pretendemos saber como vontade de pessoa livre. Como bem lembrou Jean Barrué, em "Da educacao" (in Stirner, Mas O falso principio de nossa educado, Sao Paulo, Imaginario, 2001), em Stirner, como em Montaigne, prepondera o "faz valer-te a ti mesmo!".
27 Max Stirner. "Misterios de Paris" in Textos Dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979, p. 148.
28 Ibidem, p. 131. 25 Ibidem, p. 137.
30 Max Stirner. "Arte e religiáo" m Textos Dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979, p. 104.
31 Idem, p. 102.
32 Ibidem, p. 104. " Ibidem, p. 109.
34 Ibidem, p. 110.
35 Mas Stirner. ' Algumas observares provisóriasrespeitantes ao Estado fundado no amor" in Texto; Dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979, pp. 121,122
36 Náo fci por meracasualidade que o libertario William Godwin ao escrever o Política!justtce, no final do século XVIII, chamava a atengao para o fato das massas veremos homens letrados e governantes como o agrupamento composto pot homens portadores de virtudes, ou segundo as circunstancias, os verdadeiros corruptos e viciosos.
37 "As liberdades de pensamento, de crenga e de consciéncia, essas flores maravilhosas que sao a obra de tres sáculos, se fecharao no seio da térra para nutrir com suas preciosas seivas uma nova liberdade, a liberdade de querer. Saber, ter a liberdade de saber, tal era o ideal dessa época, ideal enfim alcangado no apogeu da filosofla. Agora o herói deve erigir ele mesmo sua fogueira e salvar sua parte de eternidade sobre o Olimpo. A filosofía poe um ponto final no capítulo do passado; os filósofos sáo os Rafael da época do pensamento; gragas a eles, os antigos principios encontram seu acabamento numa cintilante orgia de cores, e esse rejuvenescimento os faz passar do temporal ao eterno. Doravante, quem quiser conservar o Saber o perderá, mas quem o abandonar o encontrará. Só os filósofos sáo aptos a essa renuncia e a essa aquisigao: em pé diante das chamas ardentes, é-lhe necessário, como o herói, deixar consunur-se seu involucro mortal se quiserem dele libertar seu espirito ímortal". Mas Stirner. O falso prinápto de nossa edumfao. Sao Paulo, Imaginario, 2001, p. 73.
38 Max Stirner. O fabo Principio de nossa educafao. Sao Paulo, Imaginario, 2001, p. 74. 3' Idem, p. 74.
40 Ibidem, p. 78. 1,1 Ibidem, pp. 81-82
42 Ibidem, p. 83.
43 Paul Feyerabend. Contra o método. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1989, p. 44.
M É importante salientar que Feyerabend nao jecha com o anarquismo por considerá-los, ámaneirade Foucault, repleto de características que se encerram num "tipo de senedade e dedicagao puritanas que eu detesto" (op. cit. p. 25). Sua reflexao sobre o que chama anarquismo político está marcada pela sua leitura de Bakumn; por uma certa displicencia evitou constatar o pacifismo no interior dos anarquismos do mesmo século, como em Gochrai e Proudhon. Recorreu entáo ao dadaísmo: "um dadaísta nao feriria um inseto já para náo falar em um ser humano. Um dadaísta náo se deixa absolutamente impressionar por qualquer tarefa seria e percebe o instante em que pessoas se detém a sorrir e assumem aquela atitude e aquelas expressoes facíais indicadoras de que algo importante está para ser dito. Um dadaísta está convencido de que uma vida mais digna só serápossível quando comegarmos a considerar as coisas comkix^a e quando afastarmos de nossa linguagem as expressoes enraizadas, mas já apodrecidas, que nela se acumularam ao longo dos sáculos ('busca da verdade'; 'defesa da justiga'; 'preocupado apaixonada', etc.). Um dadaísta está preparado para dar inicio a alegres experimentos até mesmo em situagoes onde o alterar e o ensaiar parecem fora de questao (exemplo: as fung oes básicas da linguagem). Espero que, tendo conhecido o panfleto, o leitor lembre-se de mim como um dadaísta irreverente e nao um anarquista serio" op. cit pp. 25-26, grifos do autor.
resumo
O cristianismo e o Estado moderno destinaram a amizade á vida privada. Retomar sua importancia pública, alliela á formalldade estatatlzante sob o nome de amizade entre os povos, requer buscar uma ética existiencial atenta á política para nela nao sucumbir. O modelo da soberanía Inspirado |x>r Maquiavel é contraposto aos libertarismos ético e estático de La Boétie e aos escritos de Hax Stirner anteriores a O único e sua propriedade.
abstract
The Chrlstianity and the modern state have placed friendship in prívate lífe. Recover ¡ts public Importa nce, apart trom the state formality nnder the ñame of friendship among peoples, requires searchíng for an existen tía I ethics tliat conslders poiitlcs, so It wlll not parlsh wlth It. The model of sovereignty inspired by Maquiavel is the opposite of the elliic and aesthetlc llbertarlsms of La Boétie and the works of Max Stirner, prior to The Egc and Its Oiw.
Rastros estridentes de mil vozes assumem a forma das massas invisíveis apontadas por Canetti, diluidas na figurado vento. As escadarias na portado tribunal pululam em freqúéncias dispares e rostos anónimos. Latas de aluminio, perfazem dangas tortas e apressadas na água que coiTe no meio-fio da calgada, trombam com cigarros recém apagados e sáo, abruptamente, engolidas por bueiros imprevistos.
A espera escalda sob o sol. A espera encharca sob a chuva. A espera da vez sem vez reaparece no anónimo a ser catalogado, mapeado, esquadrinhado, inventariado. Máes sem dentes mastigam lanches vagabundos comprados do outro lado da nía, na fila exoessiva de carnes e ossos dispostos na vasta espera da apoteose do procedimento. O acougue daformalidade. Criancas sobem e descem as escudarías, tornando brinquedo degraus gastos da hierarquia supérflua.
Sons de conversas entrecortadas, por dúvidas concretas de mulheres com seus filhos, invadem o ar saturado de amarelo ocre. A água do meio-fio che ira a mijo. Urina reluzente. Criancas cagadas desassossegam ao sol. O burburinho aumenta. Lá dentro um agente da lei grita, impassível, um a um o número das senhas. 'Diante da lei há sempre um porteiro' disse Kafka. Pela
" Sálete de Oliveira é pesquisadora do Nu-Soi.
porta suntuosa e carcomida a fila se espreme e adentra pela antes lctrga e agora estreita passagem.
O coro de mil vozes bipartidas é esquartejado por inúmeros corredores labirínticos do impossível cansado do procedimento burocrático. Existéncias engolidas, digeridas, regurgitadas, evacuadas, pairam sob instrumentos de registro, identificagáo, violagáo, para melhor recontar uma verdade que já estava construida para fazer caber cada existencia no interior déla. Náo importa o que vibra, excede ou escapa. O julgamento individualizado deve ser capaz de outorgar a cada um o que de antemáo é validado como universal. Esta é a cota que cabe a todos os mortos-vivos que acreditam na universalidade da lei e no direito de justiga.
A miseria da espera por trás de portas taciturnas eclocle na miseria da sobriedade, na miseria que comporta qualquer tipo de esperanza. A esperanza, seja ela qual for, é desprezível, pois náo passa do paliativo fugaz que anda de máos dadas com o calmante peipétuo do coi upas so do perdáo. O que era um problema pessoal e intransferível entre pessoas concretas se esfuma para virar adere go regular na a bs traca o da rotina burocrática, com toda sua parafernália de atenuantes e agravantes perfilados neis mil fases de boletins de ocorréncia, inquéritos, diligencias, averiguagóes, provas e contra-provas, laudos médico-legáis, representagóes, sindicáncias, apuragoes, testemunhos, pareceres bio-psico-sociais, alegagoes parciais, alegajes fináis, sentengas, encarceramentos, acórdáos desfavoráveis, manutengáode sentengas, sobre-enea rce ra m e n tos.
O tribunal se alastra para muito além de seu territorio, sua porta de entrada, este beco sem salda, já era o pedago ínfimo perpetuado no cotidiano em várias casas que reinventam o tribunal da familia; em escolas que reconstroem o tribunal da instrugáo; no trabalho de cada um que edifica o tribunal da competéncia; na mídia que reedita o tribunal generalizado; na religiáo que santifica o tribunal da salvagáo; na universidade que descortina o tribunal cío esclarecimento; na políoia que legitima o tribunal da tortura; na prisáo que refaz o efémero acordo do tribunal na continuidade biológica; no Estado que coroa o tribunal do rebanho; na moral, toda e qualquer moral cuja sobrevivencia se perpetua na certeza atroz e suave que comega lá onde se inicia a sujeigáo imperceptível da sintaxe amedrantada de cada um de nós — todas as vezes que se eré e que se quer fazer crer, que o prescritível tribunal é a sombra segura na fugacidade da vicia.
O silencio do tribunal, cheira a oco. Náo há espago para o vazio í'epleto de sons, mesmo sons silenciosos. É o oco dos ruidos que fala mais alto nos tribunais. Sem ruidos! Existéncias sobre-contadas no dedilhar de escrivás reimprimen! falas descortinadas na santa confissáo de todo dia. Muros de labirintos do processo formal legal. Tribunal-parede. Tribu nal-párente. Tribunal-patente. Tribunal-ponte-que-leva-á-cruz. JULGAMENTO. Jugo do cimento de lodo. O lodo de códigos e leis. O lodo da moral. O trono da enorme bunda,
Texto extraído de Política e Perte: Crueldade, Plano Beveridge, Abdiáonumo Penal. Sao Paulo, Tese de Doutorado em Ciencias Sociais - PUC/SP, 2001.
resumo
A tradigáo do tribunal destinada a criangas e adolescentes, considerados Infratores, no Brasil, reserva a estes a lace moderna da transfigurado do julgamento justo parametrado por sen parceiro Ideal: a assepsia da mol te mensurável na proliferagao da vida sob a églde da seguranza. Adultos temem criangas porque as flechas arremessadas poi elas Incidem certelras, lá e aquí, onde sobra bunda e falta cu.
abstract
I he tradition of the tribunal directed to children and teenagers, considered transgressors, in Biazil, saves for them Ihe modem proflle of the transfiguration of just judgment, shaped for its ideal partner: the asepsis of death measurable in tile prollferatlon ol life under security Adults are afraid of children becatise the arrows tiirown by tliein reach accuralely liieii targel, tliere and here, where reniains butt and lack ass.
em circunstancias de paz, o homem guerreiro se lan^a contra si mesmo
Nietzsche
1
2£Ü2
o que nao entorna: se conforma.
nrnaldo anmnes
I
O período demarcado históricamente entre anos 1945 e 1989 foi proficuo na construgao de imagens. O mundo passara a ter dois polos de magnetismos opostos: 'Leste' e 'Oeste' se personificaran! em antagonistas de uma guerra global nunca deflagrada; 'fria' ás lentes das Relagóes Internacionais, vivida para alvos macartistas, recrutas soviéticos no sudoeste asiático, soldados norteamericanos no sudeste asiático. Alegorías em conilito, as ideologías, virulentas em suas semelhangas, forneceram vagueios de orientagáo para crentes em luta. No choque de metáforas, o muro que cindiu a excapital nazista, era principios dos anos sessenta, assume a carga de prova imagética da nova ordem planetária. Algumas quadras berlinenses rasgadas por uma armagáo de concreto encerravam a representagáo da humanidade cindida. Q uando as 1 ciscas do muro vém
Poeta, mestre em Ciencias Sociais pela PUC-SP e pesquisado! do Nu-SoL
ao chao, em meio á festa da reconciliagáo fraternal alema, o signo da fissáo entre comunistas e capitalistas é substituido por um novo arsenal de retratos e prefiguragóes: a Europa Unida, a Liberdade libertada, o apazigu amento com o Próximo.
A escolha de iguais, toleráveis em aparencias e aspiragóes, pressupóe, contudo, a produgáo ininterrupta de alteridades. A aceitagáo utópica do 'mesmo' náo prescinde da rejeicáo contundente do 'outro'. As fronteiras, limiares conformadores do Estado Moderno, náo se dissolvem, mas se atualizam em novas barreiras, 'virtualizadas' muitas vezes em rastreamentos eletrónicos, mas sempre rígidas em sua existencia. Dos metros do Muro de Berlim que se multiplicavam ñas milhas metafóricas do mundo bipolar, cancelas concretas se interpóem ao tránsito livre de indesejados. Dentre tais obstáculos, um outro muro se posta náo entre alvos germánicos, mas entre mexicanos, de um lado, e a promised ¡and estadunidense, do outro.
Centenas de quilómetros na fronteira entre México e Estados Unidos foram convertidos nos últimos anos numa faixa de bloqueio. Placas de concreto, ararne farpado, chapas de metal e um implacável deserto se colocara como desestímulo aqueles que intentam avanzar rumo ao norte. Em adigáo, há o trabalho da guarda de fronteira norte-americana que sobre-vigia as passagens permitidas e rastreia, com todo aparato tecnológico criado para desvelar a astucia clandestina. Se o pretendente a imigrante ilegal lograr iludir os guardas federáis e resistir aos coiotes, ao frió extremo da noite e ao calor insuportável do dia no deserto, ele ainda há de superar os novos rangers texanos, cujo esporte preferido parece ser cagar latinos pelas rochas e vazios da fronteira, fazendo uso das mesmas armas, rádios, localizadores e equipamientos de visáo noturna utilizados pela polícia estadunidense ñas bordas do México e pelas forgas armadas norte-americanas
alhures. A caga é, declaradamente, apenas de 'captura'; sendo, os ilegales, supostamente entregues ás autoridades para repatriagáo.
As vezes, mexicanos ludibriam todos empecilhos á sua entrada nos EUA, se ocultando nos fluxos permitidos entre os dois países. A descoberta recente de ¿migrantes ilegais sufocados num container, sugere que muitos já foram exitosos em furar os bloqueios se imiscuindo entre, ou fingindo ser, mercadorias. Estas sim podem circular com certa tranqüilidade liberal desde que o North American Free Trade Agreement (NAFTA) entrou em vigor, em 1994, abrindo as portas para que produtos e capital transitem entre os acordantes Canadá, EUA e México. Como uma zona de livre comercio que é, o NAFTA destina-se á liberalizagáo das trocas comerciáis e das transagóes financeiras, vedando o ir-e-vir de pessoas. Principalmente, mexicanos. E náo se trata de insurretos indígenas, mas de pessoas, homens e mulheres desejosos em realizar o 'sonho americano': ambicionara trabalhar para as empresas norteamericanas em troca de dólares norte-americanos.
O rechago náo é, pois, 'ideológico' ou metafórico. O muro México-EUA, feito de concreto, deserto, guardas, cáes e cidadáos norte-americanos farej adores, náo é uma imagem a dividir cosmovisóes 011 formas de vida. É um limite erigido de lato, ampio e contumaz, que objetiva repelir a alteridade. O mexicano, e também outros latinos, náo sáo meramente 'imagens do outro' repudiadas pelos WASP (White Anglo-Saxonand Pmtestant) americanos, sáo realmente urna alteridade invasora que mobiliza diversos setores e interesses políticos e económicos nos Estados Unidos. Há que se lidar cora an tí genos internos — afro-americanos e chícanos há muito estabelecidos — e com novos bárbaros que pressionam a fronteira. Sim, há fronteiras a defender e 'outros' a serem golfados pelo asco intransigente dos americanos temerosos e sempre ciosos de si.
Dos intoleráveis á moralidade ocidental, duas práticas emergem com destaque ueste eomego de século: terrorismo e narcotráfico, flagelos da humanidade'. A vinculagáo entre tais atividades náo é nova, e sua genealogía pode ser perscrutada, ao menos, retornando aos anos oitenta e ao discurso governamental norteamericano. Em 1986, o governo republicano de Ronald Reagan declara que o narcotráfico, entendido entáo como 'imperio clandestino conspiratório contra a saúde e a moral estadunidense', passara a ser tido como ameaca real á seguranza nacional norte-americana. O significado desta afirmagáo, já entáo, náo parecería vago aos que nutrissem alguma familiaridade com a historia das relagóes entre EIJA e América Latina. Conceito fundamental do modo de organizagáo política do Estado-Nagáo, a defesa da seguranga nacional para os norte-americanos ultrapassa a idéia de resguardo de suas fronteiras e seu entorno para projetar-se sobre todo o continente americano. Para os EUA, poténcia regional e mundial, os acóntecimentos distantes da 'Pátria-Máe' sao de vital interesse. Na lide da política externa, considerar algo uma 'ameaga á seguranga nacional' significa o aval interno (político, midiático e social) para possíveis intervengóes diplomáticas e militares nos 'focos' ou na 'origem' do problema. Neste momento, a terminología classificatória 'país produtor de droga/país consumidor de droga', cunhada aínda no governo do republicano Richard Nixon, nos anos setenta, é de extrema eficácia. Um país seria, assim, responsabilizado pela produgáo do 'mal', enquanto outro, vitimizado pela afronta exógena, teria o direito de se defender atacando a 'fonte'.
Diante do declínio do 'perigo vermelho' ao longo da década de oitenta, o 'demonio branco' da cocaína parecía assumir o espago que aos poucos era desocupado pelos insurretos de esquerda que povoaram as preocupagoes estadunidenses na década precedente e no com eco daquele decénio em curso. Nesta transicao de alvos, uma hibridizagáo ocorreu. Na Colombia, país localizado pelos EUA como 'centro produtor' primordial, as atividades das guerrilhas marxistas em longa luta pelo poder, passam a ser vinculadas pelo discurso governamental estadunidense ao tráfico de drogas. Grandes capos da droga agiriam em consonáncia com guerrilheiros, partilhando teiTitórios, colheitas, armas, dólares. A ameaga tradicional da Guerra Fría — comunistas em armas — reaparecía, assim, relacionada ao novo oponente: o tráfico de drogas. Confeccionava-se a idéia de narcoterror. Termo que tem utilizacáo ampliada quando, na passagem dos anos oitenta para os noventa, ¡números atentados e seqúestros patrocinados por empresários ilegais da cocaína, como Pablo Escobar, visam juízes e figuras públicas com o objetivo de pressionar o governo colombiano a náo aplicar a lei de extradigáo firmada com os EUA, na década de 1970.
Independente cía aproxímagáo proporcionada pelo discurso do narcoterror, conectando um perigo emergente a outro em dissolucáo ('ideológica', ao menos), o tráfico de drogas e o consumo de substancias psicoativas ilegais, assumiam a ponía das preocupacóes do governo norte-americano. Preocupagáo em nada novidadeira, uma vez que a elaboragáo de marcos legáis internacionais ele cunho proibicionista eleve em muito ao esforgo diplomático estadunidense, desde meados da década ele 1910. Os diversos acordos e convengóes celebrados entre os Estados do globo que pretendiam coibir, em intensidade crescente, o comércio e o uso de drogas, foram fomentados, em grande parte, pela iniciativa das delegagóes norte-americanas que exportavam ao mundo, um modelo de repressáo á ebriedade química calcado no púdico lastro cías práticas sociais moralistas domésticas e que colocava em marcha um eficaz instrumento ele rastreamento de 'comportamientos desviantes' levados á cabo por 'individuos perigosos', notadamente negros ('cocainómanos agressivos'j, mexicanos ('indolentes usuários da maconha'), chineses ('introdutores do opio'), irlandeses e eslavos ('bébados inveterados'). O narcotráfico despontava, nos governos do republicano George Bush e do demócrata Bill Clinton, como inimigo preferencial a ser combatido dentro de casa (no duplo sentido de 'dentro do país' e 'dentro das familias, escolas e comunidades locáis1) e no além-fronteiras. Contudo, outro 'anómalo' despontava dividindo atencóes: o terrorismo extremista islámico.
Proveniente da vociferagáo contra o 'Grande Sata' de Khomeini, nos anos oitenta, o ativismo islámico anti-americano náo se revela táo-somente com o triplo atentado aos Estados Unidos em setembro de 2001. A laicizagáo dos países islámicos, tónica dos governos pós-coloniais na África e no Oriente Medio, cedia espago para movimentos políticos de inspiragáo mugulmana 'puritana', desde ao menos os anos 1970. A Revolugáo Iraniana e o assassinato de Sadat sáo marcos deste crescimento. Os alvos deste islamismo de luta sáo constituidos nos intersticios de temas ancestrais traduzidos e reapresentados: Israel e os Estados Unidos sáo infiéis em térra santa, imperialistas em térra empobrecida.
Após o primeiro ataque ao World Treide Center, em 1993, a ameaca de 'ataques extremistas'é langada para os norte-americanos corno uma possibilidade concreta em tempos de guerra na Bosnia, no qual internacionalistas arriscavam prefigurar que os embates do futuro seriam entre culturas antagonistas. A crenga na 'guerra cirúrgica' criada, fazia pouco pela intervengáo no Iraque, se apresentava tolerável ás sensibilidades ocidentais, tornando ainda mais impactante a possibilidade de uma 'guerra suja', na qual o inimigo náo se exibe com insignias. O intuito do terror fundamentalista é causar destruigáo e mortes que náo sao indiscriminadas: civis sao o "povo (do) inimigo'. Ou, como testemunharam atónitos os estadunidenses com a explosáo de Oklahoma, os cidadaos norte-americanos podem ser também inimigos, Inimigos que se multiplicam, sem rosto, mas com perfil: a produgáo de alvos trabalha com afinco para 'localizar' metas de ataque. As embaixadas americanas explodidas na Africa, em 1998, seguidas da incursáo suicida contra um navio da marinha estadunidense no Golfo Pérsico sáo creditadas a um homem: O sama bin Laden, filho de uma familia Saudita bilionária. Considerado um homem abnegado por abrir máo de luxuosa vida para 1 utar contra os soviéticos no Afeganistáo nos anos oitenta, o filho desgarrado do clá endinheirado, já contava com uma ordem de prisáo editada pelo governo estadunidense antes de ser responsabilizado pelos eventos em Nova Iorque e Washington. Seu rosto já estampava uma mensagem de captura veiculada pelo site do FBI, versáo tecnológica dos 'Wanted'dos caubóis de outrora.
Assistimos aos incontáveis video-tapes das torres gémeas sucumbindo, como se a CNN passasse a exibir filmes-catástrofe. Mortos, náo os vimos. Somente nomes, inclusive de latinos. Ilegales, mas inocentes vítimas. Os responsáveis estavam á máo, ainda que distantes, em galerias subterráneas do sudoeste asiático. O contra-ataque dos EUA é montado sobre o susto em ser alvejado em casa e sobre a imprecisáo legal de se combater um agressor sem pátria. O republicano George W. Bush, tece a reagáo identificando um Estado inimigo, condigáo fundamental para uma declaragáo de guerra que seguisse o direito internacional. Tal Estado era o Afeganistáo, náo seu povo, mas a 'milicia' (e náo 'governo') que o controlava: o Taleban. Os radicais que forgam mulheres a andar de burea e que implodem budas milenares, cometem o crime insuportável de esconder Osama e sua organizagáo terrorista, a Al Qaeda.. A debilidade retórica de Bush Jr. é amparada pela argúcia do colega inglés, o trabalhista Tony Blair.
Dando a tónica do que significava o atentado e a forga de sua reagáo, Blair destilou um discurso civiliza torio de nova feigáo: em tempos de multiculturalismo e defesa dos direitos universais do Homem, os inimigos náo podem ser os mugu Imanos, mas sim, os radicais islámicos que 'distorcern a fé' e, pior, renegam as universalidades inquestionáveis da paz na Terra: liberdade e democracia, Os terroristas sáo, assim, violadores do Ocidente; náo mais o Ocidente geográfico, mas o Ocidente moral que se espalha por todos os rincóes do mundo representado por ONGs, empresas, dólares voláteis, coca-colas, e novos países que se formam (ou lutam para se formar) ambicionando se tornar 'Estados Modernos*. De fato, os mugu Imanos náo sáo os inimigos, já que todos tém direito a cultuar seu deus, desde que seja na intimidade. Os 'alvos' sáo, ao contrario, representantes de um 'arcaísmo contra-histórico', radicais do passado, antagonistas do futuro. Sáo, em suma, a alteridade intolerável.
Alteridade moral que peca. Peca porque ataca o projeto de progresso desterritorializado (náo mais 'ocidental1), peca porque viola os direitos humanos, peca porque denigre Deus em sua violencia, peca porque se financia, em parte, com dólares conseguidos em troca da preciosa heroína nascida dos campos de papoula do Afeganistáo. Afrontas á moralidade ocidental, os alvos de hoje sáo compostos pela alianga entre a 'corrupgáo do corpo e da alma', representada pelos Venenos do tráfico', e a destruigáo dos magnos valores da convivencia fraternal entre povos democrática e umversalmente conectados. Expelidos também devem ser, os párias da Humanidade.
Os grupos que traficam armas ou drogas, e as redes de terroristas que declaram guerra ao Ocidente sáo consorcios privados ilegais perfeitamente afeitos ao mundo midiatizado e 'global'. Traficantes transitam com desenvoltura pela superficie e pelas entranhas do capitalismo, ao tempo em que náo se pode negar o desenibarago com que 'extremistas' manejam seu capital especulativo e pilotam jatos comerciáis. Nesta guerra de novo tipo, Estados perseguem inimigos fluidos, presentes lá e cá, sem pouso fixo, com mobilidade transnacional. 'Extremistas' parecem reivindicar urna utopia islámica; traficantes anseiam pela manutengáo da criminalizagáo de suas atividades que maximiza infinitamente seus lucros. E a batalha contra o irrefreável se cristaliza como combate a todos. Todos os inconformes, dissonantes, refratários.
Uma onda de expurgos se anuncia ñas medidas de excegáo justificadas pela prevengáo ao terrorismo. Cidadáos aflitos apóiam a suspensáo de direitos civis em nome da seguranza, exibindo, num lampejo hobbesiano, que a propriedade e a protegáo á vida lhes sáo mais fundamentáis que a 'liberdade'. Na varredura, as classes perigosas, sempre atualizadas e remodeladas, continuam a ser alvo do controle governamental e da ojeriza social. Intolerancias catalizadas por Estados também consorciados em máquinas híbridas semi-privadas, ampliando os canais de circulagáo do capital pelos veios virtuais das bolsas de valores e pelas searas concretas dos muros prisionais e dos rxovos grilhóes eletrónicos. Consorciada parece, também, ser a nova utopia de Estado, multi-étnico, pluralista, democrático: Estados-modernos convertidos em atualizado modelo supra-estatal. 'Supra', e náo 'pós' estatal. Aliás, será possível falar em algo como 'pós-nacionalidade' quando vemos palestinos, bascos, israelenses, ex-iugoslavos, curdos, entre outros, lutarem pela construgáo ou consolidagáo do seu Estado, nos moldes modernos de "um territorio, uma cultura"? Será possível defender algo como uma 'sociedade civil pós-nacional' quando novos países independentes surgem, comoTimor Lorosae, tutelados e confeccionados pela ONU a partir de um receituário de Estado, que recomienda a forja de trés poderes, a adogáo de urna lírrgua ou de línguas oficiáis, a i m pos i cao de uma democracia representativa que jamais fez parte da organizagáo política local, entre outras importagóes? Será possível sustentar que exista tcil 'supra-nacionalidade' quando o paradigma desta construgáo 'pós-nacional' é a Uniáo Européia, modelo de Estado-nacional ampliado que instaura um 'parlamento supranacional', um 'direito comunitário', uma 'corte de justiga comunitária' e até mesmo Torgas armadas supranacionais?
No multiculturalismo excludente desta utopia democrática de Estado, unidades de soberanía clássica se interiigatn política e económicamente, constituindo agregagóes centralistas calcadas no modelo kantiano de um super-Estado pacificador, que nada mais é do que um novo alvéolo de soberanía, onde um governo controla um territorio ampliado e sua populagáo, sem importar se este Estado leva prefixos pretensamente ¿novadores ou se seus 'cidadáos' sáo constituidos por povos semelhantes irmanados no respeito mutuo a seus direitos transcendentals.
Nodulos avessos ao outro, os super-Estados do idilio democrático globalizado sáo territorios para que os 'próximos' se congreguen!, erigindo barreiras ao tránsito indiscriminado do intolerável. Intoleráveis sáo mexicanos, contestadores anti-globalizagáo, libertários, criangas transformadas em 'menores' e todo um rol de práticas constantemente repelidas, negadas, instauradas á margem, ainda que insuportavelmente imiscuídas, neste campo da moral unlversalizante que se forma.
resumo
Ensato em trés movlmentos sobre muros antropoémicos, substancias ¡legáis, ¡migrantes ¡legáise projetosde su peí Estados.
abstract
Essay In three movements about anthropoemic walls, ¡Ilegal substances, ¡Ilegal iniru¡giaritsand projeLtsof supei-
states.
equívocos dos movinientos sociais anti-globalizagáo
josé maria carvalho ferreira2
Neste mundo em que vivemos, cada vez mais desesperado e angustiado pelas misérias e desgranas que cria, as reflexóes e as práticas emocionáis e maquiavélicas sobrepóem-se sobremaneira áquelas cuja impotencia histórica as torna objetos de morte e de genocidio de uma engrenagem que llies escapa. Outros seres humanos, entre os quais se incluem os que se autodenominam de anarquistas ou libertarios, com alguma lucidez e revolta tentam inverter esse processo, mas até hoje nada mais sáo que seres humanos impotentes face a uma tragedia histórica que nos vai destruindo lentamente. O dia 11 de Setembro de 2001, embora pese os seus simbolismos midiáticos espetaculares, nada mais é que um dos efeitos ou derivacóes negativas de uma sociedade que se estrutura através da morte, da violencia, do crime, da guerra e do terror. Num passado recente foram as populagóes indígenas e os escravos africanos que foram assassinados e colonizados pelo terror das baionetas dos exércitos e dos Estados; no presente e provavelmente no futuro, as vítimas do genocidio e da barbarie sáo os seres humanos alienados e atomizados que habitam o planeta Terra, que nada mais sáo que objetos manipulados por um poder sem rosto e abstrato.
Por tudo isto, quando falamos, agimos ou escrevemos sobre a problemática da globalizacáo devenios ter sempre presente uma serie de fatores que muitas vezes dáo origem a uma serie de equívocos, inclusive, entre aqueles que se integram no imaginário anarquista e libertario. Na atualidade, a visibilidade e a pertinencia histórica dos movimentos sociais antiglobalizagáo sáo um exemplo flagrante do que acabo de referir. Para tornar mais claro o que pretendo desenvolver, em primeiro lugar debrucar-me-ei sobre os conteúdos e as formas da globaliza cao que dáo sustentabilidade á a cao reivindicativa e revolucionaria dos movimentos sociais antiglobalizagáo. Num segundo momento, tentarei discernir sobre as contradigóes e os conflitos que atravessam os diferentes tipos de agáo coletiva que integram estes movimentos.
Características tendenciais da globalizacáo
Se há algo que nos pode aproximar de um conhecimento mínimo dos efeitos da globalizagáo na vida quotidiana das pessoas á escala mundial, sáo sem dúvida as formas padronizadas de comportamento humano em termos sociais, económicos, culturáis e políticos. O comportamento humano em volta do valor e das fungóes do dinheiro enquanto elemento de troca mercantil, mas também como elemento de riqueza, de poder e de sobrevivencia histórica, é, nesta assungáo, emblemático.
Se generalizarmos essas fungóes e o valor simbólico do dinheiro para o que é convencional chamar a prática sofisticada e complexa do capitalismo financeiro, depressa nos apercebemos da sua importancia nos mecanismos de exploragáo e de opressáo do capitalismo á escala universal. Pela viei das agóes, das fusóes, das aquisigoes e concentragoes de um capital sem rosto e abstrato, as transnacionais investem, acumulam, enriquecen!, empregam, desempregam, criam empresas, fecham empresas, sem que a grande maioria dos trabalhadores assalariados possa intervir ou decidir sobre esse processo. Fábricas, tecnologias, capitais, trabalhadores assalariados sáo localizados, deslocados ou realocados num espago-tempo em que os dominios do virtual e do real muitas vezes se confundem. A "pequenez dos trabalhadores assalariados" revela-se cada vez mais importante face á onipoténcia das transnacionais, cujas atividades económicas se inscrevem nos setores primario, secundario e terciário. Embora pese todas as diferengas de salário, de direitos e deveres, de condigóes de trabalho, a dimensáo desta tendencia de padronizagáo económica-financeira afeta negativamente todos os trabalhadores assalariados do mundo. Como escravos modernos e objetos manipulados pelos designios das transnacionais, a emergéncia de uma identidade coletiva dos trabalhadores assalariados é, no meu entender, inais importante que uma suposta divisáo ou desigualdade de incidencia local, regional ou nacional,
Em sintonía estreita com este processo histórico de capitalizagáo dos seres humanos, a natureza vem sendo objeto de uma transformagáo desenfreada. A crescente integragáo da ciencia e da técnica e o modelo de crescimento e de desenvolvimiento baseaclo no ferro, no vidro e no cimento tém contribuido para a destruigáo irreversível dos solos, ríos, mares, florestas, recursos naturais, espécies animais e vegetáis que sáo essencíais para a manutengáo do equilibrio ecossistémico da natureza, mas sobretudo para a própria perenidade histórica dos seres humanos que aínda tém o nome de "gente" ou de "pessoas". O capitalismo e, por conseguinte, a globalizagáo em associagáo estreita com os ditames da sua racionalidade instrumental, transforma a natureza num simulacro de vida e num caixote do lixo de uma especie humana acéfala, atomizada e estupidificada. Neste sentido, a globalizagáo do capitalismo é a destruigáo do planeta, porque ela produz seres humanos que náo se identificam como a sua esséncia biológica e sociológica, provocando perversóes que culminaráo na sua morte e das outras espéeies animais e vegetáis.
Do mesmo modo que estas perversóes da tendencia económica-financeira afetam sobremaneira todos os trabalhadores assalariados do mundo e todos aqueles que vivem á sua margem, também náo é menos verdade que no quadro da racionalidade instrumental do capitalismo, a sobrevivéncia histórica deste só é possível desde que persista a capitalizagáo de pessoas, mercados, tecnologías, matérias primas, recursos naturais e dinheiro, a única forma consistente para que seja materializada a sua expansáo territorial e geográfica. Os ditames do Banco Mundial, do FMI e mais recentemente da OMC e das reunióes midiáticas do Grupo dos 8 (G8) sáo os contornos institucionais hegemónicos de urna regulagáo e controle mundial da economia. A crise do Estado-Nagáo, no que concerne á sua manifesta incapacidade em suprir as insuficiencias de regulagáo do mercado através de políticas económicas keynesianas, é uma prova sintomática da sua fraqueza perante a forga estruturante das transrracionais.
Para a maioria dos analistas, a forga irrefreável do capitalismo é subjacente á forga onisciente do mercado que tudo compra e vende: pessoas, dinheiro e mercadorias. Ñas últimas décadas, a mercadoria que mais se compra e vende é sem dúvida a informagáo. É um tipo de mercadoria imaterial, sem rosto, abstrata, cujos signos e significados sáo hoje a grande esséncia da estrutura dos custos de produgáo diretos e indiretos da generalidade dos bens e servigos, tornando-se, em última instancia, a base da opressáo e da exploragáo capitalista. E ueste sentido, náo estamos nos limitando em termos da energia, da informagáo e do conheci-rnento que todos os trabalhadores assalariados do mundo despendem nos locáis de trabalho, mas sobretudo nos referirnos a todos os aspectos da sua vida quotidiana que é atravessada pela socializagáo da informagáo.
Logo a seguir á forga do sistema económico-financeiro e á catástrofe ecológica por ele gerada, a globalizagáo torna-se também cada vez mais visível no dominio sócio-cultural. O poder dos media está justamente na sua capacidade em difundir e socializar a informagáo em escala universal. Como acontece com todas as mercadorias, a informagáo é objeto de padronizagáo e capitalizagao. Só que, para além disso, é também um fenómeno da aculturagáo e de aprendizagem sócio-cultural. Ainda que em situagóes discrepantes, corno ocorre num bairro pobre no Cairo e Sáo Paulo ou num bairro rico em Nova lorque, a simbologia da informagáo veiculada pelo poder midiático introduz-se paulatinamente nos neurónios de todos os individuos que habitam o planeta Terra. Assim, a globalizagáo náo se explica exclusivamente pelo fato de se assistir a uma tendencia a trabalhar, produzir e consumir da mesma maneira, por vestir as mesmas calcas, ver televisáo todos os dieis ou beber a mesma coca-cola, mas sobretudo pela mesma maneira de pensar e agir em relagáo á natureza, ao trabalho, ao dinheiro, ao Estado, ao capital e á religiáo.
Hoje, socializar a informagáo implica transformar os seres humanos em mercadorias na totalidade do espago-tempo da sua vida quotidiana: nos locáis de trabalho, nos cafés, ñas pragas, nos jardins, nos transportes, na familia, inclusive quando mergulham no asfalto da estrada da miseria e na ignominia do escravo pós-moderno que pede esmola e se considera um beneficiado na situagáo de pobreza. A assungáo naturalista desta realidade está bem presente nos olhares e na indiferenga com que £is diferentes pessoas se cruzam nos grandes centros urbanos dos países capitalistas desenvolvidos e nos países capitalistas considerados subdesenvolvidos. A padronizagáo do pensar e agir reporta-se também ao conteúdo das relagóes interpessoais. Quem náo for suficientemente competitivo, violento, eficiente e obediente é sancionado negativamente pela brigada dos bons costumes, pela polícia ou, em caso extremo, pelas prisóes, hospitais psiquiátricos e a exclusáo social.
Portanto, se o espago-tempo de estruturagáo da informagáo atravessa os nossos neurónios de uma forma sub-reptícia quando somos levados a pensar da mesma maneira ao codificar e decodificar as linguagens que nos relacionan! com o outro ou os outros, náo é menos importante observar a sua influencia ñas formas padronizadas de integragáo e de controle social. Ou seja, ao perceber do mesmo modo o léxico da informagáo que é contrária á denúncia e á crítica radical do sistema social vigente, os seres humanos tornam-se adaptáveis ás normas e regras sociais persistentes. Náo é de admirar assim que, pela via da omissáo ou da adaptagáo identitária ao sistema social vigente, tornem-se expoentes da integragáo e do controle social, sem que para isso sejam induzidos a tal agáo individual e coletiva pelas estruturas repressivas clássicas: polícia, tribunais, exército, ideologías, governos, religioes.
Aínda que possamos afirmar que as características atuais da globalizagáo sáo menos visíveis nos aspectos culturáis e políticos, porque a forga reativa e a resisténcia das religioes monoteístas e dos valores tradicionais do Estado-Nagáo conflitam com os designios hegemónicos dos valores baseados no lucro, no dinheiro e na troca mercantil das empresas transnacionais, quer um quer outro tenderáo a integrar-se na lógica destas. Entretanto, os negocios do petróleo e do material de guerra, assim como das várias drogas, demonstra á saciedade da cuinplicidade subsistente entre as transnacionais, as religióes e o Estado-Nagáo, a maioria dos quais bascados em governos despóticos de maioria crista ou islámica. Este tipo de cumplicidade entre o poder hegemónico do capitalismo mundial e formas arcaicas do capitalismo está, no entanto, gerando grandes contradigóes.
Várias razóes estáo na origem desse fato. Em primeiro lugar, o Estado-Nagáo clássico está perdendo a legitimidade do controle e administragáo político-administrativa do seu territorio, para além de já ter perdido grande parte das suas fungóes de bastiáo da política económica a favor das transnacionais. A perda de legitimidade do Estado-Nacáo sobre a sociedade civil, assim como a crescente bu roerá tiza cao e inutilidade das suas políticas sociais, traduz-se num fator de deterioragáo política da burocracia estatal.
Todavía, ti forga estruturante e avassaladora da globalizagáo decorrente do sistema económico-financeiro, das novas tecnologías, da informagáo e do poder midiático náo se coadunam com realidades políticas e culturáis inadequadas e ultrapassadas. As guerras regionais na ex-lugoslávia e no Kosovo, e mais recentemente no Afeganistáo, sáo formas diferenciadas de resolugáo dos mesmos problemas: identificar os sistemas políticos, culturáis e sociais ao sistema económico-financeiro das transnacionais. Para estas, podem existir Estados, pátrias, religióes e ideologías políticas contrastantes, mas desde que submetidas á lógica de um Estado universal alicergado no valor do dinheiro, do mercado, da mercadoria e do lucro. Todos os meios sáo bons para atingir esses grandes objetivos, desde que feitos em nome da democracia e do capital. Por isso é que a guerra, a destruigáo do planeta Terra, o terrorismo, os genocidios, a fome, a miseria, o crime e a violencia que ocorrem atualmente sáo algo que é justificado e legitimado por esse Estado mundial em formagáo (NATO; ONU; OMC; Banco Mundial) e pelas suas democracias representativas.
Esta situagáo de confliro decoiTente de estágios de desenvolvimentos capitalistas diferenciados é fácil de superar quando a mudanga se faz pela via do sistema económico-financeiro, mas é muito mais difícil de realizar em termos sociais, culturáis e políticos. As resistencias á globalizagáo provem da dificuldade em instaurar regimes políticos baseados na democracia representativa, na medida em que para sustentar e regular as contradigóes e os antagonismos gerados pela opressáo e a exploragáo nos países capitalistas menos desenvolvidos só é possível através de regimes políticos ditatoriais, na maioria dos casos militares e teocráticos. A irreversibilidade (?) da globalizagáo determina que náo possam mais existir mecanismos de natureza política, cultural e religiosa que inviabilizem a transformagáo de todos os seres humanos em objetos de produgáo, de distribuigáo e de consumo de mercadorias. Por isso, quando existem situagóes políticas, sociais ou religiosas contraproducentes ou condicionadoras desse processo histórico, os guardióes político-militares das trans-nacionais dáo-se ao direito legítimo de provocar ou intervir em tocias as guerras regionais ou locáis em prol desse grande objetivo.
Contradigóes e conflitos entre os movimentos sociais antiglobaliza§áo
Numa primeira aproximagáo das contradigóes e conflitos gerados pela globalizagáo pode-se afirmar que quase todos evoluem para configuragóes polarizadas á volta de quatro dimensóes básicas. A primeira reportase ás perversóes do desemprego, da precariedade da vinculagáo contratual, dos salários baixos, pobreza e exclusáo social decorrentes da degradagáo da condigáo-fungáo do trabalho assalariado. A segunda deriva da degradagáo do ambiente e da destruigáo da natureza em termos da diminuigáo drástica da carnada do ozónio, da poluigáo atmosférica, da destruigáo massiva de recursos naturais, cujos sintonías sáo cada vez mais visíveis com a tendencia crescente de ocorréncia de catástrofes e calamidades naturais. A terceira, situa-se nos antagonismos e contradigóes provenientes das lógicas de desenvolvimento e crescimento económico diferenciados que sáo prioritariamente centrados ñas lógicas de administragáo político-administrativa e territorial do Estado-Nagáo ou aquelas que sáo decorrentes de uma administragáo político-administrativa e territorial de ámbito mundial, cujos objetivos se identificam com as tendencias de dominagáo de organizagóes e instituigóes de características transnacionais. Por fim, uma quarta dimensáo situa-se nos fenómenos de resisténcia radical á mudanga imposta pela globalizagáo em relagáo a países, regióes e continentes que ainda náo atingiram a modernidade capitalista. Essa resisténcia baseia-se essencial-mente na tradigáo cultural e religiosa, na medida em que face á situagáo de miséria e pobreza da maioria das populagóes desses países, regióes ou continentes, esses fatores funcionam como os únicos "analgésicos" ou uma "tábua de salvagáo" de uma tragédia histórica de opressáo e exploragáo estimulada pela modernidade e, rriais recentemente, pela pós-modernidade da globalizagáo.
Qualquer uma dessas dirnensóes potencializa conflitos e agoes coletivas de ámbito local, regional e nacional, mas a sua configuragáo ideológica e religiosa só tem cabimento no quadro de um imaginário coletivo de natureza universal. Por isso, na luta contra os aspectos negativos da globalizagáo persistem quase sempre os mesmos denominadores comuns: o Estado, o capitalismo, as políticas dos governos dos países mais desenvolvidos e as instituigóes e organizagóes de caráter transnacional. O inimigo é comum, só que as solugóes para o reformar ou extinguir sáo diferenciadas. Náo admira, assim, que se assista á integragáo e á convergencia de ideologías e práticas contrastantes na construgáo de um imaginario coletivo contra a globalizagáo e depois no contexto das manifestagoes surgem conñitos e equívocos inesperados entre os múltiplos manifestantes. Os exemplos das manifestagoes de Seattle, Praga, Gotemburgo, Nice e Génova sáo elucidativos a esse respeito. A partir de um leque político e partidario que vai da esquerda á direita, dos pacifistas aos violentos, dos reformistas aos revolucionários, dos grupos ecologistas aos militantes das ONG's e grupos religiosos, passando pelos anarquistas e libertarios, todos partioipam com a sua ideología e a sua prática no mesmo espago-tempo da luta contra os aspectos negativos da globalizagáo e, contra o poder económico, social, político e cultural que lidera esse processo histórico.
A explicitagáo de posigóes contrastantes far-se-á inevitavelmente com o decorrer da luta contra a globalizagáo, mas, entretanto, os paradoxos e os equívocos emergem com relativa visibilidade. Sáo equívocos que se relacionan! com os objetivos das lutas, os conteúdos e as formas de organizagáo que sáo desenvolvidos pelos movimientos sociais antiglobalizagáo. Entre a esquerda e a direita, entre ecologistas e apologistas do progresso e da razáo, entre os reformistas e os revolucionários, ter objetivos centrados na persisténcia e mudangas hipotéticas do Estado-Nagáo, do capitalismo e da importáncia inexorável da existencia de Deus, aínda é admissível, mas em relagáo aos que se consideran! anarquistas e libertários, é um absurdo histórico. Por outro lado, em termos organizacionais já está sobejamente demonstrado que sindicatos, partidos e igrejas primam por relagóes sociais e processos de socializagáo assentes na dominagáo e na autoridade hierárquica. A confusáo e conflitos gerados entre espontaneísmo e auto-organizagáo, violéncia e pacifismo, lideranga e hierarquia, com os pressupostos da democracia direta, é continuar a agir coletivamente de forma mecánica, esquecendo que a democracia direta só é possível com individuos livres e soberanos e que sáo capazes de viver simultáneamente a revolta e a lucidez.
Nao obstante sabermos da tragedia histórica que estamos vivendo e náo obstante a nossa impotencia, o sentido histórico da utopia anarquista continua mais válido do que nunca. Eu afirmo isto por duas razóes fundamentáis. Em primeiro lugar, porque os seus pressupostos de emancipagáo social estáo fundamentados na solidariedade, na cooperagáo, no amor, na liberdade e na fraternidade. É uma opcáo societária simultáneamente societária, filosófica e ética e que pode inverter os pressupostos da sociedade capitalista e do Estado, baseados na competigáo, na violéncia, na guerra, no crime, na alienagáo e atomizagáo dos individuos. A transversalidade destes pressupostos é visível nos dilemas e perversóes estruturados pela globalizagáo. Neste capítulo, é chegado o tempo histórico dos anarquistas e libertários pensarem e agirem como atores universais.
E um desafio enorme, porque esse grande objetivo que sempre acompanhou o imaginário individual e coletivo dos anarquistas é algo que nos sitúa nos dominios da realidade e da utopia. Para evoluirmos nesse sentido, na minha opiniáo, há de se ultrapassar os equívocos que sáo, aínda, alimentados pelos mitos da revolugáo, da luta de classes, do poder e da instauragáo de uma sociedade anarquista.
Pela experiencia histórica acumulada ao longo de séculos, pensar que é possível realizar uma revolugáo social, cujas mudangas substantivas implicam rupturas e descontinuidades políticas, económicas, sociais e culturáis de tipo absoluto é, no mínimo, um absurdo, na medida em que nós, enquanto seres biológicos e sociais, somos irredutivelmente uma construgáo histórica estruturada pelo passado, o presente e o futuro.
Nesse processo, as mudanzas podem ser mais radicáis ou mais reformistas, mas isso nao implica necessariamente que possamos eliminar mecánicamente, de um dia para o outro, da cabega dos individuos e grupos que constituem todas as sociedades, as relagóes sociais, os processos de socializacáo, os valores, a moral e a ética que estao na origem do Estado e do capitalismo e, lógicamente, na base de todas as formas de opressáo e exploragáo entre os seres humanos e entre estes e as outras especies animais e vegetáis. Portanto, a alternativa entre reforma e revolugáo, como se fosse uma hipótese de escolha absoluta entre o bem e o mal é um falso dilema, pois toda e qualquer agáo de mudanga inserida no processo histórico das sociedades implica sempre uma situagáo estrutural e funcional de interdependencia e complementaridade entre ambas.
Hoje, com as mudangas operadas no seio do capitalismo e do Estado em escala universal, é difícil discernir da homogeneidade e da disparidade subsistente ñas situagóes de dominagáo e exploragáo. É um fenómeno que emerge rías múltiplas realidades da condigáo-fungáo de trabalhador assalariado no sentido genérico, mas é também visível ñas múltiplas relagóes sociais entre homens e mulheres, entre pais e filhos, entre os próprios trabalhadores assalariados, entre ricos e pobres, entre integrados e excluidos na ordem social vigente, entre povos e etnias diferentes. A multidimensionalidade das contradigóes e conflitos que podem desenvolver agóes individuáis e coletivas que tendem para a emancipagáo social náo pode ser restringida a qualquer grupo ou elasse social, mas a todos os individuos que se integrem num processo histórico de luta contra todas as formas e conteúdos de dominagáo e exploragáo entre seres humanos e entre estes e as outras especies animais e vegetáis. Neste sentido, toda e qualquer luta de incidencia coletiva deve ter presente uma assungáo de participagáo e de decisáo para a qual confluem natural e espontáneamente todos os individuos potencial-mente livres e soberanos.
Outro mito que provoca muitos equívocos entre os anarquistas e os libertarios é a extingáo do poder através de uma hipotética revolugáo social, como se o poder, enquanto manifestagáo política inscrita ñas nossas deeisoes e participagóes no contexto de qual quer grupo, comunidade ou sociedade, náo implicasse sempre uma relagáo social. Ora como sabemos pela nossa vivencia quotidiana, em toda e qualquer relagáo em que participamos náo existem situagóes plausíveis de simetría e reciprocidade absoluta, na medida em que as nossas diferengas individuáis irredutíveis náo o permitem. Na mesma medida, enquanto individuos tálamos, sentimos, agimos em fungáo das estruturas e das fungóes que temos em qualquer sociedade, também pensamos, agimos e sentimos a partir de nós mesmos. Uns falam mais alto que outros ou gostam mais da cor azul, verde ou vermelho. Sáo relagóes sociais que tem uma incidéncia informal e espontánea e que nao podem ser objeto de formalizagáo e institucionalizagáo estatal ou societária. Neste tipo de relagóes sociais, queiramos ou náo, persistan sempre formas de poder que podem náo implicar dominagáo e coagáo. Portanto, quando os anarquistas ou os libertarios afirmam ser contra o poder e, lógicamente, sáo apologistas da sua extingáo, esquecem-se, quase sempre, que o poder, enquanto relagáo social assimétrica, náo existe exclusivamente ñas instituigóes e estruturas do Estado e do capital, mas também que ele é imánente á nossa condigáo humana, social e política. Ao integrá-lo na nossa lógica de emancipagáo social, temos é que socializar o poder de uma forma livre e soberana, solidária e fraterna, extirpando-o de todas as formas e conteúdos de natureza formal e institucional que assume na autoridade hierárquica e na dominagáo.
Finalmente, importa referir o mito da realizagáo da sociedade anarquista. Corno o sentido etimológico da palavra anarquia indica, nos pressupostos básicos que a informam subsiste a inexisléncia de qualquer governo ou autoridade hierárquica sobre qualquer individuo ou grupo de uma dada sociedade. Neste sentido, podemos pensar o conceito de anarquia como uma filosofia, uma ética e até como um projeto hipotético de sociedade. Todavia, ao contrario do que ocorreu com o comunismo, o fascismo, o socialismo e o capitalismo, a anarquia etimológicamente náo sendo um ismo, pode e deve ser interpretada, explicada e vivida conforme cada sensibilidade e personalidade individual, como vivida e praticada por cada grupo ou sociedade. Mas, também por isso, a anarquia nunca poderá ser transformada num dogma, numa doutrina ou religiáo. Por outro laclo, nunca qualquer individuo ou grupo se pode arrogar o dono de uma filosofia, de uma ética ou de um projeto de sociedade anarquista onde náo existiráo deuses nem amos. Pelas razóes sublinhadas, nunca poclerá existir uma sociedade anarquista no sentido finito do termo, na medida em que a liberdade, o amor, a fraternidade, a cooperagáo e a solidariedade náo tém limites espago-temporais no seu aperfeigoamento. A anarquia é e será sempre uma utopia permanente pela qual se luta e vive todos os dias. E mesmo que o sentido histórico da huma-nidade fosse a anarquia, porque nunca poderá ser objeto de institucionalizagáo e de formalizagáo definitiva, nunca poderá ser um modelo de sociedade acabada e perfeita.
A forga histórica da anarquia sempre foi a sua dimensáo universal. Com base nos desafios e perversóes que emergem da globalizagáo cío capital e do Estado, hoje, mais do que nunca, em termos teóricos e práticos, importa que a anarquia seja uma base estruturante da emancipagáo social que os seres humanos tanto necessitam. Para a consecugáo clesse grande objetivo, talvezuma probabilidade positiva seria a de desfazer os equívocos que existem entre os anarquistas e libertarios e entre estes e os movi-mentos sociais antiglobalizacáo.
resumo
O movimento antl globallzagao visto pela análise anarquista. OiscutB-se a ecología no interior tía globalizagáo capitalista, os efeitos das mídlas, repercnssoes económico flnancelras e guerras regionais. Diante de um tstado mundial em formagáo, os anarquistas fazem parte diferenciadamente dos demais atores envolvidos no moví mentó.
abstract
I he anti globalizafion movement, seen tliroughanarchistanalysis. Thisartícle discusses ecoloyy ¡nto capitalist globalizafion, media effects, flnancial and economic impact and regional wars. Bel ore a global state ¡n development, the anarchbts lake part differently among the other actors invoived.
o-be-de-cer: o "abcd" do principio de autoridade, ou da covardia
JVluitos sáo os termos utilizados por estudiosos da sociedade para definir a época na qual vivemos: pós-moderna, moderna, pré-moderna, crise dos paradigmas, mundo desencantado, niilismo. Sáo algumas das expressoes de maior destaque. Todas elas, sáo disseminadas no conjunto da sociedade, decerto, enfatizam um ou outro aspecto marcante da vida social nos tempos recentes e atuais. Por corita disto possuem alcance consideráve! na medida em que traduzem certos aspectos de inquestionável urgéncia, para um entendimento mais completo dos fenómenos sociais contemporáneos, como também muitos sentimientos e perspectivas de analises das problemáticas sociais mais candentes.
Diversos historiadores, para náo falar em outros investigadores e especialistas, caracterizam o século passado como tendo sido marcado por conflitos os mais sangrentes e sem precedentes na historia humana: duas grandes guerras mundiais — e há quem sustente
' Professor da Universidade Federal da Paraíba, músico e pesqiiisador do Nu-Sol.
ter iniciado uma terceira guerra ainda em andamento com a diferenca de esta agregar á forma convencional outras estrategias inusitadas —; uma infinidade de conflitos localizados; eclosáo, de maneira quase geral, de sistemas de governos totalitários como fascismo, nazismo, nacionalismos, imperialismos, além de catástrofes sociais como fome, pestes, epidemias e também catástrofes naturais... e a lista seria deveras longa caso tentássemos desorever com maior precisáo o rol de miserias de nosso tempo.
Se juntarmos a esta lista referencias as agressóes sistemáticas feitas contra os ecossistemas com suas biodiversidades — isto é, com os diversos seres vivos rieles existentes — pelos tubaróes das finaneas, das industrias e pela especulacáo imobiliária; se adicio-narmos ainda o sem-número de doengas psicosso-máticas provenientes do estilo de vida das chamadas sociedades modernas como também de uma organiza gao do trabalho na qual o ser humano cumpre papel de apéndice de máquinas ou de sistemas de oferecimentos de se i vicos, se somarraos, também, as estatísticas sobre a situagáo dos sem-teto, dos sem-terra, da infáncia e da velliice abandonada e indigente; e se náo esquecermos também nesta lista dos exterminios dos chamados indios, de homossexuais, de prostitutas e da populagáo negra; os casos rotineiros das chacinas dos moradores das periferias ñas grandes cidades, dos favelados, das criangas, dos trabalhadores urbanos e do campo... Se considerarmos estes elementos e tantos outros ainda, a violencia cotidiana contra a mulher ou a truculencia característica de todos os governantes com os mais diversos segmentos sociais apenas no período da República no Brasil, teremos uma idéia mais aproximada do número e da magnitude dos pequeños e grandes holocaustos acontecendo de forma simultánea e recorrente em diversos pontos de nossa sociedade, ao nosso redor, por vezes bem do nosso lado!
Disfargado em formas sutis como uma anedota, uma ironía, uma frase sarcástica ou o pagamento de um (notem beiri o termo) "imposto" ou um "cumplimento de um dever" cívico, militar ou religioso; manifestó em formas grosseiras, cruas mesmo, claras e cristalinas, como uma agressao ou um massacre televisado para milhóes íe vivenciado por uns poucos, sofrido por menos gente ainda, mas náo menos intenso e inominável para estes), o dominio, o abuso, o arbitrio, rotineiramente, baña liza a vida e a morte. Se prestarmos atengáo um pouco mais, veremos ser ele, além de rotineiro, sistemático e calculado. Se afinarmos mais um pouco ainda nossos sentidos e procurarmos perceber os sinais dos acontecimentos ao nosso redor por uma janela diferente da proporcionada pelos ilustres, graves e tapados tele-jornalistas como também pelos alegres, divertidos e idiotizados entretenedores da Televisáo ou dos abastados e sinistros empreendedores de Orlando, o que significa dizer, se procurarmos perceber os eventos ao nosso redor com sensibilidade e atitude iconoclasta, notaremos, ao mesmo tempo, o absurdo do modo de vida vigente como também delineados ante nossos olhos os propósitos inconfessados, deliberadamente planejados de tantas dores, de tantas misérias.
Pode-se levantar objegóes, afirmando a elasticidade e aprofundamento das liberdades individuáis e coletivas depois da queda do muro de Berlim, do fim da chamada "cortina de ferro", da guerra fría, fazendo coro com os vencidos alegres; caso nos objetem ainda acenando com um pretensamente fatal e inevitável estabelecimento da democracia em todo o mundo com a conseqüente sustentagáo de uma lógica globalizante e de um mercado planetário como único pensável e possível caminho a ser trilhado de hoje em diante, aínda assim sustentaremos o colocado mais acima. Mais que isto: estas objegóes nos oferecem elementos para recrudescer nossas convicgóes, nos dando argumentos favoráveis ás assertivas acima arroladas. Isto porque, primeiro, o muro de Berlim, a U.R.S.S. e a guerra fría náo apontam para campos exclu-clentes, inconciliáveis, opostos. Expressam uma mesma causa; sáo fenómenos intrínsecamente ligados á lógica dominante sob o capitalismo e sob o estatismo, apesar de esconderem e rnascararem este fato ao aplicarem maquiagens com tonalidades diferentes e uma retórica recheada de supostos radicalismos conjugados a termos peremptórios, incisivos.
Segundo, se a construgáo de um muro dividindo e separando a Alemanha em duas, a instan ra cao da hoje finada U.R.S.S. e a guerra fría nos foram mostradas, na vitrine das relagóes internacionais, como provas factuais da existéncia de campos políticos e ideológicos inconciliáveis, houve e há na verdade muito mais coisas em comum entre eles do que uma historia oficial — á direita ou á esquerda (?) — pretenda admitir. Dessa forma, podemos sem dúvida nenhuma nos referir a ambos os campos como constituintes de uma mesma dinámica e se valendo dos mesmos processos sociais, respeitadas certas especificidades, relativas mais a gran e menos a género. Assim, numa perspectiva económica náo houve diferenga entre países comunistas (?) e países capitalistas: ambos eram — e os ainda existentes também o sáo — capitalistas; a diferenga está no fato dos primeiros desenvolveren! um capitalismo de Estado enquanto os segundos desenvolvem um capitalismo de mercado. Ainda para realgar mais as similitudes entre democracia e socialismo (?) de Estado e em detrimento da idéia de existéncia de um pretensamente intransponível fosso divisor entre estes dois sistemas de governo, como defendem os demagogos da democracia e os psicóticos ao mando da ideología vermelha, temos o estatismo cerno forma comum de gestáo da vida social. No estatismo — demócrata, vermelho ou outro — permanece o principio de autoridade como postulado fundamental da sociabilidade humana, mantendo-se a hierarquizagáo da sociedade e, portanto, a existéncia tanto do centralismo, na forma da heterogestáo social, como também, implicagáo lógica e necessária, uma verticalizagáo na dinámica das relagóes sociais.
Isto nos leva ao tereeiro ponto. Em ambos, é a mesma intervengáo na vida da sociedade, respeitadas, nunca é demais lembrar, as especificidades de cada caso, de cada localidade e de cada situagáo particular. Intervengáo esta justificada seja na idéia de fazer cumprir uma pretensa "vontade ge ral", uma "vontade da maioria" ou um "interesse nacional", seja na de fazer valer uma "verdade científica", uma "verdade revolucionária" ou um "interesse do operariado" por sobre o conjunto dos demais segmentos sociais e dos individuos. Nesta diregáo utilizou-se e utiliza-se, do mesmo modo, fatal e necessariamente, de expedientes violentos. Por sua vez tais expedientes remetem á necessidade da criagáo e manutengáo de exércitos, de policiais, de um corpo extenso de magistratura, de oficiáis, de carcereiros, de prisóes, de paredóes, de cadeiras elétricas e similares... e de inuitos funcionarios públicos para fazer funcionar toda esta imensa rede de compressáo.
Uma vez as coisas tomadas nestas proporgóes podemos nos perguntar como sáo possiveis tamanhos absurdos num mundo tido corno totalmente voltado para a corrrunicagáo rápida, para a informagáo precisa, para a tecnología de ponta? Como tolerar tantas violencias corriqueiras e naturalizadas no reino dos Direitos e no império do Estado de Direito? Como tem sido possível a convivencia com tantas arbitrariedades e tantos abusos depois de extintos os reis absolutos e de ter sido instaurado um período de garantías de liberdade e justiga, como definem, grosso modo, o seu sistema, republicanos e demócratas estadunidenses? Mais ainda: como se sustentara e se proliferara por todo o mundo as carnificinas por motivos étnicos, religiosos, económicos, políticos ou outro numa época de pretenso "fim das ideologías"?
Levantemos algumas saídas apontadas pelos falaciosos da demagogia democrática e das tiradas ditatoriais — mesmo com o verniz da urna eleitoral — do socialismo jacobino ñas diversas versees reclamadas de inspiragáo marxiana. Na perspectiva de ambos, o futuro vislumbra a construcáo de governos nacionais (quer fortes - que é a tendencia de toda forma de governo - quer diminutos - sempre apenas em tese pois na prálica todo governo é agambarcador), convergindo para o estabelecimento de órgáos mediadores das relagóes internacionais, de grandes blocos económicos intercontinentals e de instituigóes e de legislagóes reguladoras de acordos de extradigáo, de expulsáo, de cooperagáo comercial e dos órgáos de repressáo; de conexáo de cadastros pessoais, de empresas e de outros dados, enfim, uma espécie de governanga mundial. É desnecessário dizer ser este governo, de certo modo, já existente. Mas cada vez se torna mais nítida a intengáo de se instaurar um "de fato" e náo só "de direito". O diferenciador entre demócratas e socialistas, além do oportunismo e demagogia dos primeiros e da falácia e da arrogáncia dos segundos, está apenas em certos arranjos na tessitura deste novo imperio e náo no questionamento da elaboragáo ele mais um projeto de despotismo, ele mais um altar onde se pretende imolar as liberdades individuáis e coletivas.
Pelo que vimos acima, podemos perceber as respostas dadas pelos governos de plantáo e também pelos demais pretendentes ao poder — tomados pela psicose autoritária — como passando obrigatoriamente ou por uma reforma nos mecanismos e instituigóes eje governo, isto é, por crescente aprimoramento, atualizagáo e conservagáo ñas estratégias de controle social, e/ou, pela mudanga ñas pessoas dos mandatários, ou ainda por uma composigáo das eluas. De um modo ou ele outro, as questóes sociais sáo percebidas, nesta perspectiva, como assuntos alheios aos diretamente interessados, dizendo respeito mais a especialistas e a "representantes cío povo" e menos a este mesmo povo; este náo pode ter o controle de seu destino ou por pura incapacidade ou por causa de uma concepcáo cié ser humano como lobo do próprio homem, cultivada pelos orbitais do principio de autoridade. A pretensa incapacidade da populagáo em gerir sua própria vida vem do preconceito cientificista. Este preconceito está diretamente ligado á superstigáo filosófica segundo a qual toda e qualquer dimensáo da vida humana possui uma verdade essencial, pura ou superior a ser alcanzada, ou descoberta, única e exclusivamente pela ciencia. Os conhecimentos existentes fora dos cánones sagrados da ciencia ocidental sáo tidos como crendices, preconceitos ou superstigóes... para os novos sacerdotes da religiáo de ciencia!
A nogáo do homem lobo do homem, do homem man por natureza ou do ser humano natural ou espiritualmente degenerado constituí na idéia basilar de todo o edificio filosófico das instituigóes vigentes e, portanto, da forma como se estabelecem as relagóes políticas, económicas, intelectuais, pessoais, religiosas e demais ñas sociedades reclamadas tributárias de um chamado modo de vida ocidental. Os filósofos do liberalismo partem da concepgáo de uma conjectura, como eles mesmos denominara seu mito de origem. Um dito estado de natureza seria uma época muito remota; táo distante a ponto de ser impossível provar, com documentos, ter este estado existido. Mesmo assim, se baseiam nesta ilusáo para erguer todo seu edificio filosófico, seguindo-se a eles todos os defensores de uma centralizagáo social. No pretenso estado de natureza, os seres humanos viveriam isolados tendo posteriormente criado a sociedade com outros semelhantes apenas por motivos utilitaristas. Na vertente hobbesiana dos j usnaturalistas a sociedade passou a existir a fim de que os seres humanos náo se destruíssem mutuamente; só sob ameagas e medo de sofrer punigáo e castigos seria possível barrar os ímpetos anti-sociais próprios dos humanos. O Leviata seria o ser a pairar sobre todos, impondo, pela magnitude e poderío, temor e respeito, contendo em todos os individuos suas inclinagóes antisocial s. A escola de Maquiavel iría também somar com a de Hobbes na elahoragáo de uma natureza humana essencialmente má, «configurando um espectro medonho da sociabilidade humana. Nesta dinámica se encontram todas as escolas científicas, ideológicas, de doutrina social e filosofías defensoras de uma organizagáo social centralizada, hierarquizada, verticalizada.
Além destas escolas do pensamento social, fundadas em principios de uma sociabilidade humana má por natureza, temos a tradigáo religiosa judaico-cristá instaurando uma cosmología, uma forma de ver o mundo a partir de pressupostos autoritários. Assim, nosso mito de origem sacramenta a idéia da possibilidade do homem isolado. Através deste mito fundamental, básico ou central na teología cristá, Adáo passou um longo período apenas tendo a figura de Deus como interlocutor diario; possuindo todos os predicados de humanidade em si mesmo, sem nenhum contato com semelhantes, falou, norneou os animais e procedeu no geral como qualquer ser humano faria. Apenas num momento posterior sen te solidáo e pede á divindade uma companheira que Ihe seja "idónea", depois de observar todos os animais possuindo uma. Sua relagáo com esta companheira, como com toda a existéncia, é fundamentada no dominio. No texto sagrado, o criador Ihe dá a faculdade de usar, do modo como quisesse, de todos os seres existentes. Sem esquecer do fato de no mesmo texto todo o processo de passagem á existéncia dos seres ter se dado de uma forma totalmente diferente da do surgimiento de Adao; enquanto os animais e plantas surgiam apenas a partir de uma ordem verbal da divindade, nosso Adáo foi formado com a modelagem em barro feita pela própria máo de Deus; findo este primeiro momento do processo de criagáo de Adáo, o próprio Deus soprou vida ñas narinas do barro inerte, tornando-o, a partir deste momento, uma "alma vivente". Coloca-se, nesta altura, sub-repticiamente, um abismo de distancia entre os seres humanos, os demais seres vivos e materiais inorgánicos. Instalam-se as dicotomías existencia e humanos, natureza e cultura, justificando, a partir de entáo, um enfoque onde os homens ocupam o centro da existencia e, desdobramento natural, exerce sobre todos os seres uma relagáo de exterioridade e superioridade no sentido de dominagáo.
Outx-os mitos, que poderíamos classificar como secundários, de reforgo ou orbitais sedimentam esta percepgáo da existencia através da enfase em outras nuances ñas sociabilidades autoritárias. Os mitos do diluvio, da torre de Babel, de Caime Abel, e outros mais, alimentam o mito principal ao redimensionarem certos aspectos deste, afirmando uma forma de sociabilidade entre Deus e os homens, entre os homens e a natureza e entre os próprios humanos na qual a hierarquizagáo, a autoridade e o poder sáo apresentados como elementos primordiais para a existencia. De qualquer forma um coragáo e um cerebro místicos constituem um terreno propicio para disseminagáo da transcendencia, venha ela sob qualquer manifestagáo; substitua Deus por leis da historia, Estado, dever, humanidade, justiga ou outra abstragáo, e as coisas permanecerá© as mesmas. No texto sagrado os termos chaves e mais recorrent.es resultam na elaboragáo e disseminagáo de uma sociabilidade autoritaria: "Rei dos reis", "Senhor dos senhores", "Deus vingativo, ciumento e iracundo", "Deus dos exércitos" entre outros que se desdobram no estabelecimento de relagóes baseadas no dominio, na punigáo e no castigo, na premiagáo e na glorificagáo. As coisas náo mudam o conteúdo quando a divindade de nossa sociedade passa a ser apresentada como "Deus de amor", "piedoso", "misericordioso, "infinitamente bom", ou outro termo equivalente, pois o abandono pela divindade das atitudes marcadamente duras de um período adotando outras brandas e bondosas apresenta-se como uma mudanga sem causa, sem motivo, legitimando o arbitrio. A própria idéia de Deus instaura o absoluto uma vez ele náo precisar ser "bom", "fiel", "justiceiro", "zeloso" ou outro qualificativo. É o Tocio-
Poderoso e ponto final. O que passa disto sáo exercícios de contorcionismos no pensamento propostos pelos teólogos a fim de ludibriar e desvanecer as inquietagóes.
Toda cosmología instaura, de uma forma geral, um tipo de sociabilidade. A maneira como percebemos a existencia inaugura o modo como nos relacionamos com todos os seres vivos, com nosso planeta e com os demais humanos, neste último conjunto a maneira de balizarmos nossos relacionamentos com povos longínquos, próximos e de nossa íntima familiaridade passa por uma formatagáo dada pelos mitos, por uma cosmovisáo. O modo como pensamos está intrínsecamente ligado a como sentimos, ao mesmo tempo em que o modo cotno sentimos depende diretamente de como pensamos; pensamento e sentimento oferecem os referenciais através dos quais selecionamos os estímulos que nos chegam a todo instante, num processo continuo de cria gao de realidades. Nosso olbar, sobretudo, ao nosso redor encontra-se modulado por um conjunto complexo de elementos os mais variados possíveis. Nossas maneiras comportamentais possuem referenciais fundamentáis nos conceitos e afetos aprendidos e apreendidos no meio e nos coletivos onde nos iniciamos culturalmente. O pavor da morte cultivado pela religiáo eristá, por exemplo, náo impede a experiencia da finitude; impede antes a experimentagáo plena da vida; o medo de morrer náo gera imortalidade mas sim mortos-vivosl Neste ponto surgem os mal-amados, os ressentidos, os recalcados; o fiel abraca um código de comportamento por demais rígido; suas relagóes pessoais e coletivas sáo estabelecidas a partir de balizas instauradoras do absoluto. Por outro lado a vida é percebida como diretamente relacionada ao número de dias de respiragáo e de manutengáo das fungóes primárias de um organismo; a forma como este período se passa náo é de modo algum levado em consideragáo. Desta maneira se instaura um tipo de sociabilidade bascada no sacrificio, na dor, na angústia, no sofrimento.
O amore a sexualidade, particularmente na tradigáo judaico-cristá, sáo objetos de um regramento mortal, ocasiáo propicia para o estabelecimento de uma profunda miseria existencial. Os fascismos de todos os matizes precisam deste terreno para florescer, com todo vigor, individualidades incompletas, deformadas, castigadas; sáo estas as matérias-primas fundamentáis para o estabelecimento de "governos fortes"! Sáo pessoas estilhagadas afetiva e psicológicamente dispostas á prática da delagáo sistemática ou esporádica, condigáo sine qua non de todos os totalitarismos. Os governos autodenominados modernos tém em uníssono cultivado, de uma maneira calculada, sociabilidades fundadas na alcagüetagem; uma sociedade de alcagúetes é a cicuta oferecida dislargada em vinho. Todas as instituigoes das sociedades modernas objetivam inocular nos individuos a consciéncia de ser um "cidadáo" livre onde, através de novos contorcí on i sitios e mistificagóes, a liberdade é totalmente negada por tantas regula-mentagoes e códigos. As instituigoes náo funcionam? Seus direitos náo sáo respeitados? Náo há seguranga? A saúde e a educagáo sáo precárias? O salário é insuficiente? A policía é violenta? Os governantes sáo corruptos? DE-NUN-CI-AR é a grande e maravilhosa saída apontada pelos ditadores de plantáo! A realizagáo da cidadania é manifesta quando o individuo, pasmem, "denuncia" á Providencia política; da mesma forma a realizagáo do ser do fiel se dá ao recorrer, e ao confiar, plenamente á Providencia divina todos os seus problemas, toda a sua vida!
Os mitos religiosos ao lado das superstigóes filosóficas e dos preconceitos cientificistas findam por engendrar individualidades místicas e irresponsáveis. Baseado em religiáo, quer em ideología, filosofia ou alguma escola teórica, todo o pensamento fechado em si mesmo reinstala o absoluto, o transcendental. A idéia de um ser supremo, seja ele Deus, Pátria, leis da historia, Humanidade, Ciencia, Estado, Inconsciente, estruturas profundas, ou outra a bs traga o qualquer anula dos individuos a possibilidade de uma agáo responsável e consciente, enquanto estes se encontrarem sob o arbitrio de uma entidade todo-poderosa, a quem direcionam a causa e o fim de toda a existencia. Os individuos se tornam pessimistas, fatalistas e resignados ao adotarem qualquer das seitas como referencia! para suas relagóes. Isto porque a crenga num ser superior, pairando sobre todos e sobre tudo, funda tipos de relagóes sociais e pessoais reproduzindo esta perspectiva de modo a conduzir os liéis á procura de superiores entre si. É desnecessário dizer ser este o terreno adequado para a adogáo de atitudes de adaptagáo, reprodugáo e manutengao das relagóes hierarquizadas. Estas tém como requisito fundamental o cultivo da obediencia por um considerável estrato social. Insubmissáo, indisciplina, irreverencia sáo posturas inconciliáveis com uma sociedade onde as relagóes entre pessoas e coletividades sáo vertical izadas.
O ser obediente é passivo e irresponsável; passivo por náo exercer a imaginagáo e criatividade, limitándose a persistir num circuito estímulo-resposta ou, quando muito, exercitando sua imaginagáo no estreito campo balizado por uma verdade oficial (um limitante e náo um militante), Irresponsável porque ao cumprir ordens acha-se moralmente irrepreensível ante as conseqüéncias de suas atitudes. Desta forma, pode tranquilamente jogar bombas em populagóes civis, apertar um botáo de descarga elétrica nurria pessoa presa a uma cadeira, desviar recursos públicos, administrar e auxiliar o "bom funcionamento" dos novos campos de concentragáo (asilos, quartéis, manicomios, presidios...), enfim, realizar qualquer atividade ordenada pelos seus "superiores" (náo é este o termo?).
O medo é o sen ti mentó a orientar as agóes do místico, do crente em seres ou entidades supremas. "O temor do Senhor é o principio da sabedoria", reza o texto sagrado, sem alertar os fiéis ser este temor extensivo a tuclo relacionado e relacionável a este "Senhor". Este, por sua vez, torna a forma ora de chefe da sessáo, ora do patráo, ora do pai ou da mae, ora do professor, ora do policial, ora da Pátria... O individuo temeroso espera de Deus, do Estado, de instituigoes, da polícia, da "justiga" a resolugáo de seus problemas. O ensino oficial, a familia, o sindicato, a igreja, o ambiente de trabalho, o tránsito, cultivam, por entre suas finalidades mais explícitas, o narcótico da pusilanimidade. Também, na chamada sabedoria popular encontra-se instalado o fermento do temor: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo", diz um dos ditados, sedimentando relagóes de dominagáo como sendo naturais e, mais que isto, inevitáveis, necessárias. Este pensamento ao lado do mais badalado ainda "cada macaco no seu galho", forma uma dupla medonha procurando inocular nos individuos a predisposigáo á obediencia, a vontade de servir e o medo de sofrer punigóes e castigos. Se este tipo de pensar e sentir é disseminado na populagáo em geral, com enfase nos trabalhadores, entre os dirigentes, por outro lado, cultiva-se a lógica cía dominagáo. Assim temos entre os cheles um ditaclo orientando-os a gritarem sempre com o subordinado, pois caso o chefe náo saiba, ás vezes, porque está gritando, o outro saberá sempre o porqué de estar sendo insultado.
Todos estes elementos conjugados resultan! na existéncia de urna forma de relagáo social baseada no mando e na subserviéncia; há pessoas predispostas para dominar e outras predispostas para obedecer. Cultivam-se, elesta maneira, pendores para a obediencia em uns e a vertigem do mando em uns poucos. Isto se estabelece ele uma maneira relacional: o conjunto da sociedade possui, regra geral, poucos segmentos orientados para o dominio, e os ciernáis, ou a quase totalidade clestes, inclinados á obediencia; isto significa também existir a mesma dinámica no interior ele cada um clestes segmentos. A lógica do mando e da obediencia se coloca como uma forma de ver o mundo e de se portar diante das situagóes rotineiras como também das inusitadas. Assim, todo o conjunto deis relagóes de um individuo de qualquer dos segmentos sociais vai se realizar tendo como paño de fundo orientador das suas atitudes símbolos e signos culturáis, processos e mecanismos do poder instauradores de hierarquias. Na medida em que alguém ou um evento, que entre no campo sensorial de um individuo das chamadas classes dirigentes, procurando interagir com ele ou instando-o a adotar alguma agáo, será correspondido ou náo, desta ou daquela forma, a depender da situagáo dos campos culturáis implicados.
Se alguns entendem ser o niilismo, o desencantamento, a crise, o pessimismo, um pós-modernisrno, ou outra ainda, a característica mais marcante de nossa época, acredito ser a COVARDIA a marca mais destacável (e detestável) da civilizagáo ocidental. Só uma sociedade de covardes possibilita o surgimiento dos fascismos ñas versóes das mais diversas (socialismo de Estado, nazismo, totalitarismo, teocracias, democracias, imperialismos). Apenas covardes contumazes conseguem se enganare passar a vida sem agir (entendido na concepgáo plena do verbo), vegetando, esperando, esperando...
a posigáo correta dos astros, um salvador, o terceiro milénio,
a vitória de seu partido ou de seu candidato, um grande líder mundial,
um sistema de governo perfeito, racional e justo,
o advento do super-homem,
acertar na sena acumulada,
que seja chamado para o show do milháo,
a outra vida,
a batalha final,
a solugáo final,
uma promogáo,
que o marido se toque,
que a mulher se toque, o reconhecimentó geral do génio que é, o contato dos ets, outra capicúa, a segunda vinda de cristo
ou outra coisa qualquer. Esta espera sem fim náo acontece impune nem inocentemente, uma vez que guarda em si a manutengáo de uma sociabilidade sinistra porque disseminadora de relagóes verticais, insensibilidade ñas reagóes e um modo de vida hierarqu izante.
Nossa época seria justamente conceituada caso fosse estabelecido o termo COVARDIA como síntese geral e definigáo cabal de todos os avangos... para trás! De todas as conquistas... de grilhdes! De todas as vitórias... do arbitrio! Picaría muito mais adequada uma obra tratando do século XX, e sobretudo de nossos dias, comoTEMPOS DE COVARDIA ou A ERA DA COVARDIA. Nem pós-modemo, nem pré-moderno, nem moderno, nem desencantamento do mundo, nem erise dos paradigmas, nem niilismo conseguem exprimir meu sentimento ao olhar para as pérolas legadas para todos nós pelos esforgados altruistas, salvacionistas, bondosos estadistas e caridosos religiosos. Todo o processo social tem desembocado na elaboragáo de individualidades fracas, disciplinadas, domadas, místicas. O rumo tomado pelas instituigoes vigentes traduz o estabelecimento de vontades deformadas, estas abandonara uma vibragáo ativa passando para um circuito de passividade, ou de urna vontade ativa... de servir! Toda a programagáo midiática, exemplo contemporáneo de meios de construgáo de imaginario — naturaliza cenas de lutas sangrentas, morte, hierarquias, assassinatos, carnificinas; a comegar pelas programagóes infantis, trabalhando nesta tanto a naturalizagáo daviolénciacomo uma difusáo sistemática de termos militaristas. O mundo das fábulas infantis espelha uma sociabilidade fundada no autoritarismo, procurando fixar ñas mentes imberbes uma cosmología de tipo mística. Reis, princesas, monstros, magos, bruxas, seres fabulosos, mulheres frágeis ou extremamente cruéis, sáo os habitantes do mundo das fábulas e das lendas estabelecidas, sedimentando sutilmente as relagóes fundadas no principio de autoridade. Reverencia, temerosidade, pusilanimidade, covardia, enfim, sáo os elementos constituintes da matéria dos seres humanos sob regime disciplinar; este é o terreno adequado e favorável ao estabelecimento de projetos de dominagáo e controle. A disciplinaridade e o dominio reproduzem a velhaescravidáo negra; a diferenga da escravidáo moderna se deve ao fato de hoje a escravidáo ser mais ampia e náo restrita apenas a negros; como também ao fato desta escravidáo ser mais eficaz na medida em que a quase totalidade das pessoas se vé como "livre" ao mesmo tempo em que atribuí á existéncia de um governo — democrático, socialista, teocrático ou de outra variagáo — esta prerrogativa.
resumo
Os cuidados com os procedimientos usados ñas pesquisas sociais tém produ zído debates e orientagoes as mais diversas. Varias escolas teóricas apontam diferentes manelras de trata mentó do chamado "objeto" da pesquisa. Florentino de Carvalho, em sua crítica a transcendencia, abordou este linma de uma forma bem particular. Llaborando uma perspectiva relacional na agaoe na ieflexao,oride movimento nómade desrespeita frontelras flxadas entre os saberes e entre estes e a vida; vemos também ser instalado neste processo um modo antro|X)fágico de aproprla(>ño vlvenclal; atltnde selvagem opondo-se á domesticado dos pensamientos, sentimentos, dos carpos. Enflm, Indisciplina como postura exlstenclnl, dllulndo hlerarqulas. Instan rando sociabilidades em fuga dos oantrallsnios, dos sedentarlsmos.
abstract
Thecare with ttie proceedingsapplied insocial research l>as produced assorted debates and orientabons. Many theoretical perspectives point out dillerent ways Lo deal with ttie so-called "object" of research. Florentino de Carvalho, In hls crltkrism of transcandence, tieated this subject In a particular manner. tkiildinga relational perspectiva in action and reflectlon, where the nomad movement dlsrespects borders placed among knowledges and between them and life; we also see an anthropophagical manner of approprlatlon belng establlshed; savage attitude in opposition to domestication of thought, feelings, bodies. Finally, indiscipline as existential attitude, dllutirig hierarchies, establlshlng sociabilitles to escape from centralisms, from sedentaríness.
conversas com um abolicionista do sistema penal
LoukHulsman éprofessoremérito na Universidade de Rotterdam emembro de diversos foros intemacionais -das JVagúes Unidas, do Conselho da Europa e das Sociedades deDireito Penal e Criminologia. Hulsrnan éumaboliaonista penal que desestabiliza nao só o direito como o próprio abolicionismo. Desooncerta o Direito ao sacudir as certezas pensadas em torno de legalidades e ilegalidades. É Professorde Direito Penal e, simultáneamente, defiende a sua extingao, afirmando, entre outras coisas, nao haver natureza ontológica do crirne. Convulsiona o abolicionismo pois, nao restringe sua perspectiva á extingao das prisoes mas afirma a. possibilidade de que os problemas tragados pela esfera criminal sejam resolvidos no ámbito do Direito Civil, ressaitando que uma sociedade sernpenasjá existe. Pratica o abolicionismo investindo em duas frentes: o abolicionismo social e académico. Hulsrnan divulga, o abolicionismo no jardim de sua casa em Dordrecht na Holanda; na Universidade e ern várias partes do planeta.
Nesta entrevista, dividida, em duas partes — a segunda será publicada no próximo número — concedida á
Jacqueline de Ce Lis, com quem mantém uma parceria abolicionista intensa. explícita que seu abolicionismo pwvém d,e espagos diversos, imbricados ñas situagóes concretas de sua vida. De seus problemas concretos as respostas diretas encontradas fizeram Hulsman deslizar rumo ao Abolicionismo. Acontecimento tecido em sua própria superficie, simultáneo á sua invencao. Hulsman é um convite á inquietude do abolicionismo, distante, muito distante, das utopias que coninvem táo bem com aspráticas consoladoras. B, como ele próprio gosta de afirmar, em meio a um sorriso alegreo abolicionismo faz bem á saúde.
Esta entrevista faz parte do livro de Louk Hulsman e «Jacqueline Bernart de Celis, Penas Perdidas: o sistema penal em questáo. Rio de Janeiro, Luam, 199.3. Traduzido por María Lucia Karam, encontra-se esgotado aguardando uma nova edigáo.
Sálete Ol.ivei.ra
situagóes e acontecimentos
Jacqueline Bemat de Celis Bntao, quem é vocé, Louk. Hulsman ?
Louk Hulsman Sou professor da Universidade de Rotterdam, há quase 18 anos. Lembro-me muito bem de como isso aconteceu. Um dia, alguém que eu conhecia só de nome me telefona, me diz que quer me falar sobre a nova Faculdade de Direito... Roí em 1964. No ano anterior, duas novas Faculdades tinham sido criadas, uma de Direito e urna de Ciencias Sociais, que viriam se somar á antiga Faculdade de Economia. No primeiro ano, náo se dá Direito Penal. Mas, para o segundo ano, era preciso um professor. Náo sei porque, eu disse sim, sem hesitar.
— Vocé nao fezvm oo ncurso?Esta ¿uma maneira normal de se tomarprofessor numa universidade holandesa?
— Sim, as nomeagóes, na maioria das vezes, se fazem em fungáo do curriculum vitae da pessoa.
O que vocé havia feito anteriormente, que o recomendavapara o cargo?
Quando me ofereceram a cátedra de Direito Penal, en estava no Ministerio da Justiga. Além disso, presidia, na época, o Comité Europeu para Problemas Crimináis, em Strasbourg, do qual fiz parte durante muitos anos. Antes de pertencer ao Ministério da Justiga, trabalhei no Ministério da Defesa dos Países-Baixos, onde ingressei logo que concluí meus estudos de Direito. Durante mais de dois anos, através deste Ministério, participei, em Paris, dos trabalhos do Comité Interino para a Comunidade Européia de Defesa, de modo que, há muito tempo, eu já havia adquirido uma boa prática em relagóes intemacionais.
Estas primeiras funcóes, sem dúvida, nada tinham a ver com os problemas do sistema penal...
Sim, sem dúvida. Trabalhei, em Paris, num projeto de Código Militar Europeu e na preparagáo de um Regulamento Europeu de Ajuda Mútua Judiciária, que, na verdade, náo deram em nada, pois a Franga se recusou a assiná-los... Me engajei ueste trabalho, Ihe dediquei muitas energías, e fiquei bastante frustrado na época, ao ver que tanto esforgo, tanto vaivém entre Paris e os Países-Baixos, náo tinham servido para nada. Sem dúvida, foi essa uma das razóes que me fez passar para o Ministerio da Justiga...
E antes de ser enviado a Paris?
— Trabalhei em meu país, durante tres anos, no Servigo Jurídico do Ministério da Defesa. O mais curioso, quando pensó nisso, é a especie de voeagáo que, desde o comego, levou a que eu me insurgisse contra a maneira desumana com que se aplican! as decisoes penáis. De imediato tive que me ocupar com questoes relativas ao Direito Penal Militar. O Servigo onde eu esta va, dentre outras atribuicóes, se pronunciava sobre pedidos de grapa e livramento condicional e eu me sentia muito mal em ter que responder a estas demandas sob as orientacóes de meus chefes, que me pareciam incrivelmente severas. "Náo, náo", diziam eles, quando eu queria conceder grapa ou livramento; "voeé deve recusar". O Departamento Pessoal também tomava decisoes disciplinares, algumas das quais me revoltavam. E, jovem com em, eu náo hesitava em correr atrás e cobrar dos responsáveis. A um deles, que decidirá revogar um beneficio com efeito retroativo, interpelei sem cerimónia: "O que vocé faria se fosse pessoalmente atingido desta maneira?" Enquanto isso, eu procurava um meio de conseguir uma evolugáo da política de livramentos condicionáis que fosse favorável aos condenados.
— Naturalmente, era.um sonho impossível...
Náo totalmente. Com o tempo, conseguí dar uma inclinagáo mais liberal á política de livramentos condicionáis. Aprendí muito cedo — e esta foi uma das grandes descobertas da minha vida —que, mesmo de certos postos bem modestos, é possível sacudir as burocracias, desde que, naturalmente, haja um empenho profundo e se esteja bem preparado técnicamente. Sem dúvida, também fui favorecido pela sorte. Eu eslava num posto bastante interessante, Ao meu Servico vinham, para consulta, todas as questoes económicas ou as náo estritamente militares. Por outro lado, todos os projetos elaborados pelos outros Departamentos passavam pelo Ministerio da Defesa antes de ir pai~a o Conselho de Ministros. Quando cheguei, todos os outros membros da equipe estavam absorvidos com o problema da Indonesia. Nesta época, havia a guerra da Indonesia e era preciso preparar a transmissáo da soberanía. Isto dava um trabalho enorme as pessoas do meu Servigo. De modo que era a mim, o recém-chegado, que se encaminhavam as questóes mais 'corriqueiras'... que, nem sempre, eram banais! Eu eslava no Servico, há náo mais de dois meses, quando chegou, por exemplo, um projeto de lei sobre energía nuclear. Ora, eu náo sabia nada sobre energía nuclear! Me pus, entáo, a trabalhar neste projeto com o maior cuidado. Meu trabalho foi apreciado e comegaratn a ter non si de ra cao por mim. Isto, de certa forma, me deu uma moeda de troca: precisavam de mim, técnicamente, para fazer um trabalho considerado importante na tradigáo do Servigo, com isso, chegada a hora, pude reivindicar menos restrigóes na concessáo de livramentos condicionáis. Além disso, aprendí outros pequeños truques, através dos quais também pude exercer minha influencia: por exemplo, na ocasiáo das notas trocadas pelos Ministérios. Para que uma materia passasse no Conselho de Ministros, era preciso que os Ministros se pusessem de acordo. Assim, se um Ministério quisesse ganhar tempo, o meu poderia ser exigente, o que levaría o primeiro a ter interesse em aceitar o que reivindicássemos, para que a materia passasse. Com este poder em retardar ou acelerar o processo, e porlia ver certas coisas... De oerto modo, no Ministério da Defesa, tive, antes da consciéncia, urna especie de prática abolicionista...
—Estas suas explicares mostrara uma imagem bastante inquietan te da forma de apmvagao de projetos de lei!
— E de sua elaboragáo! Durante este período da minha vida, vi muito claramente como as leis sáo produzidas: geralmente feitas por reles funcionários e emendadas precipitadamente e por cornpromissos políticos; náo tém absolutamente nada de democráticas e, dificilmente, sáo fruto de uma coeréncia ideológica. Pior ainda: sáo editadas na ignorancia da diversidade de situagóes sobre as quais váo influir... Mas, este desnudamiento de uma realidade sem correspondéncia com os principios ensinados nao passou de uma etapa na descoberta de que, em nossas sociedades, no fundo, nada funciona segundo os modelos que nos foram propostos. Para explicar isto, porém, sería preciso voltar bem mais atrás em minha historia pessoal...
— Se vocépudessefázé-lo seria interessarite, na medida em que sua experiencia poderla ser reveladora para outras pessoas.
— Talvez seja. Pois bem, durante longo tempo, acreditei que aquilo que ensinava era realidade: uma determinada teología moral, por exemplo; ou a ideología do Estado protetor da pessoa. Mas, diante de certos acontecimientos, me dei conta de que nada disso se sustentava.
De qual moral vocé Jala?
— Eu cresci numa regiáo dos Países-Baixos onde reinava, de forma absoluta, a doutrina católica oficial — aquela pré-Vaticano II. Inculcavam-nos a estranha idéia de que havia urnas pessoas eleitas e outras náo. Na ideología escolástica, tudo é ordenado por Deus e quaisquer definigóes sáo dadas de uma vez por todas. Entáo, há pessoas escolhidas por Deus, que pertencem ao Corpo Místico de Cristo, ao Povo Eleito; e há os outros que estáo de fora.
— Vocé nao está exagerando? A gente lé no Evangelho: "Eu virn buscar e salvar o que eslava perdido 7
— De forma alguma. Sempre me ensinaram que somente aqueles que sáo batizados estáo com Deus. É certo que a nogáo de batismo ampliou-se um pouco. Consideram-se como batizados aqueles que tiveram desejo de sé-lo. Também se inventou o batismo de sangue. Mas, foram extensóes de um principio estrito, pelo menos no que se refere ao ensillamiento que recebi. Náo falo no Evangelho; falo de uma certa corren te da Igreja, a corren te específicamente jurídica, aquela que forjou a fórmula "fora da Igreja, náo há salvagáo". Um homem como meu santo padroeiro, a quem acho até bem simpático, Luís, rei de Franca —náo quería fazer a guerra... Mas, fez a de Tünis. Quando se lé o que ele escreve, fioa-se confuso. Segundo ele, náo se deveria fazer a guerra contra os ingleses, porque os ingleses também sáo seres humanos. Mas, era preciso fazer a guerra contra os árabes, porque eles náo sáo nada, náo pertencem ao Corpo Místico... Dizia-se: "é pena, mas é assim; eles sáo perdidos". Erarn pessoas que, de todo modo, náo podiam compreender o sentido das coisas... Porque as coisas tinham um sentido que apenas os eleitos podiam compreender; aliás, em graus diversos, conforme sua posigáo hierárquica, entendido que somente o Papa via toda a verdade, em funcáo de seu vínculo clireto com Deus... Entáo eu vivia inquieto, sempre me perguntando se náo iría para o inferno, pois, durante muito tempo, acreditei no inferno. Será que eu náo iria parar lá? Eu quería, ao menos, sabé-lo, e inventava urnas espécies de jogos para obter uma resposta: se eu ohegar ao cruzamiento antes de ter contado até tanto, vou para o inferno; se náo, náo vou... Todoojurídicojá estava ali! Falei publicamente disto há náo muito tempo. Mencionei alguns problemas de consciéncia que tive por causa de peniténcias que podiam ser feitas e que valiam um tempo a menos no purgatorio, para si mesmo ou para outro qualquer. Era possível ganhar 60 días, rezando tal oracáo; e indo áigreja no Dia de Todos os Santos, qualquer um poderia ser totalmente perdoado... Ainda me lembro de um certo Io de novernbro... Fazia urrr tempo lindo! Será que eu poderia ir brincar, ou deveria cumprir esta penitencia que dava a absolvigáo total? Tantas almas gemendo no purgatorio! Como passear nos bosques, se eu poderia salvá-las?
— Corno voce, finalmente, saiu desta inquietud.e?
— Durante meu último ano de internato —vivi muitos anos num colegio interno —estudei teología moral, por minha própria iniciativa, pois náo fazia parte do programa. Entáo, comecei a náo acreditar mais no que contavam, havia, de fato, uma grande distancia entre o que ensinavam e minha experiencia. Ai, comecei a forjar rninha própria religiáo. A principio foi extremamente difícil obter informagóes diferentes daquelas que a Igreja transmitía. Num dado momento, conseguí rne apoderar da Biblia. Tal leitura foi como dinamite. Súbitamente, encontrei ali, inclusiva nos Evangelhos, toda espécie de material contrário ao sistema e mesmo á liturgia que nos faziarn seguir e que, aliás, me agradava... De fato, era difícil sair dos marcos impostes, pois, náo só náo davam livros críticos na classe em que eu estava, corno, além disso, no contexto católico da regiáo onde eu vivia, náo havia a menor possibilidade de encontrar noutros lugares, seja em bibliotecas ou livrarias, qualquer literatura contraria ás idéias da instituipáo Igreja. Nesta etapa da minha vida, realmente senti a dominagáo totalitária de um sistema institucional que fechava as portas a qualquer outro modo de pensar. Entretanto, a dúvida ia comegar a se desalienar.
— Como assim?
Escapar do conformismo permite o acesso a um universo de liberdade. Mas, nem sempre é fácil largar o estabíishment, embora, ás vezes, isso de prazer. Alguns acontecimientos me ajudaram. A guerra civil espanhola, por exemplo, foi uma etapa importante. Na regiáo onde eu vivia, os jomáis eram todos franquistas. Com uma tal imprensa, eu também acabava ficando interiormente contente quando Franco tomava mais uma cidade, quando seu exército avangava. Mas, em 1938, comecei a ter acesso a outras fontes de informagáo e, de repente, me vi muito pouco orgulhoso de meus sentimentos. Pei'cebi que tinha sido totalmente enganado pelo sistema onde eu tinha estado encerrado. Agora que lia os livros dos republicanos e daqueles que, na Franga e nos Países-Baixos, tinham participado da luta contra Franco, me dava conta do erro profundo em que eu havia mergulhado e minha vergonha crescia... Jamais fui á Espanha antes da morte de Franco, pelo trauma profundo que viví naquela época. Este episodio me marcou bastante.
— Também foi neste momento que vocé comegou a se interessar sobre os principios legitimadores do Estado ?
— Foram a ocupacáo, a resistencia e a guerra que, para mim, desmistificaram o Estado. Num dado momento, como eu usava uma identidade falsa para náo ir trabalhar na Alemanha, fui preso pela polícia holandesa — a polícia do meu país! — e enviado para urri campo de concentragáo. Eu já tinha constatado que todo o aparelho estatal holandés funcionava sob a ocupacáo alemá como se nada tivesse acontecido; os altos funcionários permanecendo em seus postos e continuando a produzir leis. Agora, eu percebia que as leis e as estruturas teóricamente destinadas a proteger o cidadáo podem, em determinadas circunstancias, se voltar contra ele. Ou seja, descobri a falsidade do discurso oficial que, de um lado, pretende ser o Estado necessário á sobrevivencia das pessoas e, de outro lado, o legitima, revestinclo-o da representad vi dade popular. Descobri que tinha sido engallado pelo discurso político, da mesma forma que fora enganado por minha educagáo escolástica e induzido ao erro pelo meu meio a propósito da guerra na Espanha. Um ceticismo profundo tomou conta de mim, finalmente me impedindo de admitir qualquer sistema acabado de explicagóes gerais, que náo pudesse ser verificado.
— Este tipo de filosofia deve ter fieito de vocé um professor bem diferente do modelo convencional..
Evoluí neste sentido. Devo dizer que depois de aceitar, muito espontáneamente como já disse, a responsabilidade da cátedra de Direito Penal que me propuseram em 1964, tive um momento ele estupor. Como me posicionar? É bem verdade que, por ocasiáo dos encontros cío Comité Europeu para Problemas
Crimináis, conheci especialistas das ciencias crimináis de inúmeros países; eu já tinha uma idéia do que eram os sistemas penáis em diferentes contextos, pelo menos na Europa, e já tinha alguns contatos com criminólogos avancados. Estas relagóes me ajudaram a ultrapassar o enfoque jurídico dos problemas. Por outro lado, estive preso durante a ocupagáo alema, e a condigáo de detento ficou gravada no mais fundo de mim como uma questáo em aberto. Também é certo que aprendí com Van Bemmelen, meu professor na Universidade, a me posicionar criticamente em relagáo aos sistemas existentes: numa época em que os professores de Direito Penal geralmente se limitavam a fazer desta disciplina, estranhamente considerada menor, uma simples técnica legalista, ele lhe dava um enfoque de criminólogo e son be fazer com que eu me apaixonasse pelo que ensinava, a tal ponto que, com meu curso concluido, em alguns meses tornei-me seu assistente na Universidade... Mas, tudo isso que rne impelía a aceitar o posto náo me dava os conhecimentos específicos para me transformar num docente, pelo menos na concepgáo clássica do cargo que eu ainda adotava. Eu me sentía muito pobre, muito mal preparado para esta nova tarefa. Eu náo sabia, por exemplo, nada de historia do Direito Penal e nao via como me langar no ensino de um sistema sem ter uma idéia clara do que o havia precedido, de suas origens, de sua evolugáo. Eu também me colocava a questáo da metodología: para chegar a dar o que eu acreditava ser um ensino deste nome, seria preciso repensar todas as categorías. Me vi, assim, mergulhado na historia e na pedagogía... Porém, uma surpresa me esperava. Á medida que eu lia as obras mais importantes sobre o ensino em geral e sobre o conceito de humanidade no ensino, ia descobrindo que eu tinha tido uma visáo apriorística totalmente falsa sobre o papel do professor. Há uma obra de Bloom bastante esclarecedora sobre os diferentes níveis das atividades cognitivas. No que concerne ao aspecto cognitivo do ensino, ele distingue cinco níveis: nivel 1) con liego o texto, pos so repeti-lo; nivel 2) compreendo o texto; nivel 3) posso aplicar os conceitos; nivel 4) analiso; nivel 5) posso fazer a síntese. Entáo, disse para mim mesmo: se clarifico e organizo, me en con tro neste nivel superior de análise e síntese; mas, se dou tudo pronto para os pobres estudantes, eles ficarao sempre no nivel do 'conhecer'ou do 'compreender' — o que estou me dispondo a fazer é totalmente aberrante, Decidí, assim, náo dar aos estudantes as idéias prontas e acabadas, claras e coinpreensíveis, que tinham se tornado as minhas, mas apenas Ihes fazer chegar elementos de reflexáo que lhes permitissem encontrar seus próprios caminhos em situagóes complexas. Seriam eles que fariam as análises, procurarían! a síntese e tirariam suas conclusóes pessoais sobre os problemas que evocaríamos...
—Ao tomarposseemsua oátedra ría. Universidade, vocé já era abolicionista?
— Náo propiciamente. Na realidade, foi na Universidade que a idéia mesma do abolicionismo tomou corpo em mim. Percebi que, a náo ser por um acaso excepcional, o sistema penal jamais funciona como querem os principios que pretenden! legitimá-lo.
— Pois, como professorda Universidade, vocé tena que justificá-lo?
— É certo que, em grande parte, a Universidade tem uma atividade de justificagáo do sistema estatal. Mas, ao mesmo tempo, ela favorece uma atividade crítica. A Universidade me pós em contato com a pesquisa empírica e com enfoques outros que náo o jurídico. Neste sentido, foi exatamente ela que me permitíu chegar a uma nova visáo global do sistema penal e afirmar minha posigáo abolicionista...
Eu diría ainda que, afinal de contas, se as ciencias sociais me levaram a esta posigáo foi porque, praticando-as, descobri que elas náo davam o tipo de resposta que eu esperava. Elas me ensinaram que o 'saber' científico, em última instancia, passa sempre pelo 'vivido', que, em nenhuma hipótese, pode ser substituido, ao contrario do que eu erróneamente acreditava. Nesse sentido, foram as ciencias sociais que me revelaram a importancia do vivido e, igualmente, me levaram a pensar que, ao favorecerem uma melhor compreensáo deste mesmo 'vivido', podem ter uma feliz incidencia sobre ele. Paralelamente, elas foram, pouco a pouco me fazendo aparecer diante dos meus olhos o nonsense do sistema penal, no qual justamente o vivido quase náo tem lugar, nonsense este que algumas pesquisas empíricas iriam me ajudar mais diretamente a descobrir.
— Vocépóde demonstrar o nonsense do sistema penal?
Vocé verá em que medida. No comego do meu curso, me mantive dentro de uma perspectiva mais ou menos tradicional, tratando de colocar limites racionais para a experimentagáo. Mas, ao mesmo tempo, eu queria dar espago para minha visáo global do social, da vida, para as conclusoes que eu havia verificado pessoalmente. Uma pesquisa sobre o modo de sentenciar me deu uma oportunidade única. A partir desta pesquisa, desenvolví um modelo normativo no qual se tratava de operacionalizar os principios amplamente aceitos por juristas e criminólogos, segundo os quais é possível proferir uma sentenga 'justa' (proporcionalidade entre a pena e o delito, subsidiariedade do sistema penal, informagáo exata sobre o imputado, etc.). Um dos meus colaboradores colocou o modelo no computador e, quando resolvemos trabalhar com ele em cima de problemas concretos, chegamos a urna experiencia assoinbrosa perguntávamos: "em tal caso... e neste outro... qual é a pena correspondente?" E a máquina sempre respondía: "nenhuma pena". Jamais se reuniram todas as condigoes para que o tribunal pudesse impor uma pena justa, nos marcos do sistema! Isto foi em 1970.
— Nao foi no ano em que Dems Chapman publicou, na Inglaterra, seu famoso 'estereotipo do delinqüente'P Voce foi influenciado por ele epelos crirninólogospelos americanos P Náo, eu ainda náo os conhecia. Eu fazia, por conta própria, experiencias de sociología empírica que comegara, um pouco por toda parte, de maneira independente. Só mais tarde conheci os trabalhos de Dems e convidei-o a se juntar a meu grupo de pesquisa sobre descriminalizagáodoConselhodaEuropa... Entáo,através daquele estudo em tomo do sentencing, percebi ser quase impossível que uma pena legítima possa sair do sistema penal, dada a maneira como ele funciona. Saltava aos olhos que tal sistema opera como base na irracionalidade, que ele é totalmente aberrante. Neste momento, descobri ter a solugáo para uma indagagáo profunda, que eu me fazia desde ajuventude e que fora deixada sem resposta. Desde minha adolescencia, eu me perguntava, a a propósito da civiliza gao romana, por que aquelas pessoas faziam depender susis decisóes do vóo dos pássaros, ou do aspecto das entranhas de aves sacrificadas. Esta indignagáo náo tinha me abandonado nem mesmo depois da obtengáo do bacharelado. Tratei de esquece-la, dizendo que, afinal de coritas, os roinanos estavam rriuito longe de nós. Mas, a dúvida tinha ficado guardada num canto de mim e reapareceu, por ocasiáo de urna estada de algumas semanas em Roma. A imagem que eu tinha construido da civilízagáo romana retornou ao meu espirito e tive a sensagáo de náo ter decorrido muito tempo desde os romanos da antigúidade, de que eles náo deviam ser assim táo diferentes de nós, e de que toda nossa vida, em certa medida, estava ainda cheia de suas idéias... e também, um tanto paradoxalmente, tive a sensagáo de que poderia ser de outra forma num momento dado, de que o tipo de civilízagáo na qual vivemos poderia ser detido um día... Entretanto, ainda náo tinha conseguido responder á lancinante questáo sobre as aves e suas entranhas... Foi na Universidade, naquele momento de revelagáo do nonsense do sistema penal, que encontrei a resposta para a pergunte que me perseguía. Compreendi, de repente, que o que fazernos com o Direito se parece com que os romanos faziam com seus pássaros e suas aves. Vi que o Direito, a teología moral, a interpretagáo das entranhas, aastrologia... no fundo, funcionam da mesma forma. Sao sistemas que térn sua lógica própria, uma lógica que náo tem nada a ver coma vidaou com os problemas das pessoas. Em cada um destes sistemas, dizia eu, fazem-se depender as respostas de signos que nada tém a ver com as verdadeiras questoes dadas. Para nós, a resposta está no Direito; para os romanos, estava ñas entranhas, para outros, ela se acha na astrologia, mas o mecanismo é o mesmo... No meu curso, costumo comparar o pensamento jurídico ocidental aos jlippers, estas máquinas que existan nos bares e fazem brilhar tocios os tipos de luzes... Este jogo tem sua lógica própria. Naturalmente, se é livre para dizer: se der 1000, eu me caso; se der 800, aceito aquele trabalho... podemos tirar na sorte decisoes que vamos tomar, mas náo nos enganemos: é preciso que estejamos bem conscientes ele que estamos obedecendo a uma lógica especial.
Foi neste exato momento que vocé disse: é preciso abolir esse sistema irracional?
Náo houve um momento espetacular em que a idéia bruscamente brotasse. A necessidade do abolicionismo foi se impondo gradualmente. Paralelamente, ás minhas experiencias empíricas na Universidade, eu recebia informagóes de outros pensadores e pesquisadores que me ajudaram em certos pontos de partida. Notadamente com a leitura de algumas obras de historia, percebi que, em toda parte, se manifesta uma espécie de movimento circular de onde náo se sai. Os sistemas se encontram, aqui e acolá, em diferentes estágios, mas sempre voltam ao mesmo ponto, e isto ocorre ele forma semelhante em todos os países... Sáo os círculos que se rnovem... O livro ele Thomas Mathiesen, Politics of abolition, teve um grande papel nesta etapa de minhas reflexoes, quando eu já estava totalmente maduro. Há muitas coisas impressionantes neste livro, escrito de um jeito todo pessoal... É um pouco como a Biblia. Também é inacabado e, para mim, este aspecto conta muito. Eu tinha também o grande Relatório em quatorze volumes da Presidential Commission dos Estados Unidos: Challenge of crime in afree society. Para quem quer compreender o que é o sistema penal e no que ele está se convertendo, este informe é luminoso. Entre todos os aspectos considerados pelas inúmeras pesquisas que compóe este enorme documento, trazendo uma combinagáo de ciados sobre o sistema penal sem precedentes, há uma análise que mostra clarametne como se forma a cadeia ele clecisóes. Esta leitura também me provocou um turbilháo. Devo muito aínda a Ortega y Gasset, mesmo tendo que retroceeder bem longe para reencontrá-lo, aos tempos de minha juventude. Guardei uma imagem importante: a de que construímos sis tenias abstratos para nos sentirmos em seguranza como eivilizaeáo e trabalharmos para aperfeigoar estes sistemas; mas, os elaboramos com tantos detalhes e as condigoes para as quais foram criados mudam tanto que, com o tempo, toda esta construgáo náo seve mais para nada. A distancia entre a vida e a construgáo torna-se táo grande que esta acaba desmoronando...
— Vocé está sugerindo que o sistema penal é uma construcáo abstraía tao distante da realidade que deverá desmoronar sozinha? Na realidade, infelizmente, este sistema nao dá nenhum sinal de queda. Dá até mesmo vontade de dizer: ao contrário! Diante da avalanche de novas leis, cada vez mais repressivas, que vem sendo promulgadas no mundo inteiro, diante de tantas *Comissóes de Revisan do Código Penal" que, um pouco por toda parte, sepresxam a revigoraro sistema, talvezse devesse, ao contrário, estarpessimista...
Do ponto de vista pessoal, náo sou radicalmente
pessimista. Quero dizer que, sem ser de um otimismo irreal, tenho razoes para ter esperanzas. Mas, para apreender estas razoes e, ao mesmo tempo, compreender corno pude realizar esta minha travessia para o abolicionismo, talvez seja preciso que eu trate de informar o que se passou corrrigo num nivel rnais profundo, sair do campo dos fatos, dos acontecimientos que marcaram minha vida, para tentar algar as experiencias interiores. Determinadas circunstancias levaram a que eu assumisse responsabilidade neste campo. Isto foi o que acabamos de ver. Mas, certas experiencias profundas — evidentemente ligadas aos acontecimientos que teceram a trama da minha vida influíram sobre toda minha maneira de pensar. Sáo estas experiencias as fontes ocultas de minha verdadeira atitude em relagáo ao sistema penal. Após uma determinada crise pessoal, atravessada há uns quinze anos, tomei consciéncia do fato de que minha explica gao do mundo e a explicagáo que dou de mim mesmo sáo processos paralelos, como duas faces de uma mesma moeda. Isto deve ser verdadeiro para cada um de nós o acesso a nossas próprias angustias e a nossos próprios desejos irrflui sobre nossa compreensáo do mundo e viceversa: utilizarmos o que aprendemos do exterior para a decodificagáo das experiencias interiores.
Vocé quer dizer que, para assumir sua posigao abolicionista do sistema penal, vocé mergulhou no mais profundo de si mesmo?
— Sim, é isso! A evolugáo da minha visáo de mundo — e, portanto, do meu olhar sobre o sistema penal —é necessariamente paralela á minha evolugáo pessoal interior,
— Neste caso, teremos que marcar uma segunda conversa, parapartirmos rumo á desooberta das instáncias rnais secretas de sua. posigüo abolicionista.
A coerpáo social já teve seus dias. Nada, nem reconhecimento de uma falta cometida nem contribuipáo á defesa nacional, podem forpar um homem a abrir máo de sua liberdade. A idéia de prisáo e a idéia de quartéis sáo lugares —comuns hoje: estas monstruosidades náo chocam mais. A infámia repousa na calma daqueles que contornaran! a dificuldade por diversas abdicapóes físicas e moráis (honestidade, doenpas, patriotismo).
Uma vez que a consciéncia tenha se recuperado do abuso que compóe parte da existéneia destas masmorras — a outra parte sendo a degradagáo, a diminuipáo que elas engendrara naqueles que délas escapara, assim como os lá aprisionados; e existem, ao que parece, alguns loucos quepreferem a cela ou a caserna — uma vez que essa consciéncia é finalmente recuperada, nenhuma discussáo pode ser reconhecida, nenhuma retratacáo. Nunca foi táo grande a oportunidade de resgatá-la, portanto náo fale em oportunidade. Deixe os assassinos comeparem, se quiser; a paz prepara para a guerra, tais
abram as prisóes
propostas escondem somente os mais profundos ruedos ou os desejos mais hipócritas. Náo nos deixe ter medo de perceber que estamos esperando, que estamos convidando á catástrofe. Catástrofe? Esta seria a permanencia de um mundo onde o homem tem direitos sobre o homem. A sagrada uniáo diante de facas e metralhadoras. Como este argumento desqualificado pode ainda ser usado? Envié os soldados e os réus de volta aos campos de batalha. Liberdade? Náo há liberdade para os inimigos da liberdade. Náo seremos cúmplices dos carcereiros.
O Parlamento vota por uma anistia mutilada; a classe que se forma na próxima primavera partirá; na Inglaterra uma cidade inteira tem sido impotente para salvar um homem; soube-se, sem grande surpresa, que nos Estados Unidos a execueáo de varios condenados foi adiada para depois do Natal porque eles tinham boas vozes. E agora que já cantaran!, podem muito bem morrer, pela cerimónia. Ñas guaritas, ñas cadeiras elétricas, a espera mortal; vocé os deixará perecer?
abram as prisóes dispersem as tropas
In La Revóluíwn Surrealisíe, número 2, janeixo 1925. Tradu^ao de Andre Degenszajn e Ana Cernov, pesquisadores do Nu-Sol.
a escola pública numa perspectiva
Instrucáo Pública e suas relagóes com o Estado
A historia da educagáo mostra-nos que, de modo geral, a instrugáo quase sempre foi, em maior ou menor grau, um assunto mais próximo da sociedade que do Estado — salvo, talvez, ñas burocracias orientáis analisadas por Weber, A educagáo foi, durante a maior parte da historia, um assunto do ámbito privado, e náo do público. A ingerencia do Estado ñas questoes de educagáo comega a ganhar vulto a partir do século dezoito, concomitante com a idéia do desenvolvimento de sistemas nacionais de educagáo, ligados aos processos político-sociais de consolidagáo dos Estados nacionais europeus, instáncias que culminariam com o sistema de instrugáo pública instalado com a Revolugáo Francesa e que se estenderia depois pelo mundo.
' Doutor em Filosofía da Educa^ao, Professor Assistente-Doutor no Depto. de Filosofía e Historia da Educa^ao da FE-Unicamp e Professor Titular da
Faculdade de Filosofía, Historia e Letras da Uiiimep, da qual é o atuai diretor.
As rafees da educagáo pública encontram-se, porém, alguns séculos antes. Numa obra clássica sobre o terna, "Historia da Educagáo Pública", Lorenzo Luzuriaga apon ta quatro diferentes perfis déla que se sucedem históricamente: a educagáo pública religiosa, a estatal, a nacional e a democrática.
Enquanto a primeira, que vicejou entre os séculos dezesseis e dezessete tendo por base a Reforma Protestante, tinha como objetivo explicito a formagáo do bom cristáo através da disseminagáo da alfabetizagáo para a leitura da Biblia na língua nativa — apresentando já, portanto, um caráter nacionalista —, a segunda, que floresceu durante o século dezoito baseada nos ideáis do lluminismo visava á formagáo do súdito, tanto o militar quanto o funcionário, marcada que era pelo despotismo esclarecido, constituia-se numa educagáo autoritária, de caráter disciplinar, mas também intelectual.
A grande virada que marca a génese da instrugáo pública que nos interessa mais de perto acontece, segundo esse autor, ainda no século dezoito, estendendo-se também pelo seguinte; a Revolugáo Francesa é a grande desencadeadora do terceiro tipo de educagáo pública, a nacional, que tem por objetivo a formagáo do cidadáo, constituindo-se numa instrugáo cívica e patriótica do individuo, com um caráter popular, elementar e primário. O qututo e último tipo, a educagáo pública democrática é, ainda de acordo com Luzuriaga, o desenvolvimento natural da anterior, marcada pelo crescimento da participagáo popular ñas tomadas de decisáo, processo que se estende do século dezenove ao vinte. Esse quarto e último tipo de educagáo pública teria por meta a formagáo do homem completo, independentemente de sua posigáo económica; apresenta um caráter humanizador e aculturador, procurando levar um maior nivel ao maior número de homens possível,
Através desse brevlssimo esbogo, podemos perceber que a origem da instrugáo pública repousa no movimento de Reforma Protestante, tendo em Martinho Lutero um dos seus principáis expoent.es. Ainda que religiosa — a escola como lugar da "guerra contra o demonio" — a educagáo pública preconizada por Lutero já mostra preocupagoes sociais, como a necessidade de instrugáo para a provisáo de determinados profissionais que náo podem ser formados na mais completa ignorancia. Obviamente, essa escola mantém fortes interesses classistas, pois náo seriam os mais humildes homens do povo que tornar-se-iam jurisconsultos, médicos, professores, párocos... A eles bastaría os rudimentos da leitura para o contato purificador e pacificador com as escrituras.
Esse perfil classista e pouco democrático da educagáo pública incipiente perdura por um bom tempo. Na Alemanha, por exemplo, em fins do século dezessete, o sistema de ensino previa trés níveis de escolas:
a. escolas primárias: de caráter estritarnente religioso, eram destinadas ao povo em gerai e as aulas eram ministradas em alemáo;
b. escolas latinas (ou secundárias): de caráter humanista, eram destinadas aos burgueses, com aulas em latim;
c. escolas superiores (universidades): de caráter profissional e eclesiástico, baseadas na religiáo reformada.
Essa necessidade de uma educagáo que abrangesse a totalidade da populagáo, obedecendo, porém, ás especificidades de cada classe social foi defendida também por aquele que foi, quigá, o maior teórico da educagáo no período, o morávio Jan Amos Comenius.
Corrí o processo de secularizagáo do Estado e formagáo dos Estados-nagóes europeus, a educagáo pública religiosa ganha cada vez mais os contornos de urna educagáo estatal; como o Estado comega a regulamentar e a exigir a presenga das criangas — e mesmo adultos — ñas escolas, comega também a delinear o aparelho
educativo de acordo com seus interesses próprios.
A influéncia do Estado na educagáo cresce principalmente na Alemanha, de certo modo ainda sob influéncia de Lutero e de suas escolas dominicais, esse profundo esforgo de alfabetiza gao popular para acelerar sua conversáo, ainda que se distanciando sensivel-mente do projeto pedagógico-religioso do monge protestante. Sob o reinado de dois Fredericos, os Kaisers Frederico Guilherme I e Frederico Guilherme II, implementa-se um sistema estatal de ensino, com vistas á formagáo de competentes soldados e bons súditos, que seriam os pilares de um Estado prussiano forte e engrandecido. Esse sistema germánico já preconizava a laicizagáo da escola, paralelamente a sua obrigatoriedade: "todo pai tem o dever de mandar seu filho á escola".
Se o primeiro Frederico aproveita-se da estrutura das escolas religiosas, reformando-as a seu modo através de sucessivas leis de ensino, seu sucessor, Frederico Guilherme II, vai promover a total secularizagáo da escola, tornando-a plenamente estatal, embora náo abandone o ensino de religiáo, agora porém submetido aos interesses do Estado.
Também, em Franga, cuja educagáo estava principalmente em máos de congregagóes religiosas, dos jesuítas em especial, a educagáo estatal comega a ser alvo de significativos esforgos governamentais, aínda no século dezoito, impulsionada pelos ideáis iluministas, pleiteada por pensadores de vulto, como Voltaire ou Diderot, por exemplo.
Paralelamente á implementagáo de um sistema estatal de ensino que tornasse a educagáo parte da esfera pública e náo apenas da privada, mas afastando-se dos interesses únicamente religiosos, desenvolvíase a discussáo em torno da necessidade de desenvolverse um ensino nacional, que tivesse por finalidade gerar na populagáo o sentimento do civismo e do patriotismo, possibilitando a consolídagáo do Estado-nagáo através de lagos mais fortes que os estritamente políticos. Também essa discussáo é fomentada e alimentada pelos filósofos iluministas; mas mesmo Rousseau, um outsider do Iluminismo, mostrando o caráter da época, anuncia, em suas "Considera góes Sobre o Governo da Polonia" que só um povo livre pode ter urna educagáo nacional, ao mesmo tempo em que é ela própria quem garante a liberdade deste povo.
A conjungáo desses dois processos — progressiva ingerencia do Estado ñas questoes de educagáo e constituigáo de uma educagáo cívica que desenvolvesse o senso de nacionalidade — é a grande responsável pelos primitivos delineamentos do sistema de ensino público que perdura até nossos dias. Sua génese dá-se em fins do século dezoito, com a Revolugáo Francesa; nesse momento histórico e político, a educagáo estatal do despotismo esclarecido iluminista baseado na formagáo do bom súdito do Estado perde a razáo de ser, tomando seu lugar a necessidade de preparar, através da instrugáo pública, o cidadáo, aquele que deve participar ativamente da vida de sua nagáo. Se a educagáo pública estatal nascia como resultado do processo de secularizagáo do Estado, essa nova modalidade aparece como resultado de sua progressiva democratizagáo.
Náo podemos imaginar, entretanto, que esse processo é mecánico e simples; ao contrário, é resultado de tumultuadas discussóes e reivirrdicacóes que permearam os diversos momentos políticos da Revolugáo Francesa. Estáo já presentes como queixas populares (do Terceiro Estado) nos "Cahiers de Doléances" os registros das queixas dirigidas aos Estados Gerais. Como mostra Antoine Léon, muitas reclamagóes eram dirigidas contra a instrugáo eminentemente religiosa oferecida aos camponeses, embora alguns dos redatores julgassem oportuna essa situagáo, pois "a ignorancia dessa ordem baixa é náo somente útil, como necessária, para preencher e prover a todos as necessidades da sociedade..." 2
Esses "Cahiers" sáo extremamente heterogéneos, por um lado devido as diferencas regionais e, por outro, devido á própria constituigáo do Terceiro Estado, composto por toda a sociedade francesa com excegáo da nobreza e do clero: dos burgueses alijados dos direitos políticos aos despossuídos de toda ordem. Assim, sao múltiplas as queixas e muitas as exigencias, das mais diversas ordens. Durante o processo da Revolugáo, essas questóes váo ser exaustivamente examinadas e traba -lhadas, corrí as discussóes sendo embaladas de acordo com o momento político; muitas posigóes sáo assumidas e abandonadas, no processo de criagáo de um sistema estatal e nacional de ensino que se coloque de acordo com os preceitos da "Decía ra gao Universal dos Direitos do Homem e do Cidadáo", adotada pela Assembléia Constituinte em 26 de agosto de 1789.
Na Assembléia Constituinte, Mirabeau e Talleyrand foram as figuras que mais se destacaran! em materia de educagáo; o segundo chegou a redigir um " Relator io e Projeto de Decreto", que apresentou á Assembléia em 1791 e onde sistematiza suas idéias sobre a educagáo e como a Revolugáo deve caminhar nesse aspecto específico. Segundo ele, a nova Constituigáo — que institui uma nova sociedade — exige um novo sistema de educagáo, uma educagáo que seja a garantía da liberdade, pois "os homens declaram-se livres; náo se sabe, porém, que a instrugáo amplia sern cessar a esfera da liberdade civil, e só ela pode sustentar a liberdade política contra todas as espécies de despotismo?"3 A educagáo é, aínda, vista como a possibilidade da igualdade de fato.
Se o relatório de Talleyrand toca em pontos importantes para a consolidagáo da instrugáo pública, como sua necessária universalidade nos mais diversos aspectos, a garantía da liberdade e da igualdade etc., deixa de tocar em um ponto fundamental, a obrigatoriedade deste ensino. Dada a intransigente defesa da liberdade, a obrigatoriedade do ensino também nao estaría presente no próximo relatório sobre a ed ucacao, desta vez apresentado por Condorcet, em 1792, já a uma nova instáncia da Revolugáo, a Assembléia Legislativa.
Condorcet inicia seu relatório definindo já o caráter da educagáo revolucionária: sua publicizagáo, sua universalidade, sua capacidade de promover a igualdade. Mesmo náo impondo a obrigatoriedade do ensino, Condorcet está preocupado com sua abran-gencia, e procura instituir a gratuidade, pelo menos em alguns níveis, como forma de fomentar a maior assiduidade possível do maior número de cidadáos; se a Constituigáo já previa a gratuidade do primeiro dos quatro níveis da instrugáo, propóe ele que essa gratuidade seja estendida para todos os níveis, como forma de, ao garantir o desenvolví mentó das habilidades dos mais pobres, possibilitar á nagáo uma maior prosperidade.
Sem nos aprofundarmos nos meandros politico-sociais deste processo de construgáo do sistema público de ensino em Franca, é importante ressaltar que, se a Revolugáo Francesa náo chega propríamente a instalar um sistema público de ensino em sua completude, fornece as bases políticas e sociais, teóricas e práticas para que ele se consolide ao longo do século dezenove em toda a Europa. Na perspectiva de Luzuriaga, é esse sistema de ensino nacional que evolui para o atual sistema de instrugáo pública que conhecemos no século vinte e ao qual ele denomina democrático, por contemplar, além de todas as características já citadas, a gratuidade, o que possibilita sua extensáo a todas as carnadas da populagáo, independente de suas rendas específicas.
Esses tópicos representam a base do projeto liberal de educagáo, com seus principáis cánones, a defesa da educagáo como meio de ascensáo social e fonte de igualdade, motor do progresso individual e da humanidade e base do civismo. Além disso, tanto o relatório Talleyrand quanto o de Conclorcet defendiam a universalidade do ensino, embora o primeiro falasse nela referindo-se ao conteúdo da instrugáo e o segundo, pensando em sua clientela. Nesta perspectiva, é de extrema importancia que percebamos os objetivos implícitos da publicizagáo do ensino. O próprio Condorcet, ao mesmo tempo em que propunha a gratuidade em todos os niveis da instrugáo, estabelecia também seu estrito controle pelo Estado, em dois niveis: primeiro, fazendo a selegáo, contratagáo e alocagáo dos professores e, segundo, indicando os livros e materiais pedagógicos a serem utilizados. Se isso visa a garantir a universalidade e uniformidade do ensino em tocia a nagáo, tem também o caráter implícito do controle ideológico: o Estado náo abre máo de escolher e determinar quem vai trabalhar, onde vai trabalhar, com o que vai trabalhar e como vai realizar esse trabalho.
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2002
Considerares sobre a relagáo Estado e Educagáo no Brasil
As relagóes do Estado com a educagáo no Brasil sáo por vezes obscuras e freqúentemente ambiguas. Sem dúvida, a principal questáo que perpassa essas relagóes é a da publicizagáo ou privatizagáo do ensino, que hoje encontra eco ñas propostas que se auto-intítulam "neoliberais" e advogam a desestatizagáo das escolas, abrindo-as plenamente á iniciativa privada.
As contradigóes deste neoliberalismo sáo apontadas e suas consideragóes desmontadas, tanto pelo aspecto teórico quanto pelo prático, na exposigáo que Demerval Saviani realizou durante a 6a Conferéncia Brasileira ele Educagáo, intitulada "Neoliberalismo ou pós-liberalismo? Educagáo pública, crise do Estado e democracia na América Latina". Após demonstrar que, tanto histórica quanto conceitualmente, a educagáo pública é a regra geral do liberalismo, considerando-se que o Estado deve ser o seu organizador e o seu gestor, o educador concluí que, longe de ser neoliberal e moderna, essas posigóes hoje apregoadas melhor se caracterizarían! pelos epítetos "pós-liberal" e "pós-moderna", com toda a carga de ambigüidades e dissolugáo conceitual que eles acarretam.
Essa discussáo entre nós náo é, entretanto, nova. Ela permeia toda a historia da educagáo no Brasil, da colonia até nossos días. Para situá-lo brevemente na tentativa de sua compreensáo, tomaremos alguns momentos básicos onde ela aparece de forma mais explícita.
O primeiro momento que nos chama a atengáo é, ainda durante o período colonial, aquele das reformas pombalinas, aguijando as rivalidades entre o Estado portugués e a Igreja, particularmente os jesuítas, na segunda metade do século dezoito.
Sabemos da importancia dos jesuítas para o estabelecimento de um sistema de educagáo no Brasil. Chegados ao país meio século após seu descobrimento e uma década após a fundagáo de sua Companhia de Jesús, esses padres tinham a fungáo original de converter os indios, levando a eles a fé cristá. Entretanto, a vocagáo jesuítica para a educagáo que se cristalizaria teóricamente no famoso "Ratio alque Instituto Studiorum Societas Jesu", promulgado definitivamente em 1599 e na prática ñas escolas de todos os níveis que estavam criando em várias partes do mundo, fez com que eles se dedicassein, também no Brasil, á educagáo em geral e náo apenas á catequizagáo dos indios.
O primeiro colégio jesuíta no Brasil foi fundado ainda em 1550, apenas um ano após sua chegada, na entáo sede do governo, a capitanía da Bahía. A este, varios se seguiram, oferecendo cursos dos níveis mais elementares até o superior, com o ensino de Artes, Humanidades e Teología, principalmente. Com a consolidagáo destas escolas, os jesuítas comegaram a reivindicar a extensáo dos privilégios das escolas da metxópoie para as da colonia. Nos sucessivos debates que se seguiram na busca do reconhecimento destes cursos, uma questáo foi importante para a delimitagáo dos limites do público e do privado na educacao brasileira, aquela que ficou conhecida históricamente como a "questáo dos mogos pardos", posto que esses se viram impedidos de estudar no Colegio da Bahia.
Vencidas essas dificuldades, as escolas jesuítas fioresceram e, sem exagero, dominaram plenamente a educagáo colonial até a segunda metade do sécu lo dezoito, quando principia o assim chamado período pombalino, dada a agáo política do Marqués de Pombal em Portugal, que teve na expulsáo da Companhia de Jesús uma de suas agoes centráis. Sáo conhecidos os motivos e os atos de Pombal em sua tentativa de modernizagáo e industrializagáode Portugal; deter-nos-emos aqui apenas nos efeitos da expulsáo dos jesuítas para o sistema de ensino brasileiro.
A saída dos jesuítas da colonia significaría a completa desarticulagáo do sistema educacional escolar; sem jesuítas, náo haveria escolas no Brasil. O Estado metropolitano, aberto que estava para a modemidade européia, incorpora partes de discursos sobre a agáo do Estado na educagáo e resolve ocupar o vácuo que seria deixado com a saída dos jesuítas, pelo menos no que diz respeito ao controle e gestáo administrativa do sistema escolar.
Tal agáo do Estado dá-se, primordialmente, através do "Alvará Regio de 28 de junho de 1759, em que se extinguen! todas as Escolas reguladas pelo método dos jesuítas e se estabelece um novo regime. Diretor dos Estudos, Professores de Gramática Latina, de Grego e Retórica". Esse documento oficial, ao decretar fechadas todas as escolas jesuíticas no territorio colonial, faz uma dura crítica ao método do "Ratio Studiorum". Feitas as críticas e extintas as escolas, cabe á Coroa que instale um novo sistema de ensino, e é exatamente essa a linha pela qual segue o mesmo "Alvará Régio".
Com uma agáo intensiva, o Estado portugués assume definitivamente o controle da educagáo colonial. A criagáo da figura do "Diretor dos Estudos" deixa bem clara, no mesmo "Alvará", a intengáo da Coroa de uniformizar a educagáo na Colonia e fiscalizar a agáo dos professores — desde já por ela Horneados — do material didático por eles utilizado — também devidamente "recomendado" no mesmo documento — de modo a que náo houvesse choque de interesses — isto é, que náo houvesse nenhum outro poder, como era o dos jesuítas, a afrontar as determinagóes da Coroa.
Foi de quase trinta anos o tempo de que o Estado portugués necessitou para assumir o controle pedagógico da educagáo a ser oferecida em térras brasileiras; da completa expulsáo dos jesuítas e do desmantelamento sistemático de seu aparelho educacional, dos métodos aos materiais didáticos, até a nomeagáo de um Diretor Geral dos Estudos que deveria, em nome do Rei, nomear professores e fiscalizar sua agáo. A educagáo no Brasil passa a ser uma questáo de Estado. Desnecessário frisar que este sistema de ensino cuidado pelo Estado servia a uns poneos, em sua imensa maioria, filhos das incipientes elites colorriais.
Um segundo momento importante para a compreensáo das relagóes Estado versus Educagáo no Brasil é novamente um período de rupturas políticas e sócio-culturais. Após o grande impacto das reformas pombalinas, é quando o Brasil declara sua indepen-déncia política de Portugal que a educagáo novamente é langada para a linha de frente das discussóes. Tratava-se agora da necessidade da formagáo de quadros administrativos, da constituigáo de uma nova elite burocrática que substituísse a administragáo lusitana.
Tal preocupagáo do agora estado imperial brasileiro acabaría por consolidar como sua principal realizagáo a Academia de Direito do Largo de Sáo Francisco, após intensos debates parlamentares que delinearam os contornos do projeto. O Estado, obviamente, tomou as devidas precaugoes para o controle do ensino oferecido pela Academia.
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2002
Luís Antonio Cunha aponía que nesse período, em que pese o processo largamente difundido a nivel mundial de publicizagáo e secularízagáo do ensino, no Brasil a educagáo prosseguia sob influéncia da religiáo, dada a al i anca constitucional da Igreja Católica com o Estado. A linha geral era a da regulamentagáo do ensino estatal, deixando o aparelho particular — que com a saída dos jesuítas perdeu quase a totalidade de sua importáncia — funcionando por sua própria conta e ordem. O ensino estatal, por sua vez, estava dividido em duas esferas: a nacional e a provincial. A nacional era responsável pelos niveis primario e secundário, na corte, e pelo nivel superior em todo o país; já a provincial respondia pelos niveis primário e secundário ñas provincias.
Vemos, assim, que o ensino estatal brasileiro ficava circunscrito quase que apenas ao ensino superior, embora sua influéncia se estendesse aos demais niveis, dada a necessidade de selegáo para o ingresso em sua escolas. Tal fato gerou diversos manifestos e movimientos em nome da liberdade de ensino, no qual os representante das escolas particulares rei vi n el i cava m a náo regulamentagáo pelo Estado, discussáo que arrastou-se sem maiores conseqüéncias práticas por longo tempo. Deste modo, a educagáo estatal continuava atendendo a uma minoría, aínda bastante longe dos ideáis de publicizagáo, gratuidade e obrigatoriedade do ensino básico que já grassavam pela Europa.
A preocupagáo com a publicizagáo do ensino básico vai disseminar-se em um terceiro momento, o do advento da república. Embalado que foi pelos ventos de "modernidade" europeus, de cunho eminentemente positivista, o ideário republicano incorporou a defesa do ensino básico como responsabilidade do Estado. Certamente mais por ver no Estado o promotor necessário da ordem social que seria o único caminho para o progresso do que por julgar que fosse esse um direito básico do cidadáo; republicanos liberáis e esclarecidos, entretanto, como foi o caso de Caetano de Campos que exerceu importante agáo na educagáo pública em Sáo Paulo, defendía o caráter humanitário e cívico da educagáo pública, afilado com os debates que já um século antes animaram as Assembléias durante a Revolugáo Francesa.
A aplicagáo do ideário liberal-positivista dos republicanos brasileiros passava por uma sólida agáo do Estado no campo educacional; entretanto, seria um contra-senso inibir ou proibir a agáo de particulares na educagáo. A agáo do Estado justificava-se, porém, dada a insuficiencia dos esforgos privados para suprir toda a demanda por escolas da populagáo. O Estado deveria reservar-se, por outro lado, o direito de fiscaliza gao sobre as escolas, para garantir uma agáo didático-pedagógica eficaz, tanto ñas escolas sob a tutela quanto ñas escolas mantidas pela iniciativa privada.
Náo podemos imaginar, porém, que esse período que acabaría sendo caracterizado pelos historiadores da educagáo como o de "entusiasmo pela educagáo" foi marcado apenas e táo somente por uma efetiva e direta agáo do Estado na educagáo, o que essa agáo se deu de modo "desinteressado" e sem pressóes populares. Por trás do "entusiasmo" republicano, embalado pelo positivismo e pelos ideáis da burguesía esclarecida européia que viam na educagáo o caminho da civilidade e da cidadania, estavarn as pressóes e reivindicagóes populares, que apareceriam cristalizadas nos discursos e publicagóes do incipiente movimento operário brasileiro, fruto dos primeiros esforgos de industriali-zagáodopaís.
Fundamentáis para esse processo e exemplos sintomáticos das reagóes populares mais esclarecidas á agáo governamental no ámbito educacional fora as agóes dos socialistas na virada do século e dos comunistas a partir da década de vinte; o hiato de duas décadas foi preenchido por uma agáo hegemonicamente anarquista 110 movimento operario brasileiro que, como temos visto, pauta-se por um afastamento tático e metodológico do Estado, inclusive na questáo educacional.
Os socialistas parecem partilhar com os liberáis positivistas seu "entusiasmo pela educagáo"; os motivos, porém, sáo outros. Se os primeiros véem na educagáo o caminho da construgáo da cidadania, da participagáo política numa sociedade liberal que é marcada pela diferenga de classes, embora a "igualdade de oportunidades" seja tomada por principio, os outros a tém como um veículo necessário para a tomada de consciéncia destas diferengas sociais e a conseqúente opgáo por sua transformagáo. Enquanto os liberáis querem com a educagáo preparar pessoas que possam bem servir á comunidade e tomam o Estado como seu necessário organizador e controlador, os socialistas exigem do Estado que o dinheiro arrecadado com os impostos seja revertido em beneficios básicos para a populagáo em geral, especialmente para os menos favorecidos, sendo a educagáo um desses beneficios.
O que fazern os socialistas é levar ao extremo a concepgáo de Estado dos liberáis, cobrando sua coeréncia e consistencia. Se o Estado tem a fungáo de administrar com justiga os esforgos sociais, garantindo a igualdade de oportunidades e a liberdade de agáo, deve necessariamente garantir a educagáo pública, laica e gratuita para todos e náo para alguns privilegiados apenas. Este é o mote do discurso socialista, que aparece em diversos artigos publicados na imprensa operaría.
A reivindicagáo da educagáo pública básica, náo apenas para as criangas, mas também para os trabalhadores desejosos de instrugáo, aparece primeira-mente como uma tentativa de minorar a situagáo de miséria e penúria da classe operária, o que é exigir nada mais nada menos do que a efetiva agáo do Estado liberal republicano no cumprimento dos seus principios. Num segundo momento, porém, o caráter eminentemente político e contestatório da re i vindica cao educacional socialista fica claro, mostrando a extremizagáo dos principios liberáis, que levarían! á dissolugao mesma desta sociedade.
A hegemonía anarquista no movimento operário brasileño durante as duas primeiras décadas deste século, se significou um importante avanco para a instrugáo da classe trabalhadora significou, também, um retrocesso ñas reivindicagóes operarías e populares por um ensino público a cargo do Estado. Tais reivindicagóes voltariam a ganhar forga no cenário político na década de vinte, após a fundagáo do PCB em 1922; partindo da divulgagáo dos avangos da educagáo na Uniáo Soviética e de seus novos métodos de ensino popular, os comunistas chegaram á formulagáo de uma política nacional de educagáo.
O processo de implantagáo sistemática da escola pública no Brasil aparece entáo como resultado de reivindicagóes oposicionistas e agóes situacionistas que, partindo de pressupostos e objetivos dispares, concordara cora a necessidade de consolidagáo de um aparelho estatal de ensino. Tal processo náo é simples nem tampouco homogéneo; as agües do Estado flutuam ao sabor do momento político. Em momentos de ditadura, corno as do Estado Novo e a mais recente, do Regime Militar, vemos agóes incisivas do Estado no sentido de reformar a educagáo para possibilitar um controle maior e mais proficuo; em outros momentos, governos de orientagáo um pouco mais progressista agem no sentido de buscar uma maior democratizagáo do ensino, o que nem sempre surte os efeitos desojados.
No período mais recente de nossa historia, as contra-dicóes ganham vulto: se do processo de democratizagáo da sociedade parece aos poucos surgir também uma escola mais democrática, aqueles que fazem plantáo na defesa de um suposto neo-liberalismo advogam unía ingerencia cada vez menor do Estado na educagáo, abrindoa paulatinamente á exploragáo pela iniciativa privada. Acontece que muitas vezes esses neoliberais, quase inimigos do Estado, tomam-no de assalto — náo para destrui-lo, realizando o velbo sonho anarquista, mas supostamente des-regulamentar a sociedade, tornando-a mais livre — e em lugar de desenvolver políticas públicas no campo da educagáo cuidam de desmantelar e sucatar o pouco que existe.
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2002
Essa tensáo entre o público e o privado na educagáo brasileira atravessa toda a república e permanece na Constituigáo de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educagáo Nacional, de 199G. Fala-se agora em duas modalidades de escolas: as públicas e as privadas, sendo que essas últimas se subdividem em lucrativas e náo lucrativas. As náo lucrativas, por sua vez, podem ser comunitarias ou confessionais.
Essa distingáo entre as modalidades das escolas privadas tem o objetivo claro de permitir a alocagáo de recursos públicos para entidades privadas que trabalhem com a educagáo. Seria um absurdo que o Estado injetasse recursos públicos numa iniciativa privada funcionando no contexto do mercado e apta, portanto a auferir lucros desta atividade; por outro lado, se a escola, mesmo sendo gerida pela iniciativa privada náo se coloca o lucro como fim último, mas sim uma atuagáo no sentido da promogáo do individuo e da sociedade, que mal haveria em ela receber uma contribuigáo dos cofres públicos para a real izaga o desta atividade comunitária ou mesmo filantrópica?
As escolas ditas confessionais, ou seja, ligadas a uma congregagáo religiosa, tem o impedimento teórico de visar ao lucro; outras instituigóes de caráter "filantrópico" também náo teriam nele sua razáo de ser; é verdade, entretanto, que poucas sáo as escolas privadas que náo se encaixariam em nenhuma dessas modalidades constitucionalmente previstas, se nos afastamos do ámbito da educagáo infantil pré-escolar, onde elas dominam, posto que só mais recentemente a agáo do Estado tem se intensificado nesse nivel de ensino, através das EMIils — Escolas Municipais de Educagáo Infantil.
A agáo dos defensores das escolas privadas é bastante clara: desqualificar o ensino público, impondo aquele oferecido na iniciativa privada como padráo de qualidade.
Náo podemos pensar, entretanto, que esse processo acontece á revelia do Estado. Ñas últimas décadas, temos assistido a uma agáo do Estado na área da educagáo que, veladamente e sem grandes alardes, tem pactuado com o sucateamento do sistema público de ensino e aberto espagos para a atuagáo da iniciativa privada. Com esse processo o Estado exime-se cada vez mais de suas responsabilidades com a educagáo, embora ela seja uma figura constitucional. A reflexáoparece sera seguinte: se temos um ensino privado de uma qualidade tal que a iniciativa pública — burocratizada e ineficiente —náo tem mesmo como acompanhar, por que náo oficializar a educagáo como esfera primordialmente privada?
As conseqúéncias destas agóes, sejam do Estado, sejam de grupos privatistas por ele toleradas — e até estimuladas, em alguns casos — sentimos até hoje, estejam elas ainda em vigor ou náo. É verdade que com a redemocratizagáo do país a partir dos anos oitenta temos visto diversas administragóes municipais e estaduais progressistas comprometidas com a qualidade do ensino público; os resultados eficazes destas administragóes, entretanto, náo se tém feito sentir com a intensidade desejada.
Os administradores e educadores progressistas nessa incipiente democracia acabam por ser vítimas do mesmo instrumento que os leva ao poder e possibilita sua agáo: o voto. Uma agáo séria no campo da educagáo, traduzida na melhoria dos salários e condigáo de trabalho dos professores e na melhoria das condigóes e qualidade de ensino náo sáo sentidas senáo a medio e longo prazo; náo trazem, pois resultados ¡mediatos ao nivel de votos numa próxima eleigáo. Já a construgáo de predios — lembremos dos CIEPs e dos CIACs — se nao traz efetivas contribuigóes para a melhoria da qualidade do ensino, é muito mais visível para os eleitores e portanto fonte mais segura de votos.
A questáo das relagóes do Estado com a educagáo no Brasil está, pois, muito longe de encontrar uma solugáo.
Por uma educagáo pública náo estatal
Quando falamos em educagáo publica, pensamos, de forma quase que imediata, em educagáo fornecida pelo Estado, como se entre as duas expressoes houvesse um lago, invisível e indissolúvel; mas será que conceitualmente podemos reduzir a educagáo pública apenas aquela fornecida pelo Estado?
Num movimento que ganhou mais énfase durante as discussóes que nortearam a redagáo da Constituigáo Federal promulgada em 1988 e que se agitou novamente em torno das discussóes sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educagáo Nacional, aprovada em dezembro de 1996, alguns grupos — bastante heterogéneos em sua composigáo — defenderam e tém defendido através de seus poderosos lobbies que a educagáo pública náo pode ser resumida á educagáo estatal, mas englobaría ainda outras modalidades de ensino. Um exemplo típico seria a parcela das escolas confessionais que defendem para si próprias o epíteto de escolas comunitarias, por pautarem-se em reais interesses sociais — calcados na chamada "opgáo preferencial pelos pobres" da Igreja Latino-americana — e náo em meros interesses finan-ceiros e empresariais, como as escolas privadas propria-mente ditas.
A parte dos verdadeiros e honestos interesses sociais destas escolas, que em alguns dos casos realmente existem, náo podemos deixar de explicitar que por trás desta simpática autodenominagáo passa, sorratei-ramente, o interesse de conseguir acesso ás verbas que o poder público destina á educagáo que, se náo sáo no montante que seria mínimamente desejável para suprir nossas necessidades, também estáo muito longe de serem despreziveis. Assim, as ditas escolas comunitárias também receberiam verbas estatais que, a principio, deveriam ser encaminhadas apenas e táo somente áquelas escolas cuja manutengáo e gerencia é fungáo direta cío Estado.
Para a questáo que é de nosso interesse e deixando de lado o juízo ético-político sobre essas escolas comunitárias, essa sua agáo (ou seu discurso, pelo menos) é importante e proficua, pois coloca em xeque a exclusividade do Estado em oferecer uma educagáo que seja pública, isto é, voltacla para todos e para os interesses comuns. Se outros grupos sociais e/ou instituigoes também podem desenvolver um processo educacional público, será mesmo necessária essa onipresente e onipotente mediagáo do Estado?
Hoje vemos a educagáo, antes de tudo, como uma fungáo do Estado, assim como a saúde; a iniciativa particular, no caso cía educagáo, deve funcionar apenas no nivel complementar ou ele escolha ideológica dos país. Esta escolha é, porém, bastante limitada, pois os currículos, atividades etc. sáo todos definidos, regula-mentados e fiscalizados pelo Estado.4 Mas por que é precisamente esta a visáo socialmente dominante entre nós?
Se estudamos aquestáo conceitual do Estado moderno e a génese da instrugáo pública, fíca claro que a educagáo como fungáo do Estado é um fenómeno histórico, bem definido e bem caracterizado; podemos precisar como, quando e por que surgiu, como se desenvolveu, como se clá o funcionamento dos vínculos com o Estado, a que interesses ela esteve e está vinculada, quais foram seus sucessos e seus fracassos e por que eles se deram.
Uma das fungóes determinantes na génese histórica da instrugáo pública, talvez mesmo a mais importante, foi a da promogáo da nacionalidade. Em um contexto bem específico da Europa cía época, tratava-se ele incutir na populagáo um sentimiento cívico de nacionalidade que fortalecesse os lagos eminentemente políticos que possibilitavam a constituigáodos Estados nacionais. Uma populagáo largamente ignorante que pouco ou nada conseguía enxergar além de sua estreitíssima esfera social precisava ver crescer em si mesma um senso de abrangéncia quase que impensável: camponeses que nada conheciam além das térras em que trabalhavam e das poucas pessoas com quem tinham contato, aldeóes que muito raramente conseguiam ultrapassar os limites da vila precisavam, de repente, conseguir intuir limites geográfico-territoriais e populacionais muito além de suas capacidades, para poder abarcar em si o conceito de na gao e o de nacionalidade. A conceituagáo, porém, náo era o bastante: era preciso criar lagos afetivos; o individuo precisaría sentir-se parte integrante da nagáo para defendé-la, se preciso até com a própria vida. Sem dúvida alguma, a criagáo de lagos sociais, profundamente entranhados nos individuos, criaría uma "amarragáo" muito mais forte. Podemos aqui tragar uma analogía com a teoría do poder de La Boétie: quanto mais disseminado entre os individuos o sentido da nacionalidade, mais forte torna-se a Nagáo mesma.
Neste contexto, urgía que aqueles individuos, em sua maioria iletrados e ignorantes, desenvolvessem uma maior capacidade de abstragao e conceituagáo, o que so seria possível através da instrugáo, á qual eles só poderiam ter acesso caso as condigóes fossem enormemente facilitadas. A educagáo pública tinha, pois, no momento de sua origem, uma fungáo política específica e importante a cumprir — significava a manutengáo e o crescimento do próprio Estado — além de, é claro, acalmar os ánimos das rnassas que reivindicavam melhores condigóes sociais de vida.
O processo que acontece tardíamente no Brasil é análogo a este, embora mudem bastante as especificidades; a importagáo das idéias, porém, tanto do lado dos trabalhadores, cada vez mais influenciados pelo crescente fluxo cíe imigra cao européia que trazia para cá as "visoes da modernidade", cjuanto do lado dos republicanos que, profundamente embebidos pelo positivismo europeu, vislumbravam um destino de "ordem e progresso" onde a educagáo é pega-chave, garante a implantagáo de nosso sistema de instrugáo pública, muito embora os interesses do Estado sejam outros.
Voltando ao momento presente, náo sáo poucos os que afirmam que o país vive hoje uma crise de naciona-lidade, e que urge que despertemos o sentimento cívico na populagáo. A campanha ganha a mídia ele forma nada subliminar, mas intensamente: a grande imprensa, o ráclio e a televisáo pululam ele discursos cívicos e nacionalistas; náo bastando isso, novelas comegaram, nos últimos anos, a tratar o tema e até mesmo o marketing assume uma feigáo cívica, com o nacionalismo sendo usado para vender de sabonetes a servigos bancários. Numa outra face da moeda, empresários abandonam seus interesses privados para assumir, na feigáo pública, uma imagem de "defensores ela pátria", ele preocupados e comprometidos com a situagáo político-social do país.5
Correndo o risco de sermos crucificados pelos defensores do "pensamento politicamente correto" — essa outra pérola da modernidade! — cabe aquí que enfrentemos o problema com a profundidade conceitual que ele merece. Devenios, pois, colocar a questáo: precisamos realmente desse sentimento ele naciona-lidade? Ou, aprofundando ainda mais: tem algum sentido para nós o nacionalismo?
Para assegurar a pretendida profundidade da resposta, faz-se imprescindível que busquemos o apoio da filosofia da cultura numa obra fundamental de Gilberto de Mello Kujawski, A Crise do Século XX. Nessa obra, ele analisa a crise contemporánea como, antes ele tudo, a crise ela modernidade, apoiado um pouco mais em Ortega y Gasset e um pouco menos em Julián Marías. Nessa análíse, ele nos mostra que um dos conceitos cánones da modernidade é exatamente o conceito de Nagáo, e orteguianamente demonstra que as nagóes náo nascem nem da unidade lingüística nem das fronteiras territoriais comuns mas, ao contrário, que essas duas características sáo decorrentes do próprio ato originário de uma nagáo: o pacto político. Esse pacto é um ato cotidiano, refeito e recriado a cada instante, lancando-se, como utopia, ao futuro. Após demonstrar que a idéia de nagáo representa um avango astronómico em abstragáo, se comparada com a polis grega ou a urbs romana, ñas quais, dada a limitagáo no tamanho populacional havia um relacionamento face-a-face entre os individuos e, portante, uma instituigáo política mais direta, ele afirma que a nacáo, ao contrário, é a constituidora dos individuos.
Para manter essa abstragáo constituinte dos individuos é preciso, porém, que eles a recriem permanentemente através do pacto; a estabilidade temporal de uma nacáo reside na re-criagáo continua, ad injxnitum, de sua instabilidade. Daí o fato de a educagáo ser de suma importáncia na construgáo e manutengáo de um projeto nacional. Náo se constrói uma nagáo, assim como ela náo pode viver, sem o concurso direto de toda a populagáo, e a educagáo vai justamente criar e animar os lagos de civismo que constituiráo o orgulho da nacionalidade — algo puramente artificial e abstrato, portante.
Assim, se realmente pretendemos fazer deste país urna nagáo,6 a educagáo e a mídia teráo importancia capital. Mas é aquí que a filosofia da cultura de Kujawski veril em nosso apoio: faz sentido a defesa da construgáo de um projeto nacional para o Brasil hoje?
O que o filósofo orteguiano vai demonstrar é que a América Latina em geral e o Brasil em particular "perderam o bonde da modernidade", essencialmente, nós nunca fomos modernos, pois as condigóes histórico-culturais de nossa regiáo estiveram sempre muito distantes das condigóes européias, o palco por excelencia cía modernidade. Deixando de lado a pluralidade de conceitos que sustentam a modernidade e atendo-nos apenas a um deles, o ele nagáo, podemos afirmar, com toda certeza, que os países latinoamericanos jamais se constituirán! em nagóes como as européias, assim como os Estados Unidos da América nada mais sáo do que uma federagáo de cinqúenta Estados/ Mas, hoje, com acrise da contemporaneidade, a própria nagáo está em crise; o possível desenvolvimiento político das atuais nagóes deve dar-se no sentido de uma supranacionalidade, com a cliluigáo do poder dos Estados-nagóes.8
Deste modo, a crise da modernidade náo é a nossa crise, assim como a busca de urna nova alternativa política, mais abrangente, para os Estados-nagáo náo é, necessariamente a nossa busca. É neste contexto que levamos uma certa vantagem sobre a Europa: por náo sermos modernos, é muito mais simples para nós superarmos a crise da modernidade, achar nosso caminho próprio e particular, como também afirmava, partinclo de um outro referencial, o francés Félix Guattari, ao explicar que a criatividade européia está rrrorta, e que a esperanga da humanidade hoje reside na inventividade do assim chamado Terceiro Mundo.9 Podemos, sem dúvida alguma, engajarmo-nos no projeto de encontrar a modernidade, a clespeito do atraso histórico e da busca que se assernelharia a correr atrás ele um crepúsculo que a cada instante mais e mais prenuncia o anoitecer, e ai a construgáo de um projeto nacional será de extrema importáncia e a educagáo pública terá seu papel cívico a desempenhar, de forma determinante. Mas qual seria o sentido de buscar uma fórmula histórica que se "desmancha no ar", parafraseando Marx?
Mas, se mais sabiamente, optarmos por dedicarmo-nos socialmente a um projeto inovador e transformador em sua singularidade, teria entáo sentido o papel que tradicionalmente se atribuí á educagáo pública? Náo deveria ser ela profundamente reformulada, passando a ser construida comunitariamente, corrí o trabalho e o engajamento responsável dos individuos, em consonancia com o caminho escolhido que, pensamos, deveria ser o do desenvolvimiento de uma nova vivencia comunitaria, que resgatasse para a agáo política a dimensáo da ampia participacáo popular?
Fechada esta contextualizagáo histórico-conceitual, podemos retomar, agora melhor amparados, o problema da educagáo pública como fungáo exclusiva do Estado e perguntar: se náo existem já as bases históricas que dariam sentido para um ampio sistema de educagáo pública estatal, o que leva parcelas táo significativamente esclarecidas e engajadas da populagáo a reivindicá-la táo intensamente?
Em meio á multiplicidade de sentidos que permeia toda situagáo concreta, duas circunstancias aparecem como as principáis e determinantes a suscitar tal reivindicagáo. De um lado, é significativo o fato de a sociedade estar imersa na ideología liberal, táo competentemente trabalhada e distribuida pela burguesía nos últimos séculos. Essa ideología liberal está de tal modo entranhada no imaginário social e na consciéncia individual do homem contemporáneo, que mesmo os críticos do liberalismo acabarn por desenvolver, em última análise, um esquema de pensamento que é análogo ao do liberalismo; isto é, náo existe um novo paradigma de pensamento, mas variagóes positivas e negativas de um mesmo paradigma. Sartre argulamente afirmou a mesma coisa em seu Questáo de Método, ao definir o marxismo como a filosofía insuperável de nosso tempo, dizer que enquanto náo forern superadas as condigóes histórico-sociais que deram origem ao marxismo náo surgirá uma nova filosofía, é afirmar que o marxismo, apesar de expor e desmontar a lógica do capital, continua, em última instancia, a desenvolver a mesma lógica.10
A lógica implacável do liberalismo instalou em cada um de nós, como corpo social, a idéia de que o Estado é o pro vedo r da sociedade; sem Ele nada somos, sem Ele, o grande Senhor Civilizador, somos feito bárbaros em luta pelo fogo. Assim, acostumamo-nos á cómoda situagáo de termos um "individuo coletivo", superior a nós mas que, no final das coritas, é constituido por nós mesmos, que amavelmente assume por nós as nossas responsabilidades, como a de educar ás nossas criancas. Náo nos debrugaremos aqui sobre os traeos psicanalíticos do ser humano que o levam a fugir de suas responsabilidades, de resto já bem explorados por investigadores da psique humana como Erich Frómm ou Wilhelm Reich, por exemplo, ou mesmo por filósofos como o próprio Sartre anteriormente citado;11 basta-nos assinalar que, inconscientemente, preferimos deixar por con ta do Estado a tarefa de educar do que tomá-la para nós, com todas as responsabilidades que isso significaria.
De outro lado, a segunda circunstáncia que anunciávamos diz respeito ao fato de o Estado ter tomado gosto pela atividade da educagáo. Sem sombra de dúvida, o "individuo coletivo" que se exprime na abstragáo do Estado tomou consciéncia do poderoso instrumento que táo inocentemente foi colocado em suas máos e, náo maquiavélicamente — o que significaria uma agáo consciente na perspectiva valorativa —, mas como resultado de sua própria lógica interna, de seu modo de ser, arvora-se em Senhor Civilizador, Pedagogo-Mor das Massas Incultas que, sozinhas, estariam destinadas a perecer.
Em outras palavras, experimentamos dois fatos complementares que se reforgam reciprocamente: os individuos fogem á sua responsabilidade deixando a educagáo a cargo do Estado e passando a exigi-la deste; este, por sua vez, toma gosto pela idéia e náo quer mais abandoná-la, fiscalizando mesmo as atividades educacionais que se oolocam fora de seu raio de agáo ou, pelo menos, tentam construir-se á sua sombra.
O fato é que o fenómeno ideológico é muito mais ampio e, portanto, tem uma importancia maior do que aquela que deixa antever certo reducionismo marxista. Para além da falsificagáo do real e da "cámara escura" que inverte a realidade, a ideologia pode e deve ser compreendida, em horizontes menos estreitos, como fenómeno encarnado no cotidiano da existencia concreta. Náo estamos negando a importáncia da Ideología Alema, que é magistral na análise do fato estrilo que ela própria se coloca como objetivo, mas apenas afirmando que outras análises, como as de Max Weber ou as de Wilhelm Reich na Psicología de Massas do Fascismo, por exemplo, podem nos trazer uma visáo muito mais abrangente do fenómeno. Se escaparmos de nossa cegueira habitual, conseguindo ao menos vislumbrar a multiplicidade do real, poderemos entender a importancia que a educagáo assume para o Estado, como os anarquistas, dentro de sua relativa ingenuidade, perceberam e denunciaram já há tanto tempo.
Se tomamos a ideologia como parte do aparelho reprodutor do Estado e da estrutura social que ele gerencia, percebemos que a escola é, ainda hoje, um poderoso vélenlo ideológico ñas máos do Estado, embora esteja cada vez mais perdendo terreno para os meios de comunicagáo de massa.12 Como a educagáo náo acontece apenas no contexto da instituigáo escolar, náo é nenhura absurdo prever que o Estado cada vez mais se utilize da rnídia, náo só como veículo de informagáo ideológica, mas também como veículo de educagáo ideológica, o que já está implícito em alguns projetos de ensino á distáncia desenvolvidos pelo tecnicismo da década de setenta,13 cujo exemplo mais próximo hoje provavelmente esteja representado nos Telecursos e mesmo ñas Telesalas. Deixando de lado os futurismos, hoje a escola ainda é um veículo importante para levar a ampias carnadas da populagáo, em idades em que sáo mais fácilmente influenciáveis, a ideología que o Estado quer ver disseminada entre a populagáo.
Alguém poderia objetar que, no caso brasileiro, o descaso que o Estado vem, há décadas, apresentando com relagáo á educagáo, refutaría essa tese. Entretanto, esse suposto descaso do Estado é também uma agáo política e ideológica muito clara: oferecer uma educagáo de baixa qualidade ou mesmo náo oferecer vagas em quantidade suficiente para atender ás necessidades da populagáo mais carente é deixá-las, cada vez mais, á mercé de um veículo mais dinámico na difusáo ideológica e menos crítico, por ser apenas receptivo que, a cada dia, chega a um maior número de lares, a televisáo. Náo caíamos aquí, porém, no discurso demodé de ver na televisáo a "monstra condenada, a fenestra sinistra",14 pois é obvio também seu conteúdo positivamente educativo, desde que bem utilizado. O fato é que o aparente descaso do Estado com a educagáo públicei pode mascarar um interesse muito grande em dar ao povo uma ilusáo de educagáo; ainda em meados do século passado, Proudhon afirmava que a educagáo das massas náo passava de rudimentos:
"O que querem para o povo náo é a instrugáo; é simplesmente uma primeira iniciagáo aos rudimentos dos conhecimentos humanos, a inteligencia dos signos, uma espéoie de sacramento de batismo intelectual, consistente na comunicagáo da palavra, da escrita, dos números e das figuras, mais algumas fórmulas de religiáo e de moral. O que lhes importa é que, ao veles tes seres que o trabalho e a mediocridade do salário mantém em uma barbárie forgada, desfigurados pela fadiga cotidiana, curvados sobre a térra, as naturezas delicadas que constituem a honra e a gloria da civilízagáo possam constatar, ao menos, nestes trabalhadores condenados ao penar, o reflexo da alma, a dignidade da consciéncia e que, por respeito a eles mesmos, náo precisem envergonhar-se demais pela humanidade." 15
Além do caráter de disseminagáo da ideología, constituindo-se no aparelho de Estado que garante a reprodugáo da produgáo, poderíamos agregar também á importáncia ideológica da escola para o Estado a nogáo weberiana de que a escola náo é um instrumento de dominagáo propriamente dito, mas sim um instrumento de legitimagáo da dominagáo.
Posto que concordemos, pelo menos em parte, com a importáncia ideológica da escola para a manutengáo da inslituigáo política do Estado e do sistema social que ela suscita, seja no aspecto da disseminagáo dos conteúdos e formas ideológicas, seja no aspecto da legitimagáo mesma da dominagáo, consideramos como absolutamente inocuas — para náo taxá-las de absurdas — as discussóes que desenvolvem-se no sentido de exigir socialmente a melhoria da qualidade, a maior democratizagáo do sistema público de ensino e a sua atuagáo para o resgate da cidadania do povo brasileiro. Passaremos a discuti-las, comegando pela última, dado seu caráter mais globalizante.
A questáo da educagáo como promotora da cidadania está, também, intimamente ligada á génese histórica dos sistemas de instrugáo pública. Durante a Revolugáo Francesa, tratava-se de transformar o súdito, que apenas obedecía, em cidadáo, que teria participagáo efetiva nos destinos da nagáo; para nós, após décadas vivendo sob regimes políticos que pouco ou nada respeitavam os direitos individuáis e sociais, trata-se, argumentam seus defensores, de resgatar na populagáo a consciéncia de seus direitos e deveres político-sociais. Mas, como belos discursos podem perfeitamente mascarar práticas sociais inocuas ou até mesmo impossíveis, cabe-nos perguntar: a cidadania, essa "nogáo ligada aos tempos heroicos",16 pode, realmente, ser construida ou mesmo resgatada através da educagáo?
Primeiramente, precisamos colocar com muita clareza o caráter de historicidade do próprio conceito de cidadania; uma coisa era ser cidadáo numa polis grega, outra muito diferente era o ser no calor revolucionário da Franga de fins do século dezoito, assim como outra coisa ainda é ser cidadao na sociedade contemporánea que pretendemos democrática. Procurando na filosofia política contemporánea o sentido da sociedade democrática, Patrice Canivez concluí que ser cidadáo nessa sociedade é ser um "governante em potencial".17
LJma educagáo para a cidadania na sociedade democrática consistiría, pois, em preparar cada individuo para que seja um possível governante dessa sociedade; em outras palavras, formar náo individuos passivos, mas individuos potencialmente ativos, que podem entrar em agáo a qualquer momento, de acordo com os desenvolvimientos políticos da sociedade. Esta nogáo poderia dar sustentagáo para uma certa visáo "militantista", que procura fazer da escola um local de proselitismo político; nada mais errado, na concepgáo de Canivez: a escola é. o espago da cultura, e nela a construgáo da cidadania deve dar-se neste ámbito. Baseada em Eric Weil, mostra que a escola náo é o lugar da política, isto é, urri espago de militáncia, mas é um lugar essencialmente político, pois é nela que se assimila toda a base conceitual necessária para a agáo política eficaz. 13
A educagáo do cidadáo deve, pois, circunscrever-se muito mais ao campo da cultura do que ao da política propriamente dito, o que em nada diminuí o seu caráter essencialmente político. Para a constituigáo de uma sociedade democrática, a educagáo do cidadáo deve privilegiar o aprendizado e o exercicio do diálogo, base da própria democracia.
A relagáo da educagáo com a cidadania só tem sentido, entáo, se tomada num aspecto bastante restrito, delimitado pela historicidade da cidadania que ela vai promover; assim, náo é o mesmo sistema público de ensino idealizado para produzir a transformagáo do súdito em cidadáo durante a Revolugáo Francesa que vai produzir o cidadáo ativo de uma sociedade democrática contemporánea. Dadas as características desse novo cidadáo, seria interesse do Estado financiar um sistema de ensino que o produzisse? Discutiremos essa questáo quando abordarmos o aspecto da de moer at izacáo do ensino público, pois ambas estáo muito intimamente relacionadas.
Passemos á discussáo do primeiro aspecto dos trés que havíamos levantado anteriormente, o que diz respeito á reivindicagáo da melhoria da qualidade do ensino oferecido pelo sistema estatal de educagáo. Já ficou mais do que claro que o Estado percebe a necessidade de oferecer ás massas uma certa educagáo; sem dúvida, náo a escola que queremos, mas a escola que Ele quer, ernbora na maioria das vezes os mecanismos de convencimiento ideológico dos quais falamos funcionen! perfeitamente, e sejam mais do que suficientes para garantir que aquilo que nos queremos — ou pensamos querer — seja exatamente aquilo que Ele quer.
Assim, a escola pública que temos é a escola pública que o Estado nos quer financiar, seja ela legitimadora da dominagáo, seja ela o mecanismo distribuidor de um arremedo de educagáo que mantenha o povo em um estado de semi-ignorancia e apatia político-social, parega isso um descaso do Estado com a educagáo pública ou náo.
A reivindicagáo de uma educagáo pública de qualidade, deste modo, parece encontrar limites muito estreitos; enquanto ela significar o atendimiento de uma necessidade do Estado liberal de prover o sistema de produgáo com profissionais técnicamente melhor preparados, pode até encontrar eco nos administradores da educagáo estatal e ser atendida, virando mesmo ponto de pauta dos discursos oficiáis. Ir muito além disso, porém, parece-nos improvável. Uma educagáo de qualidade, o que significaría proporcionar aos educandos condigóes para que assimilem náo só o conjunto do legado cultural históricamente produzido pela humanidade, mas também condigóes para que se tornern metodológicamente aptos a produzir eles mesmos o saber científico, afasta-se demasiado de uma mera capacitagáo tecnológica para um sistema de produgáo um pouco mais desenvolvido. Ora, náo sejamos ingenuos: uma educagáo deste tipo choca-se frontalmente com os interesses estatais, seja de disseminagáo ideológica, seja de legitimagáo da dominagáo; tal educagáo impossibilitaria o objetivo da dominagáo ideológica e da manutengáo da ordem social e, mais ainda, seria ela própria uma subversáo dessa ordem, pois colocaría em xeque o sistema de exploragáo e distribuigáo desigual da produgáo social. Deste modo, seria paradoxal esperar do Estado uma educagáo pública de qualidade, obviamente tomando por principio que a distribuigáo dessa educagáo fosse justa, alcangando ampias carnadas da sociedade e náo apenas urna elite de privilegiados, preparada para assumir os cargos da tecnocracia.
Alguns eminentes educadores e filósofos brasileiros da educagáo, trabalhando na produgáo de análises e concepgóes dialéticas da educagáo, tém colocado a questáo da qualidade do ensino; um bom exemplo estaría no da Pedagogía Histórico-Crítica19, que defende que a escola pública deve dar instrumentos ás classes desprivilegiadas para que possam enfrentar a burguesía em pé de igualdade no processo da luta de classes. E este instrumental de luta estaría representado justamente no acesso a um ensino de qualidade, como o que vimos discutindo. Como concepgáo pedagógica que se propóe pensar dialeti-camente a educagáo e a agáo transformadora em seu contexto, a Pedagogía Histórico-Crítica é bastante coerente com seus principios; mas tentando enxergar através dos monstruosos e abstratos olhos do "beviatá" — um imenso olho formado por milhóes de olhos, provavelmente diria Hobbes —, teria praticidade tal concepgáo pedagógica?, isto é, permitiría — e ainda mais, financiaría — o Estado tal educagáo?
Náo, náo estamos propondo a volta ás teorías crítico-reprodutivistas da década de setenta, que cairiam no impasse da impossibilidade da agáo educacional transformadora, mesmo porque tais teorías já foram desmanteladas por autores do calibre de Georges Snyders20 e pelo próprio Saviani; entretanto, se aceitamos as concepgóes filosófico-políticas do Estado aqui discutidas e estamos falando da escola essencialmente como unidade de um sistema público-estatal de ensino, náo que a luta de classes seja inexistente ou impossível no espago social da escola, mas existem limites estreitos para a agáo daqueles que procuram fazer da escola sua trincheira de lutas, seja em que aspecto for.
Poder-se-ia objetar que o Estado somos ríos, que ele é nada rnais do que o representante e promotor da rousseauniana "vontade geral" e que cabe ao conjunto da sociedade fazer com que o Estado promova e implemente a educagáo pública que queremos. Retrucaríamos, entáo, com a própria pergunta que intitula este capítulo: seria necessária essa intermediagáo do Estado para a realizagáo de nossos interesses sociais?
Devenios reiterar que náo discordamos do fato de que existem no sistema educacional público-estatal brechas que podemos usar para o desenvolvimento de um processo de auxilio á transformagáo da realidade social —já que a escola sozinha é incapaz de mudar toda uma estrutura social. O Estado, porém, continua o gerenciador da educagáo pública, e absolutamente nada nos garante que, a qualquer momento, ele nao venha a retomar o absoluto controle do processo, destruindo os esforgos coletivos que buscavam uma melhoria no ensino das classes populares, afrontando o próprio poder do Estado. Entretanto, se há o caminho da agáo ñas brechas deixadas pelo Estado, há também uma multiplicidade de caminhos novos a serem criados, á margem da agáo estatal... Mais interessante seria que buscássemos novas formas de fazer social, afrontando diretamente a instituigáo Estado, e náo servindo-nos déla, habitando suas brechas como nossos mílhóes de miseráveis habitam as brechas no concreto dos grandes viadutos de nossas ricas metrópoles.
Deixando um pouco de lado a questáo da qualidade de ensino, á qual voltaremos adiante ao discutir o conjunto dos trés aspectos problemáticos das reivindicagóes progressistas em relagáo ao sistema público ele educagáo, passaremos agora a o aspecto mais diretamente político dos trés, o da democratizagáo do ensino público.
Esse aspecto divide-se em duas questóes principáis: ele um laclo, democratizar o acesso á escola, que significa estendé-la o máximo possível, até abarcar toda a populagáo; de outro lado, democratizar a vivéncia política na escola, que se traduziria no desenvolvimiento ele um processo ele educagáo cívica, de formagáo ele um "cidadáo consciente".
Quanto á primeira cjuestáo, muito pouco resta a ser dito, pois democratizar o acesso á escola pública consiste, do ponto de vista lógico, na própria esséncia do sistema: se é público, deveria ser necessariamente dirigido a todos, a toda a populagáo. Neste aspeto, é bastante questionável chamar ele público um sistema de ensino que náo consiga abarcar, na prática, a totalidade da populagáo em idade escolar, como é o caso do sistema de educagáo brasileiro contemporáneo em c|ue, antes mesmo ele faltar qualidade, falta vaga para atender completamente á demanda.
Já a segunda questáo ligada a este último aspecto é mais profunda e mais complexa, oferecendo uma maior margem para cliscussáo. Devenios, de antemáo, enunciar a tese que será trabalhada, e que pode ser resumida na seguinte fórmula: "a extremizagao da vivencia e da, gestúo democrática na. escola pública leva, necessariamente. ao rompimento desta como Estado, assim como a extremizagüo dagestdo democrática do Estado leva á sua própria destruigao."
A tese acima enunciada está diretamente ligada á questáo da relagáo entre o poder e a democracia, que, tomada em seus principios politicos e levada ás últimas conseqúéncias, significa que a democracia só tem sentido no contexto da existencia do poder que, por sua vez, pressupóe a existencia da dominagáo; se náo há dominio de uns sobre outros, náo há poder e nao é necessária a organizagáo deste poder. Sendo a democracia uma das formas de organizagáo do poder — aquela que, por principio, tenta minimizar o seu exercício, dividindo-o entre o maior número possível de individuos —, se náo há poder, temos a completa autonomía individual e ai já náo há mais lugar para a própria democracia. Em outras palavras, levar a democracia ás últimas conseqúéncias significa a destruigao da própria democracia ou, se preferirem, também pederíamos dizer que a verdadeira democracia seria a extingáo do poder personificado e, assim, só existiría democracia de fato no contexto da absoluta autonomía.
Superando a discussáo conceitual, déla podemos auferir que existe um limite muito definido para o discurso democrático e que se torna ainda mais nítido para a agáo democrática, sendo que este limite é a própria razáo de sua existencia; levada até seus limites, a agáo democrática implica na dissolugáo do poder e na destruigáo da própria democracia, ou na instituigáo da verdadeira democracia, mas ai a agáo que leva até sua instituigáo náo passaiia de uma agáo pró-democrática, ou mesmo pré-democrática...
Sintetizando, a democracia — por mais absurdo e reacionário que possa parecer para a mentalidade liberal que, como afirmamos, encontra-se disseminada ideológicamente entre nós — só tem sentido enquanto expressáo de um sistema de poder, de dominagáo, por mais que represente um abrandamento da própria dominagáo.
Voltando ao contexto da educagáo, os discursos que se arvoram em "progressistas" lutam por uma maior democratizagáo da escola pública. Depois de muita luta política e social, sem dúvida alguma presenciamos uma serie de conquistas que, entretanto, colocam-se dentro de um limite muito específico, limite este que o Estado faz toda a questáo de mascarar. A educagáo pública é democrática, ou pode sé-lo, até onde interessa ao Estado; náo podemos, porém, nos enganar: assim que essa democratizagáo colocar em risco suas instituigoes políticas — se é que ela pode chegar a tanto — ela será imediatamente desviada, abrandada ou mesmo extinta.
Para compreender melhor este tríplice aspecto da educagáo pública — a melhoria da qualidade, a promogáo da cidadania e a democratizagáo — gostaria de buscar 110 folelore infantil e na fábula, esse ¡menso deposilário do imaginário coletivo que tem o poder de, através da simplicidade da palavra, desvendar a alma humana, a metáfora perfeita: passeamos no bosque, enquanto "Seu Lobo" náo vem... Brincamos de democracia na escola — se me permitem brincar com essa coisa táo séria... — enquanto o "Lobo Estado" náo aparece; mas, se tomarmos o "caminho do rio", aquele que os poderes instituidos — os pais — nos alertaram para náo seguir, se afrontarmos o territorio de dominio do "Lobo Estado", claramente demarcado, ai ele aparece, implacável...
No confronto, experimentamos duas situagóes-limite: ou somos devorados pelo "Lobo Estado" ou o matamos. A convivencia só é possível quando habitamos territorios diferentes ("esta cidade é pequeña demais para nós doisl"), náo sendo, portanto, con-vivencia.
O que tentarnos exprimir através desta pequeña brincadeira metafórica é que, na vivencia política no territorio do Estado, as agóes progressistas encontram limites muito próximos. Náo que elas náo sejam pos sí veis, sáo até mesmo louváveis, embora sua efioácia política, se as tomarmos em suas últimas conseqüéncias, seja dubitável.
Já deixamos claro que, do ponto de vista da qualidade, a escola que queremos — talando na perspectiva das carnadas progressistas da sociedade, que buscam a igualdade e a justiga sociais — náo é aquela que o Estado capitalista quer; o assumir do discurso da qualidade de ensino pelas esferas oficiáis significa, no limite máximo, a busca de melhor qualificagáo de trabalhadores, exigida pela complexificagáo tecnológica da indústria, Forgar socialmente o Estado a oferecer a escola que queremos, que seria um instrumento a mais no processo de luta pela transformagáo desta sociedade, seria levar a uma situagáo-limite em que o conflito só poderia ser resolvido através do confronto, estando o Estado numa posigáo tática privilegiada para resolvé-lo a seu favor.
Na perspectiva da promogáo da cidadania e da democratizagáo do ensino que, em última análise podem ser reunidas numa única, dado que a promogáo da cidadania náo se daría jamais através de discurso mas, como vimos anteriormente, através da assimilagáo dos conceitos básicos para a compreensáo da vivencia política, além do aprendizado de uma agao que, se náo é estritamente política no contexto mais geral, o é ao nivel específico da convivencia em uma cornunidade, a própria escola, estando ai de certo modo representada a sua democratizagáo, a questáo náo é menos complexa. Assim como a extremizagáo da gestáo democrática da escola leva ao rompimento com a estrutura de poder sustentada pelo Estado capitalista e, conseqúentemente a um necessário rompimento com esse próprio Estado, a realizagáo de um processo educacional que seja responsável pela formagáo de um cidadáo no real sentido contemporáneo que a palavra alcanga, e de um cidadáo de fato e náo apenas de direito, representa, também, o acirramento de um confronto com o Estado que, enquanto provedor e gerenciador dessa educagáo, náo terici o mínimo interesse em manté-la nessas condigóes.
Ao levantar essas críticas, que buscam o sentido último de uma educagáo pública e de suas necessárias relagóes com o Estado, náo pretendo, de modo algum, defender a impossibilidade de uma agáo político-pedagógica progressista no contexto do sistema público de ensino. Também náo pretendo, como já foi frisado anteriormente, retomar as críticas producidas no contexto das teorías crítico-reprodutivistas, que de resto já foram superadas por teorías mais lúcidas e abrangentes. Meu objetivo foi trazer para a discussáo uma perspectiva que, se náo é nova, estava há muito esquecida, ou feita esquecer pela intensa repressáo social e politica. Os anarquistas procuraram sempre construir alternativas pedagógicas aos sistemas públicos de ensino, como forma de escapar das obvias iimitagóes de urna educagáo comprometida com o Estado, o máximo representante e depositário do poder social.
Náo, a mediagáo do Estado náo é absolutamente necessária; os grupos sociais poderiam perfeitamente organizar e gerir os seus próprios sistemas de ensino, escapando das perniciosas influencias desta instituigáo que, ao fazer-se o Mediador, constitui-se, na verdade, em Interventor, gerenciando a educagáo que ele julga necessária e desejável e náo exatarnente aquela que o grupo social deseja.
Na perspectiva do modelo sócio-político da oposigáo Estado versas sociedade, podemos perceber que, embora aquele deva constituir-se na instancia político-administrativa desta, sua agáo dá-se no sentido de rnanter e perpetuar essa estrutura social; para aqueles que se propóe ás atividades de transformagáo da estrutura social, abrem-se, portanto, duas perspectivas de agáo: trabalhar com as armas políticas do próprio Estado, sustentados por uma concepgáo filosófica que, se afasta-se radicalmente daquela que exprime essa estrutura social, em última instancia nao abandona a lógica que estrutura essa concepcáo; tal parece ser a situagáo dos socialismos marxiano e marxista, que defendem o "assalto ao Estado" como arma para a transformagáo. A outra perspectiva seria buscar a transformagáojá nos próprios meios, assumindo armas de luta que náo sáo as mesmas usadas pela estrutura social vigente; 110 caso específico, negando o próprio Estado de antemáo, e náo apenas após a tomada do poder social, o que, em linhas gerais, caracteriza a situagáo do socialismo libertario, ou anarquismo.
No contexto educacional em geral, e no da educagáo pública também, os conceitos anarquistas representan! um outro paradigma de pensamento, pois afastam-se tanto do liberalismo ou neo-liberalismo quanto das visóes socialistas de inspiragáo marxista. Assumir a perspectiva anarquista náo significa negar a eficiencia de nenhuma das outras, mas sim a tentativa de um caminho diferente que, se traz determinadas inovagóes, náo deixa de apresentar também suas difiouldades, como o assumir abertamente a luta contra o Estado, com toda as conseqüéncias que ela deva trazer.
No paradigma anarquista, a educagáo pública náo é e nem deve ser uma fungáo do Estado, mas sempre uma responsabilidade da comunidade, da sociedade. Assim, cada grupo social deve se auto-organizar para constituir seu sistema de ensino, definindo-lhe os conteúdos, a carga-horária, a metodología, os processos de avaliagáo etc., sempre num regime de autogestáo.
A agáo político-pedagógica norteada por este outro paradigma implica, claro, numa responsabilidade ¡mensamente maior de toda sociedade e em muito mais trabalho por parte de todos, estejam diretamente envolvidos com a escola ou náo. Tal responsabilidade ganha contornos ainda mais abrangentes ao lembrarmos que estamos, todos, acostumados a esperar do Estado paternalista a resolugáo dos nossos problemas. O paradigma anarquista apresenta também os seus problemas, talvez mais complexos até, mas problemas que clevem ser encarados de frente, do mesmo modo que deixar a adolescencia assumindo cada vez mais as responsabilidades pela maturidade da "idade da razáo" tampouco é um processo simples e sem traumas, mas do qual náo podemos jamais fugir...
Notas
1 Este artigo retoma considerares desenvolvidas em minha tese de doutorado Autondade e a Construgao da Liberdade: o paradigma anarquista em educando, apresentada á Faculdade de Educado da Unicamp em 1993, e de textos já publicados em outras revistas.
2 Da Revolugáo Francesa aos comeaos da terceira República in Maurice Debesse, Historia da Educando. Sao Paulo, Nacional, 1977, p. 338.
3 Apud Lorenzo Luzuriaga, Historia da Educafao Pública. Sao Paulo, Nacional, 1959, p. 44.
A situagao ideal, apresentada no texto, tem sido cada ves mais desestruturada no Brasil dos últimos anos; como o Estado tem sido incapaz de oferecer educagao na quanhdade —para nem tocar no aspecto da qualidade —de que a sociedade necessita, abre cada ves mais espago para a iniciativa privada, como forma de reparar essa defasagem. Entretanto, pratica uma fiscalizagao mais intensa sobre as escolas particulares — justificável, em alguns casos — do que sobre as suas próprias, imiscuindo-se inclusive ñas questoes de fixagao das mensalidades e reajustes salarial dos professores, como pudemos acompanhar cotidianamente pela grande imprensa.
5 Seria curioso, nao fosse trágico, percebermos o outro lado do nacionalismo: a xenofobia e o racismo que alimentam as diversas formas de fascismo, agora reeditadas pelos grupellios fascistóides que mfestam as periferias das grandes cidades, tanto na Europa como no Brasil; no fundo, o nacionalismo que alimenta sua covarde violencia nada mais é do que resultado de um processo de criagao de um sentimento abstrato de "nacionalidade", criado e desenvolvido séculos atrás, com o objetivo de unir os povos de determinadas regióes!
6 Podemos lernbrar aqui de uma cangao de Caetano Veloso, gravada em seu disco de 1987, que equaciona muito bem o impasse político brasilerro, dentre outros, em versos como esses: "E quemvai equacionar as pressóes/ do PT e da UDR/ e fazer dessa vergonha uma nagáo?" (ífVamos Comer").
7 Gilberto de Mello BCujawski. A Crise do Sécula XX. Sao Paulo, Ática, 1988, p. 114.
8 Um exemplo desses blocos supranacionais sao os bloc os económicos, como a Comumdade Européia, o Mercosul etc. Por outro lado, náo podemos deisar de asánalar as análises que Toni Negri e Michael Hardt desenvolvem em Imperio (Rio de Janeiro, Record, 2C01).
5 Cf, por exemplo, os ensaios de ¥j>volu(ao Molecular: pulsapkspolíticas do desejo, Sáo Paulo, Brasiliense, 1985, 21 ed. ou os de Micropolíáca. cartografía do desejo, com Suely Robiik, Rio de Janeiro, Vo2es, 1986. Numa palestra na FAU-PUCCAMP nos idos de 1985, Guattari afirmava, entusiasmado, que a criabvidade e inventividade já morta na arquitetüra européia, estava mais que presente ñas favelas brasileiras, onde do quase-nada arrancava-se um teto, uma habitagao...
10 A própria concepgao da tática política de Marx corrobora essa tese: embora considere que sejanecessário destruir o Estado paraconstruir a nova sociedade (comunismo), ele afirma a necessidade de assumir o controle político do Estado para, depois, destiuí-lo. Deste modo, a tática a ser usada contra o capitalismo é a mesma tática dele e a lógica desta tática, quer intitule-se dialética ou formal é, no fundo, a mesma; de certo modo isso ezplicita o receio de assumir a esquizofrenia de uma outra lógica, completamente diferente para a opor á lógica liberal/capitalista. Enesse sentido que Deleuze e Guattari abordam a esquisofrema como essencialmente revolucionaria, por desterritorializar completamente os sentidos do capital, em Capitalisme et Scbi^ophréme.
11 Ver Erich Fromm, 0 Medo a Liberdade, Wilhelm Reich, Psicología de Massas do Fasámo, denfcre outros, e em Sartre, as relagóes entre liberdade, responsabilidade e angustia, em O Ser e o Nada.
12 Na década de trinta, Rjsich. afirmava na Psicología de Massas do Fascismo que a escola tomava cada vea mais da familia e da Igreja a fungao de transmissáo ideológica e formagáo das novas geragoes, fato que consolidou-se ñas últimas décadas, como podemos constatar. Hoje, a mídia eletrónica e a informática tomam cada vez mais o espago da escola, e seu progressivo fortalecimento deve levar Tapidamente a urna nova hegemonía na transmissáo ideológica para as novas geragoes.
15 Ver, por exemplo, Laymert García dos Santos Desreguiagens: educando, planejarmnto e tecnología como ferramenta social, onde é analisado o Projeto SACI/ EXERN.
" Caetano Veloso num verso de "Santa Clara, padroeira da televisáo" (1992).
1S Apud Maurice Dommanget, Las Grandes Soáalistasy la Educación, de Platón a Unin. Madrid, Fragua, 1972, p. 268.
10 Espressáo utilizada por Patnce Canivez em Educar o Cidadao?. Campiñas, Papirus, 1991.
" Patiice Canivez, op. cit., p. 31. 18 Ver Canivez, op. cit., p. 159.
15 Ver Dermeval Saviani, Pedagogía Histérico-Critica: primeiras aproximares. Sao Paulo, Cortez/Autores Associados, 1991, pp. 70 e seguintes.
20 Ver Escola, Classe e bula de Classes, de Snyders e Escola e Democracia, de Saviani.
resumo
A escola pública é comumente vista como uma escola estatal. Mas será necessariamerbe assim? Essa media gao do Estado entre a sociedade e a educa cao será, de fato, necessária? Este artigo pretende mostrar gue náo, explorando as proposlas anarquistas de educagáo para mostrara vlabilldadede uma escola pública nao estatal. Para isso, busca as origens históricas da educagao pública,desvelando seus elos coma constttiiigaodos Estados nagoes europeus, e em seguida analisa as peculiaridades das relagóes entre Estado e educagao no Brasil. Finalizando, problemati7a a questáo da democratizará o da escola pública no Brasil desde a década de oitenta, fazendo a crítica das chamadas concepgóes progressitas e defendendo a possibilidade um a¡>0:0í¡úi anarquista da questáo.
abstract
The publlc school Is commonly seen as a 'state'school. Should itbe necessarily like that? V/oukl this mediation of the state between society and education be really necessary? ThlsarHcle intends to prove the contrary, exploring the anarchist proposals lor education to show the viability ota publitschool apart from the state. Tn thls attempt, It searches the historical origins of public education, revealing its ties witli the consütution ol European nation-states, and then analyzes the particularices of the relation between state and education in Brazil. Fínally, itquestions the Issue of democratizaron of public schools in Brazil since the t980s, criticizing the so-called progressive conceplions and aftirming Uie possibility of an anarchist approach to the subject.
guilherme correa 3
O Estado nao é nada mais que o efeito móuel de um regime de governamentalidade múltipla.
Michel Foucault
Imagine-se com dez anos de idade e aluno em uma sala de aula de quarta série do ensino fundamental; náo se veja no passado, quando cursou a quarta série, mas como uma crianga hoje, num universo onde contam 'video games', computadores, tenis da moda, as infindáveis sessóes de marquetagem destinadas ás criangas em que se transformaran! os programas infantis natelevisáo, 'pokemons', o medo de seques tros, etc1. Entáo, em sua sala de aula —que náo mudou muito em relagáo áquela em que vocé estudou, a náo ser tal vez os materiais e o desenlio da mobília —a professora, ou professor, como queira, distribuí uma folha de papel na qual voces devern fazer uma red a cao com um tema que diz respeito á aula sobre drogas ministrada anteriormente. Assim, acima das linhas em branco da folha, diante de voce está o título: 'Eu conhego um viciado'.
Antes de 'sair' de sua sala de aula, elabore rápidamente as linhas gerais da sua composicáo lembre-se que tem dez anos: conhece alguém viciado em drogas? é algum párente, amigo, conhecido? como sabe que é viciado? viciado em qué? Este exercicio que Ihe propus eu mesmo o fiz quando chegou ás minhas máos urnas folhas fotocopiadas do que, a primeira vista, parecía ser um livro didático para enancas, devido ao grande número de ilustragóes. As cinqúenta páginas náo numeradas e sem referencia bibliográfica, tratavam de um projeto chamado 'Drogas? Tó foral' com o planejamento de cinco aulas de 'Língua Portuguesa/ Educagáo para Saúde'. A redagáo referida acima é o exercicio final sugerido como avaliagáo da primeira dessas aulas. A publicagáo na qual este material esta va inserido2 foi encontrada numa escola de uma pequeña ciclade do interior de Santa Catarina. É um material bastante curioso e merecería um artigo inteiro apresentando náo so sua nogáo de drogas, mas também as estratégias de saúde a serení desenvolvidas junto a criangas das quatro primeiras series do ensino fundamental3. Destinado a professores do ensino fundamental tem por objetivo desenvolver o tema transversal4 "Saúde".
Reeorrendo sempre a ilustragóes árvores, sois brilhantes e muitas carinhas infantis ñas mais diversas situagóes —, encaixadas no cliché do mundo infantil feliz, o material vai apresentando sua versáo pedagógica da abordagem do uso de drogas. Assim, ao sugerir ao professor que faga alguns adesivos para serení distribuidos pela escola, um deles tem a frase: "Ao ir ao hospital, visite a enfermaría de pneumologia, náo para ver como os enfimatosos [sic] vivem, mas sim, para ver como é que eles estáo morrendo". Ilustrando esta frase há um leito de hospital, com um crucifixo sobre a cabeceira, e deitado sob as cobertas um menino exibe seu rosto tranquilo. Noutra sugestáo de adesivos, em que o livro comenta "overdose de tranquilizantes", aparece o desenho de um menino com as pernas e o olhar desencontrados, como que embriagado. Ao sugerir ao professor que crie cartazes a serem reproduzidos, logo em seguida recomenda as frases ou cartazes que deve criar: "Evite a tentagáo da primeira dose", "Droga é uma droga", "Eu náo entro nessa fria!". Do mesmo modo, abaixo da sentenca: "Crie um cartaz alertando sobre o perigo do consumo de cigarros", aparece já pronto o desenho de um cartaz, no qual se vé um menino de óculos escuros com trés cigarros acesos ao mesmo tempo, tossindo muito, e a frase "Vocé está bem... perto da Morte."
Assim, entre as várias imagens de criangas ou adultos infantilizados? —fumando, bebendo álcool, chá de cogumelo, cheirando langa-perfumes, imagens de seringas, caveiras, sepulturas com uma carinha sorridente na lápide, e muitas carinhas sorridentes, este livro da série "Alfabetizagáo sem segredos" vai construindo uma nogáo de drogas, bascada no conceito de que "droga é toda substancia que, introduzida no organismo, altera suas fungóes". A droga aparee estreitamente ligada á degradagáo da vida e á morte, ao mesmo tempo em que promove uma espécie de sondagem da índole do aluno: "Vocé aceitaría experimentar algurn tipo de droga para náo ser criticado pelos colegas? Por qué?"; "Qual seria sua reagáo se alguém lhe oferecesse drogas?"; "Caso algum colega estivesse usando drogas, vocé falaria com a familia dele? Por que?"; "O que vocé costuina fazer quando se sente aflito ou inquieto?"
Imaginar os possíveis efeitos do desenvolvimiento do trabalho escolar com o título "Eu conhego um viciado", deixou-me curioso a respeito do modo como o tema das drogas vem sendo tratado ñas escolas.
Uma vez que todas as escolas espalhadas pelo territorio nacional - sejam elas financiadas pelo Estado ou privadas — sao orientadas pela LDB, cabe, antes de saber como essas escolas desenvolvem um tema como o das drogas, perguntar o que o Estado diz sobre as drogas. Uma tarde na biblioteca da Secretaria de Educagáo do Estado de Santa Catarina rendeu quase oito quilos de fotocopias. Deste material tomei cartilhas, relatónos e pesquisas feitos por órgáos oficiáis do Estado, mais especificamente pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria Nacional Antidrogas (SEÑAD), Casa Militar, Centro Brasileiro de Informagóes sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e pela Universidade de Brasilia. Com este material tentei apreender a nogáo de 'drogas' que orienta as agóes do Estado brasileiro. Com a outra parte, composta por cartilhas, programas de prevengáo e folhetos elaborados por especialistas da área de educagáo, tentó mostrar a correspondencia do debate e das estratégias de abordagem da problemática deis drogas ñas instituigoes de ensino responsáveis pelo ensino fundamental. A organizagáo do material em ordem cronológica — a partir, principalmente, da última inetade da década de noventa mostrou-se bastante esclarecedora do movimento pelo qual passa a nogáo de droga neste curto período.
Em meados dos anos noventa a sociedade brasil eirá mobilizou-se a partir da prornogáo pelo Estado para diversos encontros, seminários e fóruns, a propósito da questáo das drogas. Ao dar mostras claras de que náo era uma doenga circunscrita aos grupos de homos-sexuais e de usuários de drogas injetáveis — derru-bando a nogáo moral e administrativamente confortável de grupo de risco a AIDS mostrou uma possibilidade concreta de larga contaminagáo de individuos pertencentes aos mais variados estratos sociais. Isso fez com que o Estado, cuidadoso em melhorar a sorte da populagáo, elaborasse uma serie de campanhas com a finalidade de conter o avango da doenga sobre os cidadáos. Os números referentes aos infectados chamavam especial a ten cao para o grupo dos usuários de drogas injetáveis. É dessa constatagáo que acontece a passagem da utilizagáo de estrategias de controle da AIDS para o emprego de estrategias de prevengáo integral tendo como coluna mestra a prevengáo ao uso indevido de drogas. Para enfrentar a ameaga representada por uma possível explosáo do contágio de AIDS por meio dos usuários de drogas injetáveis, e lidar diretamente junto á populagáo, foram publicadas cartilhas, fitas de vídeo, e promovidos cursos para multiplicadores5.
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Estas estrategias, entáo, empregadas pelo Ministerio da Saúde enfatizavam a política da redugáo de danos e dirigiam-se específicamente ás populagóes em situagáo de risco, a saber: "profissionais do sexo, jovens socialmente marginalizados, presidiários, populagóes de rúa, e usuários de drogas"6. O trabalho preventivo e educativo com essas populagóes náo ficava como responsabilidade dos servigos formáis de saúde, educagáo e servigo social, mas das emergentes organizagóes náo governamentais7. Neste contexto, a droga é tratada corno fenómeno histórico, reconhecendo que "o ser humano sempre conviven com drogas, e délas fez diferentes usos, ao longo da historia."8 E é interessante ver referencias a grandes nomes da literatura mundial e ao uso que fizeram de drogas 'perturbadoras': Fernando Pessoa — "há doengas piores que as doengas..." , Baudelaire e oópioe Aldous Huxley e suas experiencias com a mescalina; a droga como substáncia que "transportava o espirito para outros territorios, para outras sabedorias"9.
O problema do abuso de drogas, ainda uestes materiais do Ministerio da Saúde, é situado dentro do espectro das drogas legáis: "o panorama epidemiológico do Brasil (...) mostra a prevaléncia das drogas legáis: elas representam mais de 90% dos abusos ou usos freqúentes praticados pela populagáo. Seu custo social é altíssimo, ultrapassando de longe aquele das drogas fora da lei. Em termos de mortalidade, o abuso de álcool e fumo é responsável por cerca de 95% dos casos de óbito devidos a drogas, sendo que somente 5% sao imputados as 'outras drogas', no seu conjunto"10.
É clara a oposigáo as posturas radicais defendidas pelos setores da organizagáo estatal responsáveis pela repressáo ao uso de drogas ilegais: "os expoentes da postura antidroga, (...) náo enxergam o obvio: que a 'guerra contra as drogas' é inoperante, e que nunca haverá 'vitória final', já que as drogas fazem parte, desde sempre da vida humana. Mas há ainda mais: todas aquelas intervengóes que se pautam na abordagem exclusiva do 'dizer náo', sáo contraproducentes e surtem efeitos contrarios"11.
A preocupacáo aqui náo é criminalizar o uso de drogas, mas recuperar o dependente, que deve ser considerado como um doente12, dentro do ideal da reinsergáo social, pela via da reconstituigáo familiar13. É neste ponto "ideal" que ocorre a re integra cao dos que se encontram em situagáo de risco. Ponto no qual esses sujeitos passam a estabelecer lagos familiares, mesmo que ténues, no qual, automáticamente, as instituigoes formáis passam a atuar. Reinseridos, reajustados, eles restabelecem contato com a rede formal de assisténcia á saúde, educagáo e servigo social. Ou seja, o isoia-mento, que é a condigáo que caracteriza as populagóes de risco, impede qualquer intervengáo preventiva; portante, qualquer agáo neste sentido deve promover o restabelecimento dos vínculos sociais, num crescendo que vai da familia á escola, aos grupos de auto-ajuda e á rede formal de assisténcia. Dentro deste conjunto de acóes de ajustamento e de reinsergáo, a escola assume um papel de grande importáncia.
Desta maneira, "freqüentar uma escola representa um referencial de cidadania e fortalece a identidade pessoal, tantas vezes abalada sob o impacto das adversidades sofridas. Devidamente instrumentalizada e com habilidade para segurar e direcionar o aluno, a escola é capaz de manter os jovens afastados da margina lizagáo, mesmo com suas estruturas familiares precarias ou quase inexistentes"14.
Em novembro de 1998, acontece o "I Fórum Nacional Antidrogas", evento que inaugura um importante passo para a compreensáo de uma nogáo de "drogas" utilizada pelo Estado brasileiro. Com o objetivo de abrir um diálogo entre a sociedade e o Governo Federal, e de ouvir as sugestóes da sociedade, o Fórum, destinado exclusivamente ás organizagóes náo-governamentais15, reuniu representantes dos mais diversos setores. Ao todo foram 30 subgrupos separados em quatro grupos de trabalho: grupo de prevengáo, de tratamento, de repressáo e um último grupo chamado global. Entre todos estes subgrupos havia, por exemplo, um subgrupo para o pessoal da redugáo de danos, outro chamado Populagóes Excluidas, e ainda Criagáo de Empregos, Internagáo, Reinsergáo Social, Mútua-ajuda, Comunidades Terapéuticas, Modificagóes legislativas, Comunicagáo e Marketing, etc. Havia também o subgrupo Escola, um dos treze subgrupos do Grupo Global, juntamente com outros como Familia, Local de Trabalho, Mulheres, Criangas e Adolescentes, Instituigóes Religiosas e outros. No discurso que profere na abertura do encontro, o Presidente da República refere-se á escola da seguinte maneira: "Precisamos, no Brasil, ampliar a consciéncia do professorado, da gestáo das escolas, mas, sobretudo, das familias, com relagáo á questáo das drogas"16.
E segue apresentando um outro lado da questáo: "mas, há o outro lado, digamos, propriarnente repressivo, da questáo das drogas. (...) Isso requer um trabalho de inteligencia e de informagáo. Náo é apenas um trabalho de repressáo, mas é de conhecimento das tramas que estáo por trás daquilo que aparece á primeira vista e que é, normalmente, o objeto da repressáo. O objeto da repressáo, raramente, está diretamente vinculado á trama de sustentagáo do tráfico de drogas (...) É ilusáo pensar que as informagoes, hqje, sáo monopolio do Estado. Pelo contrário. Hoje, também a sociedade dispoe das informagoes. E, muitas vezes, até mais depressa e mais abundante do que o próprio aparelho de Estado"17,
Consultando cuidadosamente o relatório, ficam mais claras frases tais como 'Isso requer um trabalho de inteligencia e de informagáo' ou 'É ilusáo pensar que as informagoes, hoje, sáo monopolio do Estado.', ou ainda 'Hoje, também a sociedade dispoe das informagoes'. O "subgrupo R2" — um dos trés subgrupos do "grupo de repressáo" —, responsável pelo tema "Participagáo da Sociedade na repressáo ao Tráfico - Protegáo á Testemunha e Definigáo do Campo de Atuagáo das ONGs", em seu relatório "deu destaque á necessidade de estimular-se a denuncia; incentivar-se a delagáo premiada e de editar-se lei estabelecendo regras de protegáo ás testemunhas, conceden do-se ás ONGs as missóes de dar apoio psicossocial aos familiares de testemunhas protegideis e fornecer moradias provisorias"1®.
Chamo atengáo para a proximidade, a sinonimia mesmo, entre as palavras denuncia e delagáo. Nesse contexto de "participagáo da sociedade na repressáo ao tráfico" a diferenga possível é que a delagáo pode mobilizar uma rede de protegáo á testemunha, todavía, perde sua diferenga qualitativa ao produzir o mesmo efeito: ao chegar aos órgáos oficiáis competentes, "por correio, telefone ou outros meios"19, transformara-se em informagáo, em trabalho de inteligencia.
As situagóes apresentadas até agora, enfatizando os discursos produzidos por órgáos e pessoas representantes do Estado, compóem uma galería que tenta, mesmo que apressadamente, mostrar o largo espectro do que se diz, oficialmente, em relagáo ás drogas. Desta variada flora discursiva, muitos espécimes sáo aproveitados para decoragáo, enquanto outros sáo produzidos e distribuidos gratuitamente á populagáo e devorados vorazmente. O efeito ornamental de alguns discursos náo deve, todavía, ser subestimado pois sáo estes que dáo corpo a uma imagem de Estado acolhedor, no qual o cidadáo tem ampia liberdade de expressáo.
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Um episodio ocorrido no Fórum permite comegar a delinear o discurso sobre drogas que o Estado brasileiro efetivamente faz funcionar, que tem forga e volume para preencher os largos canais das políticas destinadas aos grandes contingentes populacionais e, ao mesmo tempo, fluidez e simplicidade suficientes para percorrer os complicados e finíssimos canais que penetram ñas comunidades, ñas familias e, até o mais íntimo da vida de cada um, ali onde percebe-se a si mesmo como cidadáo, com direitos deveres e sujeito ao assédio do Estado em vista do cumprimento das leis.
O subgrupo chamado Redugáo de danos e portadores de IIIV, teve uma participagáo inesperada de pessoas ligadas a grupos religiosos Federagáo Brasileira de Comunidades Terapéuticas, Amor Exigente, Pastoral de Dependencia Química/CNBB — e ao aparato policial, que corresponden a 68% dos integrantes; eram contrários á troca de seringas e propunham a abstinencia como única forma de tratar a questáo das drogas. Os outros 32% eram pessoas envolvidas erri atividades de redugáo de danos em instituigóes governamentais e náo-governamentais. Foram producidos, assim, dois relatónos, um incluindo troca de seringas e outro excluindo troca de seringas20, Esta reuniáo insólita de miembros de ONGs, professores universitários, religiosos e policiais, póe em cena os principáis atores do teatro da prevengáo ao uso de drogas e expóe o argumento da pantomima: grupos com interesses realmente opostos — confrontando ciencia e dogma religioso, estratégias libertadoras e medidas repressoras unidos na promogáo da impossibilidade de pensar a vida sem governo.
Os diversos grupos ali presentes legitimam e conferem, pela sua diversidade e proveniencias — militares, policiais, religiosos, advogados, agentes comunitários, assistentes sociais, professores, pesqui-sadores... uma voz á sociedade. Seus relatónos pedindo verbas; aperfeigoamento de leis e regulagóes; integragáo entre agencias federáis, estaduais e municipais; aumento de pessoal qualificado, cursos de aperfeigoamento; campanhas de prevengáo; repressáo policial; criminalizagáo, descriminalizagáo, reformu-lagáo de práticas pedagógicas; reinsergáo social, etc. dirigem-se ao Estado e reforgam seu qualificativo de democrático.
A partir das recomendagóes do I Fórum Nacional Antidrogas, foi organizado, pela Secretaria Nacional Antidrogas e pela Universidade de Brasilia, o curso "Prevengáo ao Uso Indevido de Drogas: diga sim á vida". Este curso visava "contribuir para a formagáo de profissionais ou de membros da comunidade em geral devidamente qualificados para atuar na prevengáo ao uso de drogas"21. Os conteúdos elaborados por especialistas tinham por objetivo "oferecer informagoes consistentes (...) de maneira clara e fundamentada em literatura atualizada"22. As estrategias de ensino empregadas neste curso oferecido gratuitamente a trinta mil futuros trabalhadores da missáo de prevenir contra o uso indevido de drogas surpreendem ao ressuscitar a instrugáo programada23. Enquanto os conteúdos eleitos para o programa seguem a já consolidada liturgia dos cursos de prevengáo ás drogas — definigáo de droga, classificagóes das mesmas (naturais, sintéticas, psicotrópicas, lícitas e ilícitas —, classificagáo dos usuários (experimentador, recreativo, funcional e dependente), uma listagem das drogas e seus efeitos e estrategias de prevengáo — a instrugáo programada, rediviva, causa a impressáo de que o que importa aprender sáo os conteúdos expressos no programa, quando o que está se processando, é um amor-tecimento da capacidade de pensar e de querer, do exercício da vontade. A descrigáo de um desses exercícios presente na apostila do curso nao vai deixar dúvidas sobre o que estou dizendo: sob o título "auto-avaliagáo" está a sentenga "Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada:", segue entáo um conjunto de doze palavras que devem ser colocadas ñas lacunas existentes ñas frases de 'a' a 'f', imediatamente após as frases aparece o mesmo conjunto de palavras só que desta vez colocadas na ordem em que devem aparecer ñas lacunas das frases acima.
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"AUTO-AVALIACAO
Complete as lacunas utilizando a palavra-chave adequada: Palavras-Chave
experimentador
habitual
abusivo
comportamento controlada consciéncia tranquilizantes dependencia motivagáo ocasional pessoa droga
a) As drogas psicotrópicas sáo substancias capazes de alterar o das pessoas.
b) Mesmo certas drogas chamadas lícitas podem ter sua comercializagáo_por leis. É o caso dos
c) O uso indevido de certas drogas lícitas é uma questáo importante em relagáo á saúde da populagáo porque pode causar_ .
d) Existem tipos diferentes de usuários de drogas. O
usuário _é aquele que experimenta um ou
mais tipos de drogas sem dar continuidade ao uso, enquanto o usuario faz uso freqüente,
podendo ocorrer prejuízos á vida profissional ou familiar. Há também o chamado usuário que se
utiliza da droga esporádicamente, numa situagáo especial, como no caso dos bebedores sociais e o usuário
_cujo consumo adquire papel de destaque
na sua vida, acarretando serios prejuízos profissionais, sociais e familiares.
e) O triángulo básico do consumo de drogas é
representado pela____pela_____e
pelo contexto sócio-cultural.
f) Existem diferentes_____ para o consumo de
drogas como a obtencáo do prazer ou a modifica gao deliberada do estado de
Gabarito:
a) comportamento
b) controlada; tranquilizantes
c) dependencia
d) experimentador; habitual; ocasional; abusivo
e) pessoa; droga
f) motivagóes; consciéncia"24.
Os materiais didáticos utilizados ñas escolas seguem a liturgia, acima referida, dos cursos de prevengáo ás drogas. E este é um dos ños discursivos com que a escola tece a teia da prevengáo, uma teia que arrasta consigo tocia sorte de sangáo moralizadora: Todo uso ele drogas é arriscado!"25; "(...) Náo significa eximir o consumidor ocasional (mesmo crianga ou adolescente) cía aplicagáo da pena da leí,..."26; "Solté todas as suas angustias para aquele que patrocinou sua vida, que ELE o ajudará a levar avante seus projetos. Assuma seu papel de cidadáo e mude sua vida como vocé gostaria..."-''', "O consumo ele drogas deve ser considerado como um sinal de destruigáo da vida em termos ele saúde e ele valores..."28 .
Uma boa vi sáo da rede teoida pela prevengáo no ensino escolar é dada pelo surnário com "subsidios de prevengáo integral para o educador", constante do "Programa de Prevengáo Educagáo e Vida" realizado pela Secretaria de Educagáo do Estado de Santa Catarina. A partir da identificagáo da gravidade do problema das drogas, este programa compóe uma grande e complexa seqüéncia de vinte cinco temas29 organizados em planos de aula com os ítens: objetivos, desenvolvimiento do tema, atividades da clientela (alunos).
Entre todas essas opgoes a disposigáo de professores e alunos, a escola instituí um tipo de liberdade ao qual seremos, se já náo estamos, acostumados: a liberdade de escolher entre um conjunto restrito e estabelecido previamente de ítens postos á disposigáo, que desemboeam sempre na normalizagáo e no ajustamiento dos sujeitos ele modo a caberem confortavelmente na figura do cidadáo livre dentro do horizonte delimitado pelas leis e pela moral.
Agora sim, sinto-me talando ele drogas. Refiro-me ao efeito narcotizante dessas intervengoes, dessas aplicagoes diárias, pacientes, constantes, desde a mais teni a idade, de drogas que abalam a vida ao produzi-la morna, prevenida, segura e que tém como principio ativo o "saber sem vontade"30,
Arremato o vislumbre, que espero que este texto tenha proporcionado, da pedagogía que interessa ao Estado brasileiro na atualidade, com a seguinte declaragáo do Ministro da Educagáo, ao comentar os desvios de verbas do Programa Federal Bolsa-Escola e a importancia da "participagáo social ñas deliberagoes públicas": "é importante c|ue tenhamos pessoas como o vereador Otto Barroso, responsável pela denuncia de fraude no municipio de Jutuabá (MG). O aumento da participagáo social ñas deliberagoes públicas significa a radicalizagáo da democracia. Certamente surgiráo pessoas, atentas como ele, capazes de identificar problemas e denunciá-los. Desde julho o Ministério da Educagáo vem investigando denuncias de irregularidades na destinagáo de recursos. Trezentas denuncias chegaram por meio do telefone 0800-616161, e estáo sendo apuradas"31.
A denuncia como forma de participagáo social e exemplo de radicalizagáo da democracia, sublinhada pelo Ministro, dá idéia da eficiencia de uma espécie de pedagogía da delagáo com programas, conteúdos e técnicas didáticas — que vem sendo largamente implantada no país. Basta atentar para os programas vespertinos de televisáo nos quais o principal argumento sáo as denuncias da populagáo feitas por meio de telefones gratuitos. Os meios de comunicagáo de massa mais importantes — televisáo, rádio, imprensa, internet e escola —, e também o Governo Federal, tém dado mostras de seu empenho em educar o povo dentro dessa perspectiva, por assim dizer, democrática. Inventa-se no Brasil um povo que sente que decide, quando delata.
Olhando os créditos das publicagóes oficiáis que utilizei neste ensaio, encontrei vários nomes ñas comissóes de consultoria, equipes de elaboragáo, colaboradores, especialistas... Adriano, Nelita, Sueli, Gilson, Maria, Almeli, Lidia, Saulo, Fernando, lone, Marisa, Flávia, Carlos, Eliseu, José, Izilda, Clarinha, Ruy, Rosane, Shirley, Jugara, Araí, Mileide, Gey, Ana, Dóris, Liana, Márcia, Thérése, Aluísio, Waleska, Alício, Aracy... sáo alguns nomes de pessoas que, como qualquer um de nós, freqüentaram escolas, estudaram segundo as determinagóes da LDB, tornaram-se profissionais e agora fazem aparecer a expressáo do Estado em palavras. Assim, Como sabemos muito bem,
"o Estado náo tem entranhas, e náo simplesmente no sentido de que náo tenha sentimentos, nem bons nem maus, mas que náo tem entranhas no sentido de que náo tem interior. O Estado náo é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidade múltipla."32
Notas
1 Esta listade situagóes que cercam um estudante brasileiro de dez anos embora parega 'típica' é bastante limitada, pode-se ter uma nogáo disto lembrando que,em 1990, 60% das unidades escolares do Brasil eram escolas multisseriadas, ou seja escolas que reúnem, simultáneamente, em uma mesma sala de aula e sob a responsabilidade de um mesmo professor as ptimeir as quatro series do ensino fundamental, cf. Cássia Fem. Classes multisseriadas. que espado escolar é esse? Florianópolis, 1994, p. 152. Dissertagáo de Mestrado emEducagao Centro de Educagao, Universidade Federal de Santa Catarina. Com isto quero lembrar a grande parcela dos alunos brasileiros nesta faixa etária que nao tem acesso a computadores, nao conhece Vídeo games', nao tem ténis da moda e sequer energía elétrica em suas casas, ou seja, a realidade dos estudantes do país é muito variada e desigual nao podendo ser tomada como padrao a classe media dos centros urbanos, até porque classe média no Brasil, com casa, carro e computador, é muito pouca gente.
2 ManaRadespiel. Aljabeúi^apo semsegredos: temastransversais. Contagem, Editora IEMAR, 1998.
''Ensino fundamental é a denominagáo que substituí, na novaLei de Diretrizes e Bases da Educagao Nacional (LDB), Lei Federal n.9.394 de 20/12/1996, a antiga denominagáo de primeiro grau da LDB anterior, Leí Federal n. 5692 de 11/08/1971. O ensino fundamental refere-se ás oito primeiras séries (mais rigorosamente aos quatro primeiro ciclos, correspondendo cada ciclo a duas séries) da educagao escolar e corresponde ao ensino obrigatório exigido pelo Estado, cf. Brasil. Secretaria de Educafdo Fundamental Parámetros curritulares nacionais: introdujo aos parámetros curriculum; nacionats. Brasilia, MEC/SEF, 1997.
4 Temas transversais, sao uma serie de cinco temas (ética, saúde, meio ambiente, orientagáo sexual e pluralidade cultural), instituidos pela nova LDB para o ensino escolar. Nao constituem disciplinas e podem ser desenvolvidos dentro de qualquer disciplina, com maior ou menor grau de apto fundamento, segundo necessidades que podem variar quanto a faixa etária dos alunos, especificidades regionais ou demandas de cada grupo. Brasil. Secretaria de Educado Fundamental Parámetros curriculares nacionais: Apresentafao dos temas transversais e ética. Brasilia, MEC/SEF, 1997.
5 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assisténcia á Saúde. Coordenagao-Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AÍDSe Sociedade. Brasilia, Coordenagáo Geral de Doengas Sesualmente transmissíveis/AIDS, 1995, p. 3.
ú Richard Bucher. Prmmndo cont>-a as drogas e DST/AIDS: populafoes em sttuafao de risco. Ministério de Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasilia, out. 1995, p. 22.
' Idem, p. 22
8 Neri Filho. " Preconceitos e conceitos sobre drogas in: Drogas, AIDS e Sociedade. Brasilia: Coordenagáo Geral de Doengas Sexualmente Transmissíveis/AIDS.
1995, p. 28.
9 Idem, p. 29.
10 Richard Bucher. "Drogas na sociedade" im Ministerio da Saúde. Secretaria de Assisténcia á saúde. Coordenagao-Geral do PNDST/AIDS. Drogas, AIDS e Sociedade, Brasilia: Coordenagáo Geral de Doengas Sexualmente Transmissíveis/ AIDS, 1995, p. 35.
"Idem, p. 48.
12 Richard Bucher. Prevenindo contra as drogas e DST/AIDS: populares em situafao de ruco. Ministerio da Saúde. Programa Nacional DST/AIDS. Brasilia, out. 1995, p. 08.
15 Idem, p. 27.
14 Ibidem, p. 28.
151 Fórum Nacional Antidrogas (Brasilia: 1998). Relatório do I Fórum Naáonal Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasilia, SEÑAD, 1999, p. 05.
15 Discurso do presidente Fernando Hennque, na abertura do I Fórum Nacional Anbdrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Axtidrogas, 27 a 29 de novembro de
1998. Brasilia, SEÑAD, 1999, p. 08. 17 Idem
"Relatório do Grupo de Repressáo in: I Fórum Nacional Antidrogas in: Rdatório do I Fórum Naáonal Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasilia, SEÑAD,
1999, p. 40. " Idem, p.42.
201 Fórum Nacional Antidrogas in: Relatório do I Fórum Nacional Antidrogas, 27 a 29 de novembro de 1998. Brasilia, SEÑAD, 1999, pp. 17-24.
21 Eliane Maria Fleury Seidi (org). Prevenido ao uso indmdo de drogas: diga SUvl a vida Brasilia, CEAD/UNB, SENAD/SGI/PR, 1999, vol. 01, p. 04."
22 Idem
25 Instrugáo programada é um conjunto de técnicas de ensino baseadas ñas teorias da comunicagao em que o aluno é encarado como um dispositivo receptor de informagoes mput que processando-as pode devolvl-las ao meio, output; a análise da qualidade da informagáo processada permite avaliar a aprendisagem. Uma das novidad.es disso tudo sáo os materiais auto instruaonais, elaborados por programadores especializados, que segundo a lenda permitem ao aluno aprender conteúdos escolares sozinho, sem a ínter vengao do professor. Posta em marcha nos anos setenta, a instrugáo programada foi a panacéia pedagógica da Ditadura Militar, adquirida por pregos altos com a celebragao do acordo MEC/USAID, quando a educagao pública passou a ser estrategia de seguranga nacional
24 C£ Elaine Maria Fleury Seidl (org.). Prevengo ao uso mdevido de drogas: diga sitn a vida. Brasilia, CEAD/UnB; SENAD/SGI/PR, 1999. Vol. 1, pp. 20-21.
25 Callos dos Santos Silva. Drogas! Se eu quiserparar vocé me ajuda? Rio deJaneiro, Autores e Agentes Associados, 1977. S^ed., p. 17.
26 Idem, p. 8.
21 Secretaria Municipal de Educagáo de Criciúma. Crkiúma cuidando Aa sua saúde: diga ndao as drogas, Curitiba, Base Editora, p. 13.
28 Governo do Estado de Santa Catarina. Prei/ida, programa prevenido educando e vida: subsidios de prevenpao integral para o educador. Florianópolis, Secretaria de Estado da Educagáo, Cultura e E'esporto, p. 11.
25 Familia; Adolescencia; Sexualidade; DST; AIDS; Relacionamento; Amizade; Religiosidade; Valores; Meios de Comunicagáo; Poder de Decisao; Projeto de Vida; Participagáo do Jovem na Construgáo da Historia; Educagao Ambiental; E ducagao para o Tránsito; Trabalho e Lazer, Recomendagoes Gerais; Ab ordagens de Prevengáo; DrogasPsicotrópicas; Automedicgao; Álcool; Tabagismo; Drogas Voláteis; Maconha e,finalmente, Cocaína.
30 Mas Stirner. 0 Falso Principio de Nossa Educaba Sáo Paulo, Imaginario, 2001.
31 Folha de Sao Paulo, 01/01/2001
32 Mchel Foucault. "Fobia al Estado" in Ea Vida de los Hombre Infames — ensayo sobre desviación j dominación. Madrid, La Piqueta, 1990, p. 308.
resumo
Unía problematlzacao do apelo, cada vez mais efetivo e insistente, para que a sociedade participe das decisóes governamentals poi meio de denuncias é o ponto de chegada deste trabalho. A partir disto pode se falar de uma especie de pedagogia da denuncia levada a termo pelos principáis meios de comuni-cagáo televisáo, radio, jomáis e rede escolar. A abordagem das drogas legáis e ilegais encaminhada por óigaos e representantes oficiáis do Estado brasileiro é apresentada aqui como exemplo do modo de luncioiiamento de estrategias de govemainenlalidade.
abstract
A problematlzatlori of appeal, iricreas ingly effective and insistent, to make society participate in government's decislons through denounclng is Uie final destlnaüon of this work. It Is possible, based on these elements, to speak of a cerUtin type ol pedagogy of denounce carrled oul by the rnass media -televisión, radio, newspaperand school system. The approach given to legal arid illegal di ugs by governmental agencies and offlclal represen ta ti ves of the Brazilian state is presented as an example of the vía y governmental strategies operate.
criticamos mais duramente um pensador quando ele oferece uma proposi^áo que nos é desagradável; no entanto, seria mais razoável faze-lo quando sua proposi^áo nos é agradável
Nietzsche
1
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jaime cubero4
Se fizermos a qualquer pessoa a pergunta se ela é favorável á guerra, acreditamos que náo haverá uma só que responda afirmativamente. No entanto, qualquer estudo, mesmo náo aprofundado, demonstra que nos últimos 50 anos o militarismo cresceu de tal forma no mundo que com excegáo do que resta das sociedades primitivas náo há uma só sociedade organizada que náo esteja fortemente militarizada.
O problema é táo complexo e táo vasto que apenas podemos apontar alguns aspectos básicos para serem debatidos. Vamos dividir o tema em trés partes para facilitar a análise, ainda que em seus aspectos mais gerais: o soldado profissional em sua estrutura organizacional moderna; o militarismo e a industria de armamentos e o movimento anarquista em face dessa realidade. Evidentemente durante nossas análises náo poderíamos deixar de enfocar o aspecto crítico anarquista.
Em todos os países, sem excegáo, as torgas armadas acumularam um poder gigantesco que se projeta em todo o emaranhado político da sociedade contemporánea, apesar de um forte conflito interno de interesses; e parecerem impraticáveis as ditaduras militares á moda antiga ñas modernas sociedades industriáis. Os controles políticos passam por outras instáncias.
Os profissionais da violencia mudam no ritmo da constante transformagáo da tecnología de guerra, embora a imagem que o povo tem do soldado profissional seja anacrónica. As pessoas, inclusive as politizadas, preferem permanecer desinformadas e de um modo geral veern os oficiáis superiores das forgas armadas como pessoas que tomam decisóes políticas e muitos gostariam de ver seus filhos seguindo a carreira militar, principalmente nos EUA, porque uma elite, dentro da profissáo, detém o poder real e potencial de exercer controle sobre o comportamento dos outros.
A partir do século XIX, as instituigoes militares de países industrializados tornaram-se organizagóes integradas com uma elaborada estrutura hierárquica quando a concepgáo do estado-maior se torna uma necessidade administrativa. Há uma alteragáo no fundamento da autoridade e da disciplina, uma mudanga de dominagáo autoritária no sentido de manipulagáo, persuasáo, explicagáo e especializagáo, apesar da organizagáo militar continuar rígidamente estratificada pelas condigóes de comando na guerra. A mudanga lenta e continua, o caráter técnico da guerra moderna, exigindo soldados altamente qualificados, faz com que, em qualquer equipe militar complexa, um importante elemento de poder passe a residir em cada membro que deve prestar sua contribuigáo técnica.
Mas sendo o principio organizacional autoritário a dominagáo — a emissáo de ordens diretas sem que se dé suas razóes —, o oficial profissional é um discipli-nador. Como toda organizagáo de grande escala hierar-quizada burocratiza-se, a instituigáo militar moderna náo escapa á regra.
A partir do comego deste século, o desenvolvimiento militar tecnológico tornou-se táo ampio que se pode falar de uma revolugáo organizacional das forgas armadas, assim como houve uma revolugáo organizacional na produgáo industrial, com a entrada de armas e balísticos nucleares, todo tipo de foguetes e avióes super-sofis-ticados, a informática no uso de quase todas as armas, a guerra química, etc. As forgas armadas parecem ter se transformado num gigantesco complexo de engenharia. Hoje, o profissional militar se divide nos trés papéis, o herói glorioso, o administrador e o tecno-logista, sem perder o plano da hierarquia e da autoridade. Um exemplo é o Regulamento de Contingencias para o Exército e a Marinha do Brasil de 100 páginas com 315 artigos, muitos divididos em parágrafos que devem ser cumpl idos á risca. O capítulo I comega com os sinais de respeito assim:
"1) Todo militar deve aos seus superiores obediencia e respeito como tributo á autoridade de que se acham investidos pela lei.
2) As provas de disciplina devem ser manifestadas em todas as circunstancias de tempo e lugar, por atitudes e gestos precisos, rigorosamente observados.
3) A espontaneidade e a corregáo dos sinais de respeito sáo índices seguidos do grau de disciplina de uma corporagáo militar, bem como da educagáo profissional e moral dos seus elementos, pois só homens de músculos tlexíveis e bem educados moralmente sáo capazes de cumprir com perfeigáo, elegáncia e boa vontade esta parte do dever militar.
1) Ñas escolas, navios, corpos de tropas e estabelecimentos militares ou navais, deve haver maior empenho em que os sinais de respeito regularmentares se transformen! em atos reflexos, mediante cuidadosa instrugáo e continuada exigencia".
Do artigo 288, que ocupa quase uma página, sobre cerimónias de compromisso destacamos o seguinte: "O oficial presta erri voz alta e pausada o seguinte compromisso: Perante a bandeira e pela minha honra, prometo cumprir os deveres de oficial do Exército e dedicar-me inteiramente ao servico da Pátria".
Toda uma ideología contribuí para a formagáo psicológica do profissional militar: a idéia da pátria, o culto e as cerimónias com a bandeira, os hinos, honras aos oficiáis superiores, honras funerais, as insignias, etc. Sáo elementos de um ritual que conforma a submissáo e a lealdade ao poder constituido, seja qual for e a própria hierarquia. O subordinado se humilha ante o seu superior e humilha o seu inferior, do chefe supremo até o recruta sobre quem cai o peso da deformagáo que o sistema faz da condigáo humana. O recruta náo tem a quem humilhar.
Mas, modernamente, a tecnología da guerra é táo complexa que a mera disciplina autoritária náo é garantía para a coordenagáo de um complexo de especialistas. A agáo é cada vez mais dependente da eficiencia de cada membro do grupo do que da estrutura disciplinar autoritária. Mas como as agóes se fundamentara em violéncia e crise extrema, as organizagóes militares se reservam o direito de exercer sangóes drásticas contra o seu pessoal. As tensóes da vida militar náo conduzem á perpetuagáo da velha ordem como tal, mas á perpetuagáo de extenso ritualismo e crises de rigidez organizacional.
As forgas armadas tém crescido relativamente no mundo, numa proporgáo muito maior que o crescimento da populagáo. Além dos treinamentos, a profissio-nalizagáo significa incorporagáo "num esquema de ferro" e doutrinagáo. Por principio, todo profissional militar está obligado á honra. Supóe-se que a honra assegure a lealdade para com a carreira. Hoje em día há uma progressiva incapacidade da honra de resolver as tensóes no seio da profissáo, apesar dos esforgos para tornar compatível o desempenho e a especialidade técnica com o código de honra e a busca de gloria. Os comportarnentos mais surpreendentes se manifestam. No dia 14 deste mes, a rede SBT de televisáo, em seu noticiario internacional anunciava que o governo dos EUA expulsara em torno de mil militares homossexuais, das trés armas, que "aprontaram" na Guerra do Golfo. Alguns setores do movimento gay protestaran! informando que isso de nada adiantaria uma vez que o número de homossexuais ñas trés armas ultrapassa a casa dos cem mil.
Segundo as definigóes da honra militar, o soldado profissional está "acima da política". Em qualquer sociedade autoritária estar acima da política significa que o oficial está comprometido com o 'status quo". O conservadorismo militar proclama ser imprescindivel a propriedade privada como base de uma ordem política estável, ou a propriedade vinculada ao Estado, como nos países comunistas. E é da doutrina militar que as guerras sáo inevitáveis: que a natureza do homem faz com que a violéncia organizada seja o árbitro final entre as nagóes. Assim, as guerras sáo essencialmente acóes punitivas. Se a guerra é inevitável, justifica-se a máxima eficiencia técnica organizacional. A agáo militar é planejada para facilitar uma total incorporagáo política ou simplesmente "punir" os fora da lei. Exemplo: a guerra recente do Golfo Pérsico. O uso da forga ñas relagóes internación ais foi silterado de tal maneira que hoje parece mais apropriado falarmos de forgas policiais que militares. O estabelecimento militar transformase numa forga policial continuamente preparada para agir. Noam Chomsky, num artigo sobre as questoes que envolverán! a Guerra do Golfo, expressa bem o papel dos EUA como atual explorador do "virtual" monopolio do mercado de seguranga, como meio de obter concessóes económicas de outros países por servigos prestados como policiais de aluguel do mundo inteiro.
A ascensáo do administrador militar, significa um maior esforgo dos oficiáis para se manterem a par das correntes intelectuais. Sua atitude em relagáo á atividade intelectual é ambigua, porque sua fungáo consiste em proporcionar solugoes específicas para complexos problemas administrativos e organizacionais. Citemos a utilizagáo da antropología. Informagoes antropológicas foram obtidas para silenciar, por via aérea, aldeias asiáticas tanto quanto a utilizagáo de dados antropológicos para assassinar liderangas comunitárias na Asia.
Mas o grande problema do militarismo, a mais seria questáo a ser encarada e que só o movimento anarquista coloca, está alérn da estrutura da organizagáo militar. Por que fracassam todas as conferéncias de paz? Náo tém efeito todos os movirnentos de jovens de todo o mundo pela cessagáo das intervengóes armadas? Muita gente neste mundo é pacífica. Luta contra a guerra. Mas o grande e mais poderoso inimigo cía paz está na "industria da morte", o grande complexo industrial militar. As economías dos países do primeiro mundo, principalmente os EUA, sáo altamente militarizadas. Os donos das grandes empresas, das grandes eorporagóes, bancos, inclusive, mais do que qualquer outro grupo social detém os efetivos instrumentos do poder político, ocupam posigóes estratégicas no governo, e fazem a política em nome de toda a nagáo. Esses grupos acumulam lucros exorbitantes, fabulosos, na industria de armamentos. Fomentam as guerras, frías e quentes, limitadas ou ampias, manifestara as intervengóes militares e sáo responsáveis pelos riscos que ameagam a humanidade. A vida norte-americana assumiu o feitio de uma nagáo em guerra permanente e o desarmamento pra valer seria uma ruina económica em termos capitalistas. O poderoso parque industrial de bens de consumo que serve á imagem externa dos EUA tornou-se um gigantesco complexo industrial-militar. Os industriáis da morte exercem poderosa e sinistra influéncia no mundo de boje. No mundo capitalista náo há conciliagáo entre o ideal ele paz e a sede ele lucidos desses monopolios, dessas multinacionais da morte, que nunca se satisfazem.
Atualmente, em torno de dez milhóes de pessoas trabalham na industria da armas e munigóes dos EUA. Todo o relativo conforto dessa gente reponsa no sacrificio de soldados e na dizimagáo de povos estranhos a eles. Daí, as conseqúéncias desastrosas, que se estendem para países dependentes da esfera do dólar. Daí, o aviltamento dos pregos de exportagáo desses países, controlados que sáo pela demanda da industria norteamericana.
Os grupos que auferem lucros de armamentos e da guerra tém responsabilidade maior pela situagáo tensa com que toda a humanidade se defronta. Eles contam com a colaboragáo de economistas académicos e de instituigóes oficiáis, para elaborar técnicas económicas para aperfeigoar a eficiéncia do militarismo e para solidificar o papel por ele desempenhado na economía global. Hoje, a associagáo de interesses que lucram com os armamentos é o fator mais importante na promogáo da corrida armamentista. Numa aquisigáo de US$30 bilhóes correspondentes a equipamentos, suprimentos, e servigos comprados pelas forgas armadas e pela Comissáo de Energía Atómica dos EUA. Os lucros foram de USS 13,3 bilhóes antes da taxagáo e de US$6,4 bilhóes depois, considerando um imposto de renda de 52%L.
Os lucros obtidos na industria eletrónica e na exploragáo de novos metáis para uso militar sáo fantásticos, para uma demanda criada pelo avango tecnológico. As universidades participam intensamente ñas pesquisas e na preparagáo de pesquisadores caracterizando um dos mais sombríos aspectos que o professor Mauricio Tragtenberg chamou de "delinqüenáa académica".
As grandes corporagóes, através de seus prepostos no governo, pressionam permanentemente pelo aumento de verbas para o Departamento de Defesa dos EUA. Exemplo típico é o do grupo Rockfeller quando, tendo
Nelson Rockfeller como Conselheiro Presidencial e Presidente do Conselho, publicou relatório sobre seguranga internacional. Com Henry Kissinger, como relator e diretor do projeto, advogava com éxito o aumento crescente no consumo de armamentos. O grupo tem muitos investimentos na indústria de armas. Grandes organiza goes bancárias tém investimentos na indústria bélica e no exterior, investimentos em petróleo, etc. O Chase Manhattan Bank, a Casa de Morgan —a mais famosa de Wall Street — o City Bank, etc. Está claro que a comunidade financeira nada fará para deter a marcha progressiva dos militaristas e dos que se beneficiara dos armamentos em diregáo ao Estado militarista e á guerra.
Depois da grande exibigáo de forga e tecnología que foi a Guerra no Golfo Pérsico, em 17 de julho, foi assinado o acordo sobre o Tratado de Redugáo de Armas Estratégicas (Start) que prevé o corte de 30% do arsenal nuclear de longo alcance. O acordo, um documento de 700 páginas, que ainda deverá ser ratificado pelo Congresso norte-americano e pelo "Soviete Supremo", da Uniáo Soviética, diz selar o fim da guerra fria. Para acreditar seria necessário desconhecer totalmente o retrospecto dos aeordos de paz. O primeiro acordo de controle de armamentos nucleares foi assinado em 1968, onde EUA, Uniáo Soviética e Inglaterra se comprometiam a suspender a transferencia de armas nucleares para outros países. Desse primeiro acordo ao último assinado este ano, ao todo, forarri 14 aeordos. Todos sabem como foram cumplidos. Os arsenais de guerra cresceram assustadoramente após cada acordo. Apesar da propaganda e do alcance do alarde da mídia sobre esse último acordo assinado numa reuniáo de cúpula, os EUA aínda ficaráo com nove mil armas nucleares estratégicas (admitindo-se que o acordo fosse cumprido) e a Uniáo Soviética com sete mil (mísseis intercontinentais com ogivas atómicas), muito mais do que em 1982 quando se iniciaram as negociagóes para o acordo Start. A verba para o Departamento de Defesa dos EUA, aprovada em dezembro de 1990, foi de USS3,9 trilhóes. O ornamento militar da URSS é gigantesco. O próprio Gorbachev admitiu que mais de 4 0% dos recursos soviéticos sao destinados á industria militar.
Os grandes produtores de armas, na atualidade, estáo voltados para países do terceiro mundo, que lutam por adquirir tecnología nessa área. O comercio de armas náo está ñas máos dos "mercados da morte" isolados, mas também ñas máos dos governos. As vendas ao exterior impedem ás industrias de armamentos de sofrer flutuagóes das encomendas de material militar e aliviar o orgamento de defesa do país de origem. Com um faturamento de bilhóes de dólares, as vendas de armas sáo uma bengáo para a balanga comercial. Assim, quando os Estados entram em conflito com um país do terceiro mundo, ele luta contra tanques, avióes ou navios que eles mesmos venderam. Foi o caso da Inglaterra durante a Guerra da Malvinas e dos aliados na Guerra do Golfo, um incentivo para o aumento dos arsenais do terceiro mundo.
Alguns países, como o Brasil, embora de terceiro mundo sáo produtores de armas e até grandes exportadores. Com total apoio das Forgas Armadas vem se preparando para ingressar na era das armas nucleares. Segundo declaragáo do Ministro, a Marinha inicia o submarino nuclear até 1992, o programa nuclear da Aeronáutica se desenvolve no Instituto de Estudos Avangados, subordinado ao Centro Técnico Aeroespacial, em Sáo José dos Campos; o projeto do Exército, que já gastou US$ 49 milhóes, é desenvolvido pelo Centro Tecnológico do Exército, em Curitiba, e trabalha como elemento chave para a produgáo da bomba atómica.
A humanidade gasta com armas, em menos de trés horas, o equivalente ao orgamento total concedido pela Organizagáo Mundial da Saúde á luta contra a varióla. Em cinco horas, o total que a UNICEF (órgáo das nagóes unidas para ajuda á infancia) destina anualmente a criangas necessitadas. Em doze horas, uma quantia que seria suficiente para erradicar a malaria e enfermidades endémicas em 66 países. Todos os países do mundo poderiam pagar sua divida externa se lhes fossem concedidos em investimentos produtivos um décimo do total despendido com armas. Os recursos destinados em média por todos os países do mundo á investigacáo médica constituem o equivalente á quinta parte dos aplicados ao estudo e desenvolvimiento tecnológico do setor militar. Estas sáo algumas das conclusóes que um grupo de economistas e cientistas, integrantes de organizagóes de defesa dos direitos humanos divulgaram. Segundo as estatísticas divulgadas há, nos países subdesenvolvidos, atualmente, em média, um soldado para cada 250 habitantes e um médico para cada 3.700. Para cada cem mil habitantes do planeta, 556 soldados e 85 médicos. Gasta-se atualmente por ano, com cada soldado, US$19.300 enquanto que os fundos públicos destinados á educagáo sáo de US$380 a cada crianga. O custo de um caga-bombardeiro é, em média, equivalente ao necessário á construgáo e equipagem de 75 hospitais de cem camas cada um. O valor dos 27 mísseis que os EUA instalaram em territorios de países-membros da Organizagáo do Tratado do Atlántico Norte pagaría o investimiento em máquinas agrícolas suficientes para assegurar, em quatro anos, auto-suficiencia alimentar aos países pobres.
Os anarquistas tém a convicgáo de que numa sociedade capitalista, seja de livre mercado, seja de capitalismo de Estado, o militarismo jamais será eliminado. O nacionalismo exacerbado que informa toda ideología do Estado nacional moderno, fonte e sustentagáo de privilegios, exploragáo e opressáo, em qualquer sistema político que nele se fundamente, também sustenta o militarismo, que se alimenta da mesma ideología. É tradigáo do movimento anarquista combater o militarismo. A luta contra a instituigáo militar, face ás suas características atuais, náo pode ser i solada da grande luta pela transformagáo da sociedade. Combater o capitalismo e o Estado é a melhor maneira de combater o militarismo. Libertar as consciéncias com análises críticas, objetivas, com clareza, mostrando que o problema é muito maior, que vai muito além da farda.
A luta vem de longe. Em 1868, o Congresso Internacional Socialista de Bruxelas, adota por unani-midade uma resolucáo em que os operários eram exortados a tornar a guerra impossível por meio de greve geral. Mas contrariando a proposta, quando Dómela Nienwenhuls, grande militante do anarquismo, propós no Congresso Internacional Socialista de 1891, em Bruxelas, e em 1893, em Zurique, que recomendassem a greve geral e a recusa de marchar para a guerra, como meio de evitar guerras ameagadoras, a maioria rejeilou a proposigáo. Apenas, ern Zurique, os delegeidos da Australia, da Franga, da Holanda, e da Noruega quiseram ainda continuar a luta socialista revolucionária contra a guerra. Quando no principio do século XX uma guerra mundial ameagava os povos, Dómela Nieuwenhuls, juntamente com Janvion, Almereyda, Ivetot e Jourdan convocaran! um congresso Internacional Antimilitarista em 1904, em Amsterdam, que se realizou entre 26 a 28 de junho do mesmo ano. Havia delegados de várias regióes mineiras, que representavam 116000 operários. Com representantes dos companheiros da Boémia, da Franga, da Holanda, da Austria, de Portugal e da Italia, fizeram-se grandes demonstragóes. Posteriormente realizaram-se vários congressos que deram origem ao Bureau Internacional Anti-Militarista, B.l.A., com sede na Holanda, congregando as diferentes organizagoes anti-rnilitaristas, tanto anarquistas como sindicalistas. Esse Bureau foi fundado num congresso Internacional realizado em Haia, em margo e abril de 1921, com a seguinte declaragáo de principios: "O B.l.A.
contra a guerra e a rea cao, composto por organizagóes anti-militaristas revolucionarias, tem por objetivo trabalhar internacionalmente contra o militarismo. A fim de tornar impossível a guerra e a opressao das classes trabalhadoras, esforca-se por desenvolver no espirito dos trabalhadores a consciéncia do seu decisivo poder económico"
"Empreende propaganda de greve geral e recusa em massa do servigo militar".
"Preconiza a cessagáo imediata de todo o fabrico destinado á guerra e a náo participagáo no militarismo".
"Esforga-se por tornar inúteis as armas e os navios de guerra".
"Rende homenagem a todos aqueles que se recusam individualmente a todo o servigo militar".
"Opóe-se de forma veemente contra qualquer tentativa de nova dominagáo exercida por intervengáo armada contra um proletariado que ten ha rompido com o jugo capitalista".
"Opóe-se veemente contra todas as formas de exploragáo económica e opressáo militar de que sáo vítimas as ragas de cor; procura a uniáo e colaboragáo do proletariado revolucionario do Norte ao Sul, do Oriente ao Ocidente".
"A organizagáo do B.I.A, é de caráter federativo. No congresso foi expresso o desejo de que todas as organizagóes anti-militaristas revolucionárias de um determinado país se unissem num Burean Nacional, que trabalharia tanto quanto possível de acordo com o B.I.A. Compóe-se pelo menos de um membro em cada país onde existam organizagóes aderentes. Este Bureau designa, por um espago de tempo determinado, um certo país, onde esteja domiciliado o Comité Executivo. O Congresso designou os Países-Baixos. O Comité Executivo náo tem poder dirigente. Faz correspondencia, recolhe dados, envia comunicados á imprensa, estuda tanto quanto possível as relagóes políticas e económicas internacionais, langa o alarme internacionalmente em caso de guerra ¡mediata, incita a agir no sentido da declaragáo de principios e estimula em seguida por todos os meios, conforme está fixado no programa e é aceito como meio de luta."
Depois de arrolar uma especie de trabalhos desenvolvidos pelo B.I.A., o Secretário do Comité Executivo comunica os futuros congressos até o de janeiro de 1923, em Berlim, com as adesóes da Argentina, Finlándia, Itália e Brasil. A divisa do B.I.A. era a seguinte: "nem um homem, nem um centavo, nem um gesto a favor do militarismo".
Depois da Segunda Guerra Mundial, o B.I.A. deu lugar á "Internacional dos Resistentes á Guerra", com sede na Inglaterra. Editando um Boletim em inglés e francés, com edigoes mimeografadas também em alemáo e esperanto, sua propaganda sempre foi dirigida para o Movimento dos Objetores de Consciéncia.
Os objetores de consciéncia desenvolvem uma luta contra o servigo militar obrigatório e o direito á insubmissáo. Vale a pena conhecer o manifestó dos objetores de consciéncia publicado, recen temen te, numa revista argentina:
"Manifestó dos Insubmissos:
Os objetores de consciéncia, que estamos recebendo ordens de incorporagáo ao Exército para prestar o servigo militar, queremos dar ao recru-tamento forgado uma resposta ativa e coletiva, apresentando-nos publicamente ante a Jurisdigáo Militar, para a qual é delito nossa postura pacífica e solidária, e manifestamos:
1) Que fazemos objegáo de consciéncia negando-nos a prestar o servigo militar; conscientes de que com isso estamos contribuindo para que as relagóes entre as pessoas e os povos sejam baseadas na justiga e na solidariedade.
2) Que somos partidários da liberdade, da responsabilidade, da participagáo e da paz e entendemos que tildo isso contraria a lógica militar. Por isso, nao queremos colaborar com o Exército prestando o Servigo Militar, por entender que se o fizéssernos estaríamos afirmando valores negativos, como a obediencia cega, o machismo, a dominagáo e o poder. Estaríamos colaborando com a chamada ordem económica internacional; transformar-nos-íamos em consumidores de orgamentos astronómicos que, impedindo o desenvolvimento desviam os recursos do planeta para a guerra e a destruigáo. Náo queremos ser parte do Exército porque náo queremos ser instáncia necessária da dominagáo de urnas nagóes sobre outras, do dominio de urnas pessoas sobre outras.
3) Que ao negarmos expressamente a prestagáo do servigo militar entendemos que náo podemos ser considerados como militares, mas mantemos sempre nossa condigáo de civis.
4) Que somos objetores de consciéncia, sem necessidade de que nenhum organismo administrativo tenha porque declarar nossa condigáo como tal, no ámbito de uma lei cujo objetivo é conseguir que o protesto contra o servico militar obrigatório, que os objetores de consciéncia fazem, náo seja levado em consideragáo.
5) Que a imposigáo de uma prestagáo de servigo por outra que a substitua, para os objetores de consciéncia náo tem sentido se náo é entendida no ámbito do recrutamento forgado.
6) Que fazemos um chamamento a toda a populagáo par-a que da mesma forma que nós, desobedegam as imposigóes militares fazendo objegáo de consciéncia (antes, durante e depois do servico militar) impedindo a implantagáo das mulheres ñas forgas armadas. Náo cumprindo as tarefas que substituem o servigo militar e combatendo o financiamento das despesas militares mediante a objegáo fiscal.
Por tudo isso, entendemos que nossa oposigáo a toda conscrigáo, a todo re oru ta mentó, ainda que sob ameaga de prisáo, constituí um gesto de responsabilidade social que estamos dispostos a levar adiante e para o qual esperamos o apoio e a compreensáo de toda a sociedade civil"2.
Como já dissemos, a luta dos anarquistas contra o militarismo significa uma luta maior. A historia da origem e desenvolvimento dos mercadores de armas revela-os como uma ameaga crescente. Toda guerra moderna ameaga envolver metade do mundo. O negocio da industria cresce constantemente e os governos, em toda parte, estreitam os lagos que os ligam, numa parceria com os mercadores da morte.
A guerra já aparece como maior e mais importante atividade dos governos. O desarmamento e a verdadeira paz só seráo atingidos quando as forgas representadas pelos fabricantes de armas forem esmagadas e eliminadas. O problema do desarmamento e da verdadeira paz é, por conseguinte, o problema de construir uma nova civilizagáo. É a grande luta dos anarquistas. E no aqui e agora só resta ás pessoas interessadas apoiar todas as agóes e todos os movimentos contra a guerra. Lutar contra o nacionalismo, o chauvinismo onde quer que eles se apresentem, na escola, na imprensa, no trabalho e em todos os lugares.
A guerra é feita pelo homem; e a paz, na nova sociedade, quando chegar, também será feita pelo homem.
Notas:
1 Estraído de: Víctor Perlo. Militarismo e industria: armamentos e lucros na era dos projéteis. Pió de Janeiro, Paes e Terra, 1969.
5 Manifestó da FOSMO — Frente de Oposigao ao Servigo Militar Obligatorio — publicado na revista La Letra A, anarquista, de Buenos Aires, julho de 1991.
niido avelirio5
Estudar a memoria do Centro de Cultura Social e de seus membros é um trabalho de geragáo. Fundado em 14 de Janeiro de 1933, ele é resultante de uma tradicao anarquista que remonta ao inicio do século XX com uma intensa atividade anarco-sindicalista na cidade de Sao Paulo.
No inicio do século passado, o sindicato foi o grande baluarte das lutas e reivindicagóes operárias de influéncia anarquista; houve outras frentes de batalha dos libertarios, como o anti-clericalismo e o anti-milita-rismo, mas quase sempre foram conduzidas tendo á frente o sindicato operario como forga de mobilizagáo para a prática revolucionária.
Os antecedentes históricos do anarco-sindicalismo brasileiro sáo encontrados na fundagáo da Associagáo Internacional de Trabalhadores, conhecida como Ia Internacional, no dia 28 de setembro de 1864, durante o meeting de St. Martin's Hall, em Londres. O histórico da ln Internacional é fundamental para se entender o movimento social europeu e seus desdobramentos futuro, correspondendo aos anos de 1860-1870, uma década localizada entre os acontecimientos de 1 848 e a Comuna de Paris, refletindo o despertar do movimento operário para um radicalismo crescente.
Alguns dos tragos distintivos da agáo sindicalista revolucionaria sáo encontrados já no Io Congresso de Genebra, erri 1866, quando na segáo do dia 5 de setembro sáo discutidos os onze artigos que compoem seus estatutos provisorios. Em relagáo ao artigo 8o, que trata das condigóes exigidas para adesáo, o congresso registra "urna loriga e animada discussáo"1 ■, parte da assembléia pede que qualquer cidadáo, mesmo náo sendo traba-Ihador manual, possa fazer parte da Associagáo; já os delegados de Paris e Suíga, em sua maioria proudhonianos, exigiam ao contrario, a qualidade de trabalhador manual, sob alegagáo de que a Associagáo poderia ser vi tima de muitos ambiciosos e aventureiros, objetivando tornarem-se senhores da Associagáo e utilizá-la para seu próprio interesse. Depois de longa discussáo, a assembléia pronunciou que:
"Será admitido como miembro da Associagáo Internacional ele Trabalhadores qualquer homem que possa justificar sua qualidade de trabalhador; deste modo, cada segáo terá liberdade para admitir, sob sua responsabi lid arle, a quem julgue conveniente"2.
Todavia, a polémica reaparece na segáo do dia 8, novamente envolvenelo os proudhonianos, e desta vez na discussáo do item 11 dos "regu lamentos especiáis" da Associagáo, o qual dispunha que "cada membro da Associagáo tem direito a volare ser votado paradelegagao"3. Nesta ocasiáo Tolain, delegado da segáo parisiense, objeta:
"Se é indiferente admitir como membro da Associagáo Internacional cidadáos ele tocias as classes, trabalhador ou náo, náo deve ocorrer o mesmo quando se trata de eleger um delegado. Em presenga cía organizagáo social atual em que a classe trabalhadora sustenta uma luta sem trégua nem descanso contra a classe burguesa, é útil, é mesmo indispensável que todos os homens que sejam encarregados ele representar
grupos operários, sejam trabalhadores"4.
A mencionada preocupacáo do proudhoniano Tolain, que ao querer como delegados dos operários apenas trabalhadores manuais, além de exteriorizar sua desconfianga das profissóes liberáis de origem burguesa, denota igualmente, e com mais forga, a influéncia das idéias de Proudhon, e mais particularmente de sua obra postuma A Capacidade Política da Classe Operária, na qual Proudhon coloca o operário como sujeito da agáo revolucionária sem qualquer intermediagáo.
Com isso quero afirmar que, abstraindo as origens filosóficas do anarquismo e de sua eventual filiagáo em revoltas e aspiragóes populares de um passado anterior, é certo dizer que seu aparecimiento enquanto movimento social definido se dá como expressáo do movimento operário, como sindicalismo revolucionário desde o bergo. Proudhon, considerado o "pai do anarquismo moderno", tem ele mesmo origem operária e tocio seu pensamento constituiu uma reflexáo sobre a realidade clestes a quem ele considerava "irmáos ele miséria"; após sua morte, o pequeño grupo que irá constituir o núcleo da AIT na Franga se declarará mutualista. Desta forma, o anarquismo ganha expressáo de movimento social, inicialmente, vendo 110 sindicato o grupo essencial, o órgáo específico da luta de classes e o núcleo re-organizador da sociedade futura: a emancipagáo operária se daría pela prática revolucionária na luta solidária dos operários contra os patróes, cujo o objetivo buscava a organizagáo e a crescente federagáo dos sindicatos.
Se essas sáo as origens das práticas anarquistas, muito ainda se daria com a cisáo da Ia Internacional entre centralistas e federalistas, uma nova orientagáo seria dada ás concepgóes anarquistas do sindicalismo. Durante o congresso de Berna, em 1876, a discussáo sobre a origem dos delegados da Associacáo foi reacendida e o discurso de Errico Malatesta, entáo delegado da segáo italiana, estende o anarquismo para além da causa operária ao afirmar "que a Internacional náo deve ser uma associagáo exclusivamente operária" e que "o fim da revolugáo social, com efeito, nao é só a emancipagáo da classe operária, mas a emancipagáo da humanidade inteira"5. Malatesta havia compreendido os cismas intestinos que dividiram a Internacional, extraindo deles ensinamentos que seriam adotados pelos anarco-sindicalistas de todo mundo. Sua notoriedade enquanto pensador e homem de agáo já era bastante sentida nesta época, o que tornou sua influéncia muito forte entre os anarquistas. Num artigo reproduzido por Neno Vasco, na sua Concepcao anarquista do sindicalismo, o autor destaca as seguintes palavras de Malatesta:
"Na Internacional, fundada como federagáo de associagóes de resistencia para dar mais larga base á luta económica contra o capitalismo, bem depressa se manifestaram duas tendencias: uma autoritária outra libertária, que dividiram os internacionalistas em duas facgóes inimigas, conhecidas ao menos ñas duas alas extremas, pelas designagóes dos nomes de Marx e Bakunin.
Um quería fazer da Associagáo um corpo disciplinado ás ordens duma Comissáo central, os outros queriam que ela fosse urna livre federagáo de grupos autónomos; uns queriam submeter a massa para fazer, conforme a rangosa superstigáo autoritária, o bem déla á forga, os outros queriam sublevá-la e induzí-la a emancipar-se por si mesma; mas um traco comum caracterizava os inspiradores das duas facgóes: uns e outros prestavam á massa dos associados as suas próprias idéias, julgando que a tinham convertido quando haviam obtido a sua adesáo rnais ou menos inconsciente"6.
Malatesta conclui seu artigo afirmando que náo se pode cometer os mesmos erros e que "as causas que por fim a mataram, isto é, a oposigáo entre autoritários e libertários dum lado, e do outro a distancia existente entre os homens de idéias e a massa semi-consciente só movida pelos interesses [imediatos), acham-se hoje prontas para impedir o nascimento e o crescimento de uma nova Internacional, que fosse como a primeira ao mesmo tempo sociedade de resisténcia económica, oficina de idéias e associagáo revolucionaria"7. E por finí, fornecendo a orientagáo que seria adotada pelos sindicalistas revolucionarios, termina Malatesta dizendo que:
"A nova Internacional só pode ser uma associagáo destinada a reunir tocios os operários (isto é, o maior número deles) sem distingáo de opinióes sociais, políticas e religiosas para a luta contra o capitalismo, e por isso náo deve ser nem individualista, nem coletivista, nem comunista; náo deve ser nem monárquica, nem republicana, nem anarquista; náo eleve ser nem religiosa nem anti-religiosa. Única idéia comum, única condigáo de aelmissáo: querer combater os patróes".8
Esses foram alguns dos desdobramentos que sofreram cis concepgóes anarquistas e os militantes brasileiros estavam sensíveis a tais desenvolvimentos; é forgoso dizer que tais mudangas ele concepgáo foram frutos da experiencia de seus militantes, dos erros e acertos do próprio movimento. Este fato foi mal compreendido por diversos historiadores que atribuem este caráter de organizagáo do movimento operário brasileiro a uma fase "primaría" ou "pré-política" de sua evolugáo. Porém, sendo em si uma questáo de método ele grande relevancia política para os anarquistas, por ele pautaram-se os congressos operários brasileiros ocorridos respectivamente em 1906, 1913 e 1920, garantindo os principios do sindicalismo revolucionário nos moldes europeus.
Corrí a proliferacáo das ligas operarías durante os arios de 1903 á 1905, em novembro ele 1905 é criada a FOSP (Federagáo Operária de Sáo Paulo) e em abril do mesmo ano já acontece o "I Congresso Operário Brasileiro".
A presenga dos anarquistas é decisiva para orientar os principáis rumos cío movimento. Entre outras coisas, combateram a orientagáo política do movimento, devendo este ser orientado apenas económicamente: os sindicatos sáo órgáos de resistencia económica, devendo abster-se do processo eleitoral e das questoes religiosas; os anarquistas combateram as posigóes dos moderados de que urna burocracia remunerada diria-mizaria o movimento: defenderam que a remuneragáo deveria acontecer apenas para um executivo por sindicato somente em casos e circunstáncias muito especiáis, e que o salário náo excedesse o dos demais trabalhadores sindicalizados; os anarquistas também propuseram a criagáo da COB (Confederagáo Operária Brasileira). Dentre as Resolugóes do I Congresso Operário Brasileiro, vale destacar duas: sobre orientagdo e modalidades sindicáis.
Sobre orientagáo, aprovou o congresso:
"Considerando que o operariado se acha extremamente dividido pelas suas opinióes políticas e religiosas; que a única base sólida de acordo e de agáo sáo os interesses económicos comúns a toda classe operária, os de mais clara e pronta compreensáo; que todos os trabalhadores, ensinados pela experiencia e desiludidos da salvagáo virrda de fora de sua vontade e agáo, reconhecem a necessidade iniludível da agáo económica direta de pressáo e resisténcia, sem a qual, ainda para os mais legalitários, náo há lei que valha.
O I Congresso Operário aconsellia o proletariado a organizar-se em sociedade de resisténcia económica, agrupamento essencial, e sem abandonar a defesa, pela agáo direta, dos rudimentares direitos políticos de que necessitam as organizagóes económicas, a pór fora do sindicato a luta política especial de um partido e as rivalidades que resultariam da adogáo, pela associagáo de resisténcia, de uma doutrina política ou religiosa, ou de um programa eleitoral."9
Em modalidades sindicáis foi vivamente rejeitada a remuneragáo de cargos nos sindicatos por serem suscetíveis de "produzir rivalidades e intrigas, ambigóes nocivas á organizagáo" e por atrairem "individuos únicamente desejosos de se emancipar individualmente, trabalhando com o exclusivo fim de perceber o ordenado"10. Nos casos excepcionais por excesso dos servicos sindicáis, era permitido um único expediente que náo recebesse ordenado superior ao salário normal da profissáo. O Congresso decide que esse funcionario náo votaría e nem poderia ser votado e que para tais cargos seriam admitidos aqueles socios inutilizados pelo trabalho
O congresso ainda rejeita a intervengáo nos sindicatos de pessoas movidas por interesses contrarios ou por idéias e sentimentos estranhos aos interesses dos operários, e decide náo admitir patróes e nem qualquer especie de náo-trabalhadores, mas apenas únicamente assalariados; também impede a inclusáo de mestres e eontra-mestres por serem os representantes dos patróes. Sobre as conquistas imediatas, entre aumento de salário e diminuigáo das horas de trabalho, esta última é preferida pelo congresso, pois que o descanso facilita o estudo, a educagáo associativa, a emancipagáo intelectual e combate o alccolismo, fruto do excesso de trabalho embrutecedor e exaustivo11. Enfim, o congresso aprova campanha de denúncias contra a imigragáo, incitando os colonos "a náo emigrarem para o Brasil, enquanto vigorar a escravidáo ñas fazendas".
Durante o 2° Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1913 na cidade do Rio de Janeiro, lora apreserxtada pela Federagáo Operária Local de Santos uma mogáo para que aquela instáncia nacional recornendasse a propaganda anarquista nos sindicatos; a mogáo foi rejeitada tendo Edgar Leuenroth, militante expressivo do anarquismo da época, se oposto pelo fato déla violar o principio de neutralidade dos sindicatos e limitar seu apelo12. Os anarquistas pretendiam com a neutralidade sindical ressaltar o que havia de essencial no sindicalismo revolucionário13: a organizagáo e a agáo direta do operário. O sindicato era o meio de "estar entre as massas" e, ao invés de impor-lhes um programa, devia-se incitar o operário a agir por ele mesmo e cultivar a consciéncia do antagonismo de classe e a necessidade da luta coletiva.
No entanto, outra questáo se impóe: se por um lado o sindicato náo pode e nem deve ser declarado artificialmente anarquista, por outro é preciso evitar o que os anarquistas chamaram de "automatismo sindical", que tende a atribuir virtudes intrínsecas ao sindicalismo, virtudes que conduziriam "automáticamente" e "fatalmente" a uma transformagáo da sociedade. Sustentavam os anarquistas que "o fato e a agáo só valem enquanto produzem a idéia, enquanto sáo refletidos, enquanto criam um pensamento diretor"14, daí o risco das conquistas sindicáis resultarem estéreis do ponto de vista do projeto revolucionario. Contrapondo-se a esta situagáo, o sindicato era concebido como instrumento de preparagáo do terreno para receber a semente langada pela propaganda revolucionária. Sem a propaganda, comenta Neno Vasco, "as massas, embora associadas, náo saberiam interpretar os fatos, nem aproveitar as circunstancias, lenclo, pelo contrário, as ligóes da experiéncia no sentido mais grato á sua preguiga e á sua inéroia"15.
É aqui que a luta económica liga-se a uma ética e uma estética anarquistas que ultrapassam o limitado e sufocante cotidiano fabril; novos lugares sáo inventados e um novo cotidiano é dado ao individuo na forma de bibliotecas, conferencias, concertos, piqueniques, espetáculos filo-dramáticos e musicais, realizados pelos sindicatos ou por outras organizagóes por eles criadas como o Centro de Cultura Social de Sáo Paulo. Sáo lugares cujo objetivo é fazer o operário encontrar, ñas palavras de Neno Vasco, "o conforto convidativo da luz, do ar e da arte [antípodas do ambiente fabril], eí-lo definitivamente roubado ás consolagóes dúbias do botequim e das ilusorias fustigagoes do álcool [...] A música, o teatro, a arte declamatoria, enchendo os merecidos ocios do trabalhador, enriquecendo-lhe o cerebro, burilando-lhe o sentimento!"16.
O tema da subjetividade é hoje bastante relevante ñas pesquisas em ciencias sociais. Guattari17 chamou a atengáo para a importáncia dos J<atores subjetivos em acontecimentos como a revolta dos estudantes chineses e o colapso da ex-URSS na medida em que foram acompanhados de um estilo de vida, de uma concepgáo das relagóes sociais e de uma ética e estética coletivas. Sáo práticas que criam valores a partir dos quais os individuos se posicionam em relagáo aos seus desejos e afetos na gestáo de suas pulsóes. Náo se trata, no anarquismo, de valores universalistas, mas de criagóes heterogéneas e poéticas no sentido etimológico deste termo. E neste aspecto, Foucault chamou de "artes da existencia [...] práticas reñetidas e voluntárias através das quais os homens náo somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos criterios de estilo"16.
A vida como poesia, quer dizer, a vida como criagao encontra no anarquismo uma proximidade irredutível. De um lado ela delineia regras facultativas de conduta e de outro se articula como antípoda da dominagáo simbólica estatal, como redes articuladas de anti-disciplina para fazer frente á disciplina industrial da paulicéia19. A prisáo, a fábrica, o hospital e as vilas operárias, possuíam os corpos dos operários e concorriam para sua docilidade, era preciso subtrair-lhes as vontades que, burilada pela propaganda anarquista, despertava na existencia a invengáo de outros horizontes. S como o anarquista Hebert Read concebeu a arte e sua fungáo criadora; segundo ele:
"Para criar é preciso destruir, e o agente da destruigáo na sociedade é o poeta. Eu creio que o poeta é necessariamente anarquista, e que deve opor-se a todas as concepgóes organizadas de Estado, náo somente as que herdamos do passado, mas também aquelas impostas á humanidade em nome do futuro. Neste sentido náo fago distingáo entre fascismo e marxismo"20.
Com este objetivo, as práticas de centros de cultura e grupos filo-dramáticos foram privilegiadas; já no II Congresso Estadual Operário de Sáo Paulo, em 1908, é aprovada a resolugáo que "acónsel ha aos sindicatos a fundagáo de centros dramáticos sociais e de sessoes onde se entretenham os socios em palestras amigáveis"21; Edgar Rodrigues corita como a representagáo da pega anticlerical Electraem Sábado de Aleluia escandalizou a sociedade paulista no ano de 1901, assim como no ano de 1902 o jornal O Amigo do Povo noticia a representagáo interrompida pela polícia da pega Primo Maggio de Piet.ro Gori22; esses primeiros registros de atividades dramaturgas sinalizam um processo anterior de associagáo e autoconhecimento do movimento fomentado pela atividade sindical; registra-se uma intensa atividade dramaturga na cidade de Sáo Paulo, com finalidades diversas: de solidariedade, propaganda, comemoragáo ou simples entretenimiento. As atividades tinham geralmente o seguinte formato: 1) Concerto Musical de hinos ou cangoes operárias e revolucionárias; 2) Conferencia de algurn tema relevante; 3) Representagáo teatral, e; 4) Baile. "Era hábito comemorar o 1° de Maio, 14 de Julho (tomada da Bastilha) e o 13 de Outubro (fuzilamento de Ferrer) com representagáo de pegas sociais"23. O anarquismo ganha a dimensáo da vida dos individuos e isso é verificado num ilustrativo artigo escrito pelo militante paulista Souza Passos no jornal A Plebe, em 16/07/1948, no qual afirma que náo se pode reter do anarquismo apenas seu aspecto de crítica social em detrimento de sua finalidade estética, e grifa que "a arte, essencialmente anárquica, porque é, sem dúvida, a expressáo mais livre do individualismo e que tem urna fungáo criadora, quase nunca esta ligada aos motivos de luta e combate (...). Isto tem feito com que (...) nao se conceba o anarquismo senáo como um ideal de famintos, apenas como instrumento de reivindicagóes proletárias, encerrado num problema económico e moral das massas trabalhadoras"24.
Podem ser destacados varios temas valorizados dentro desta ética anarquistei, mas follaremos de um deles, e o mais relevante: o espirito da revolta. O anarquista A. Hamon, depois de coletar os resultados de um questionário aplicado em 1893, visando descobrir o "estado d'alma" dos adeptos do anarquismo, chegou á conclusáo de que "todos os anarquistas-socialistas sao revoltados, embora nem todo revoltado seja um anarquista-socialista"25. No anarquismo, a rebeliáo do individuo é a condigáo primeira de sua libertagáo do sistema autoritário; por ela, o individuo se coloca em estado de perpétua desobediéncia frente aos guardiáes da autoridade. Náo é uma revolta lógica, mas visceral, é um grito como ñas palavras de Proudhon: "A cólera, a indignagáo, o desespero, todas as paixóes de uma alma exaltada que, sentindo-se esmaga por uma forga superior quer, antes de morrer, langar seu dardo o mais profundamente possível: tais tém sido as verdadeiras motivagóes de minha conduta política".26
O tema da revolta leva, no anarquismo, á questáo da auto-responsabilidade do individuo27 no sentido em que, negando-se a tutela da autoridade, o individuo chama para si o governo e a responsabilidade de seus atos. Implica faculdade ética como conteúdo moral, que Proudhon denomina moral imánente; se em Kant o conteúdo moral é transcendente, em Proudhon e no anarquismo ele é imánente ao individuo. Ora, esse é um tema de grande atualidade e corrobora as teses foucaultianas do "cuidado de si". Na estética da existéncia grega, Foucault chamou a atengáo para as práticas que constituem uma "moral" cuja importancia recai ñas formas das relagóes que o individuo rnantém consigo, nos procedimientos pelos quais essas práticas sáo elaboradas e nos exercícios pelos quais os individuos permitem transformar seu próprio modo de ser; por isso Foucault disse que esta seria uma moral orientada para a ética, ao contrário da moral cujo valor recai sobre os códigos ligados a instancias de autoridade que os fazem valer pela imposigáo sob pena de incorrer num castigo.
É assim que "agir livremente" implica "querer livremente", e o anarquista acaba por autoconsti tu irse enquanto individuo com vontade autónoma em sua relacáo com o outro. As conseqüéncias sáo uma reela-boracáo das práticas sociais e a invengáo de urri estilo de vida singular. O "homem revoltado" é um dos grandes ternas para se estudar a ética no anarquismo, e dele podemos tirar licóes valiosas para nossa época.
Notas
1Jacques Freymond. La Primera InternaáanaL Tomo I Madrid, Editora Zero, 1973.
2 Ibidem, p. 93.
3 Ibidem, p. 112. Ibidem, p. 113
5 Neno Vasco. Concepfdo anarquista do sindicalismo. Porto, Afrontamento, 1984, pp. 87-88.
d Ibidem, pp. 89-90.
' Ibidem, p. 90.
8 Ibidem, pp. 90-91.
9 Edgar Rodrigues. O anarquismo na escola, no teatro, na poesía. Rio de Janeiro, Achiamé, 1992, p. 121.
10 Ibidem, p. 125.
11 Ibidem, p. 129.
12 Maram Sheldon Leslie. Anarquistas, bnigrantes e. o movimento operário brasileiro -1890/1920. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 92.
15 Os termos anarcosindicalismo e sindicalismo revolucionario sao geralmente empregados para distinguir o sindicalismo de tipo anarquista, com métodos de agáo direta e federalista, daquele sindicalismo ligado a instancias de poder e que se pauta pelo método da represen tagao; uma outra distingao se refere ás questoes de concepgáo: na Ia Internacional os sindicalistas criticavam ñas Trade s Unions "sua obra de reagáo imediata" e predicavam que a submissao do trabalho é a fonte da servidáo política, moral e material; assim, o objetivo da agao sindicalista era o da emancipagao integral do trabalhador pelo próprio trabalhador.
14 Neno Vasco, op. cit., p. 97.
15 Idem, p. 101.
16 Neno Vasco, 1984, pp. 130-131.
17 Féls Guatarri. Caosmose — um novo paradigma estítico. Sao Paulo, Ed. 34, '1992.
18 Michel Foucault. Historia da Sexua&dade 2 - o uso dospra^eres. T ed., Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 15.
" Margareth Rago. Do cabaré ao lar - a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). 21 ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
20 Herbert Read. Anarquía y ordem. Buenos Aires, Tupac, 1959, p. 60.
21 Maria Theresa Vargas. Teatro operário na cidade de Sao Paulo. Sao Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informagao e Documentado Artística, Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980, p.13.
22 Edgar Rodrigues. O anarquismo na escola, no teatro, na poesía. Rio de Janeiro, Achiamé, 1992, p. 110-111.
25 Ibidem, p. 112.
24 María Thereza Vargaas op. cit., pp. 142-143.
23 Hamon Augustín . Psicolojta do Anarquista-Socialista. Lisboa, Guimaraes Editores, 1915, p. 59.
26 Heints Peter . Problemática de ¿a autoridade en Proudhon. Buenos Aires, Ed Proyección, 1963, p. 141.
resumo
27 Ibidem.
abstract
A partir da noqáo de estética da existencia de Michel Foucault, o presente artigo discute como práticas culturáis anarquistas levam a uma problematizagáo da pessoa e a construgáo de urna subjetivídade libertarla. O tema da revolta leva, no anarquismo, á questáo da auto responsabilidade do individuo no sentido em que, negando-se a tutela da autoridade, o individuo chama para si o governo e a responsabilidade de seus a tos.
From the concept of aesthetic of existenceof Michel Foucault, tliis ai ticle discusses bow anarchist cultural practíces lead to a prohlemalizatlon of the individual and the construction of a libertarían subjectivity. The Lítente of revolt, in anarchism, conducts to the question of self responsibility. By denying the guardianship of authority, the individual assume for himselt the government and responsibility for his acts.
anatomía da crise: do sindicalismo revolticionário ao colaboracionismo cooperativista
alexandre samis* e renato ramos**
Ao conceituar o chamado "trabalhismo carioca", Boris Fausto deu importante contribuigáo á investígagáo das origens do cooperativismo no Brasil. Entre outras conclusoes, o historiador afirma que, a partir da sua base no Rio de Janeiro, o cooperativismo teria dominado a cena sindical, na última década do século XIX, perdendo gradativamente, no inicio do século seguinte, o controle de grande parte das organizagóes operarías para os sindicalistas anarquistas.1
A perda de sua primazia náo impediu, no entanto, que em muitas associagóes permanecessem vestigios de antigas práticas, galvanizadas em bases de acordo e na formagáo de grupos internos dissidentes. Ñas franjas das organizagóes operárias mais expressivas, manti-veram-se ativos os sindicatos descomprometidos com os novos principios do sindicalismo revolucionário. A disposigáo em atribuir ao Estado a interlocugáo e o papel
" Membro do Círculo de Estudos Libertarios Ideal Peres e professor de Historia. " Membro do Círculo de Estudos Libertarios Ideal Peres e pesquisador.
mediador nos conflitos de natureza salarial e operária náo desapareceu.
Em muitos aspectos, o entáo Distrito Federal reunia as condigóes necessárias á permanencia de tais aspiragóes, gragas a uma elite política de oposigáo que acenava constantemente com a possibilidade de consecugáo da harmonía social através das instituigóes do Estado. Entretanto, associada ao campo da política, a questáo social, sob perfil operário, serviu a projetos que possuíam pouco apoio popular. Para Boris Fausto:
"Sem dúvida, os setores intermediários carecem social e politicamente de homogeneidade. Ainda assim, a existencia destes setores em uma situagáo de menor dependencia das classes agrarias e as características apontadas do proletariado nascente dáo fundamento aos tímidos projetos de constituigáo de partidos operários do tipo trabalhista."2
Com o avango do século XX, os "trabalhistas" perdem gradualmente muitos dos espagos conquistados na última década do século anterior. O protagonismo da estratégia sindical anarquista empurrou, em um náo longo espago de tempo, os cooperativistas para o campo de oposigáo ao novo elemento de inspiragáo organizativa. A despeito de alguns contatos pontuais amistosos, os anarquistas cedo demarcaran! as diferengas entre uma e outra corrente, conforme se lé na Voz do Trabalhador de 1908:
"Náo há dúvida que os libertarios, mais do que os outros homens háo de contar com a forga da associagáo, porque tudo o esperam da livre afinidade entre as personalidades livres; mas náo creio que as associagóes cooperativas de trabalhadores possam realizar uma transformagáo importante ira sociedade. As tentativas feitas neste sentido sáo experiéncias úteis e devenios felicitar-nos de que tenham sido postas em prá tica; porém bastam, e já podemos formar sobre o assunto um juízo."3
As primeiras críticas ao cooperativismo aconteceram dentro da polidez e pon de ra cao típicas dos debates de idéias.
O "Primeiro Congresso Operario", no Rio de Janeiro, em 1906, contou com a presenga de Mariano García e Antonio Augusto Pinto Machado, dois líderes históricos do movimento reformista. Os debates marcaram, a partir das divergencias ideológicas presentes nos discursos, definitivamente as diferengas e os campos de atuagáo dos dois segmentos de representagáo dos interesses dos trabalhadores.
Dessa forma, a expressáo que assumiram os sindicalistas revolucionários e a própria difusáo do ideário anarquista, que náo cessava de crescer nos meios operários, rivalizava ainda com iniciativas paralelas dos cooperativistas. Estes, a despeito do crescimento da proposta de radical independencia oriunda do programa anarquista, insistiam em organizar entidades que deveriam atuar em conformidade com os principios de um tipo específico de evolucionismo positivista.
Algumas experiéncias cooperativistas calcadas no "culto ao trabalho"4, como a do funcionário do Arsenal de Guerra, Francisco Juvéncio Saddock de Sá, iniciadas ainda em 1900, buscavam inserir alguns setores do operariado estatal na lógica de organizagáo reformista. Saddock ele Sá, que náo abandonou a luta associativa até sua morte em 19215, foi um bom exemplo de organizador de classe que, para garantir melhorias para os operários do Estado, náo hesitou em isolá-los das propostas congéneres do período. De forma ilustrativa podemos evidenciar tal comportamento quando o "Circulo de Operários da Uniáo", fundado em 1909 e dirigido pelo referido funcionário, recusou-se a comparecer ao "Congresso Operário" convocado pelos reformistas em 1912. Embora as organizagóes de cunho cooperativo compartilhassem dos mesmos interesses, ao priorizarem a via de diálogo permanente com o governo, nem tocias buscavam uma agáo conjunta.
Após alguns anos de debilidades os reformistas retornan am com releí ti va forga em meados dos anos 10 e seriam, em 1912, a con di gao fundamental para a organizagáo do "Congresso Operário", sob a tutela do Tenente Mário Mermes da Fonseca, filho do Presidente Heniles da Fonseca.6 Deste encontro resultaram a consolidagáo das propostas reformistas e a formagáo da "Confederagáo Brasileira do Trabalho", organismo que combinava, simbióticamente, fungóes organizativa e partidária.
No seu antagonismo ás propostas libertárias, os "trabalhistas", a partir de 1912, segundo Boris Fausto, davam énfase aos melhoramentos económicos; ás elevagóes social, intelectual e moral da classe, evitando o envolvimiento do proletariado ñas questoes internacionalistas, antimilitaristas, antiestatais e nos problemas da organizagáo da propriedade. Na apreciagáo dos "trabalhistas", o meio utilizado pelos sindicalistas revolucionários, a agáo direta, era incapaz de garantir as transformagóes sociais necessárias á classe operária. O caminho preferencial era o da política, dentro dos quadros do sistema. Argumentavam que, em um país guarnecido por instituigóes democráticas, o abandono, por parte do proletariado do exercício dos direitos políticos, conduziria ao predominio das figuras mais conservadoras e comprometidas com o capital.7
Em harmónica parceria com estes principios trabalhava desde 1907, ano da aprovagáo do decreto lei n° 1637 de incentivo ás cooperativas, o funcionário do Ministerio da Agricultura, Custodio Alfredo de Sarandy Raposo5. Este "sindicalista" muito depressa se tornou o expoente máximo de uma linha associativa ainda mais estreitamente ligada ás instituigóes do governo; diferente de Saddock de Sá, que aceitava dialogar, mas náo se beneficiava diretamente das instáncias do Executivo, Sarandy Raposo encarnou o paroxismo do "colaboracionismo de classe".
Os anarquistas, após uma breve política de tolerancia com relagáo a Sarandy Raposo9 e os principios do cooperativismo, iniciara pesada investida contra as iniciativas nesse sentido. Organizado pela "Confederacáo Operária Brasileira" (COB), o "Segundo Congresso Operário", de setembro de 1913, delibera entáo, entre outras questóes, o combate ao cooperativismo. E, no seu jornal, A Voz do Trabalhador, a Confederacáo publicava sua posigáo:
"Bem sabemos que os governos, para se torna rem populares, para se mostrarem liberáis costumam fomentar a propaganda destas cataplasmas, destas iscas traigoeiras, como o é o cooperativismo ora propagado por influencia do ministério da agricultura — e o fazem justamente para desviarem, por uma enganosa melhoria — hipócritamente filantrópicos — como sáo todos que vivem parasitariamente — com o fim de, distraindo os trabalhadores com este chamariz, desviando-os do caminho já tragado e que devem continuar, implantar-lhes a discordia, a desorientagáo, sabedores como estáo de que enquanto assim acontece mais se vai mantendo a escravidáo operária e por conseguinte prolongando a orgia dos que bacanalmente vivem."10
Respondendo a uma circular enviada por Sarandy Raposo, do "Escritorio de Informagoes sobre Sindicatos e Cooperativos", órgáo ligado ao Ministério da Agricultura, aos secretarios do COB, estes utilizariam, mais uma vez, o veículo classista, A Vozdo Trabalhador.
Cidadáo C. A. Sarandy Raposo.
— Recebemos a vossa circular, e mais os estudos do Sindicato Profissional dos Operários do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro e da Cooperativa de Consumo dos Operários do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro.
Em resposta a ela temos a declarar-vos:
Que absolutamente de modo nenhum queremos aceitar o 'sindicalismo e o cooperativismo' propagados e auxiliados pelas autoridades do país.
E náo os queremos aceitar pelo seguinte: esta
Confederagáo e todas as federagóes e sindicatos que a compóem sao organismos de luta, de combate, essencialmente baseados na resistencia á exploragáo capitalista.
Ora, sendo as autoridades governamentais simples instrumentos de defesa da classe capitalista, evidenciase desde logo que com elas só pederemos ter uma especie de relagáo — a resultante da luta quotidiana e tenaz, que constituí a mesma base em que assentam as nossas organizagóes."11
Aos olhos dos anarquistas a classe operária já havia optado pelo protagonismo histórico de sua luta; ceder ao cooperativismo náo só representaría retrocesso como, também, o triunfo da classe contra a qual se deveria lutar.
O ano de 1917 confirmaría os prognósticos dos sindicalistas revolucionários do Rio de Janeiro. Na sucessáo de greves, motins e levantes armados, que se prolongaram pelo ano seguinte, os cooperativistas, além de manterem as associagóes a eles ligadas alheias ás lutas, manifestariam reiteradas vezes seu apoio ao governo12. Este fato acirraria aínda mais as disputas pelo espago sindical que, a partir de entáo, náo se circunscreveriam apenas ao plano do livre debate.
O ano de 1921 foi significativo para Sarandy Raposo, pois neste período, na vigencia do governo Epitácio Pessoa, ele ampliaría ainda mais sua insergáo nos meios operários. Boa parte de seu sucesso deveu-se ao "auxilio pecuniário" fornecido pelo governo, possibilitando, em margo de 1921, a fundagáo da Confederagáo Sindical Cooperativista do Brasil, a CSCB.13 O falecimento de Saddock de Sá, representante da outra vertente cooperativa, naquele mesmo ano, implicaría em alguma medida na ampliagáo das bases sociais do fundador da CSCB.
A agáo de Sarandy Raposo parece ganhar mais notoriedade em conformidade com a sua assungáo na orientagáo da "Segáo Operária" do periódico governista
O País, em fevereiro de 1923.14 Estampados ñas páginas do jornal, encontramos náo só os presságios de inspiragáo triunfalista como também apelos eloqúentes ao governo para o auxilio ás suas iniciativas.
Tentando representar o espirito da conciliagáo, a CSCB contava com a colaboragáo de patróes e empregados, além de "prestigiosas instituigóes". Procurava, com o apoio da Liga de Defesa Nacional, a Sociedade Nacional de Agricultura, o Centro Industrial do Brasil e o Instituto de Engenharia Militar,15 manter-se no limite entre as reivindicagóes sociais e os interesses patronais.
Os cooperativistas, no intuito de captar simpatías e firmarem-se como síntese do processo traumático da luta entre capital e trabalho, tragavam estratégias que se caracterizavam por ataques nem sempre dissimulados ao anarquismo, enfatizando e associando aos libertários o viés violento da revolugáo. Em contrapartida, reforgavam, na mesma proporgáo, a sua vocagáo "apaciguadora" e conciliatoria.
Dentro da lógica de ampliar ao máximo sua esfera de representagáo, náo demorou muito, a CSCB, a tomar a iniciativa de se aproximar dos sindicatos dirigidos pelos comunistas. Parecia uma alianga quase natural na medida em que os preceitos do sindicalismo revolucionário, eminentemente anarquistas, impossibilitavam de todo o crescimento da base de diálogo com o governo. Os comunistas, virtuais antagonistas dos anarquistas no campo revolucionário, ao contrario destes, náo rejeitavam a participagáo nos espagos formáis de representagáo e, em última anáiise, haviam trazido para o campo do "bolchevismo" muito do prestigio adquirido no meio operário em décadas anteriores de hegemonia anarquista.
Para Sarandy Raposo, a exemplo do que previam os cooperativistas para o anarquismo, ao contrário do fortalecimento da faegáo "neo-comunista"16, a "confluéncia" dos membros do PC para CSCB era uma questáo de tempo, ou amadurecimento. E, como ensejo a esta apreciagáo, um acordo com os mesmos, em que es ta va prevista a formagáo da grande "frente proletária", parecía razoável.
Náo só os anarquistas, mas mesmo alguns comunistas, entre eles Antonio Bernardo Cemellas, viram no projeto um oportunismo vergonhoso. A aprovagao, através de pressóes internas, na CSCB, da insergáo das disputas eleitorais nos planos táticos da entidade, aproximou-a ainda mais das premissas dos comunistas. Assim:
"A CSCB, a partir de entáo, precisava remodelar suas próprias linhas de convergéncia e divergencia com as duas outras facgóes existentes no movimento operário. Sua distancia em face do anarquismo crescia. Quando, em outubro de 1923, uma assembléia geral da Confederagáo aprovou formalmente a prática da agáo parlamentar, os libertários estavam sendo definidos corno 'o inimigo irreconciliável do sindicalismo cooperativista, do comunismo, do governo russo, de todos os governos e até de toda revolugáo limitada."
Já os neocomunistas estavam cada vez mais no carrrinho da evolugáo, apresentando 'em suas atitudes e seus atos, judiciosas tendencias para a prática do cooperativismo e até da agáo parlamentar, tendencias estas que os aproximam da. eficiéncia do sindicalismo cooperativista. "17
Ao receberem um convite para a "Conferencia dos Presidentes das Associagóes de Classe", organizada por cooperativistas e comunistas, os sindicalistas anarquistas iniciam urna seqüéncia extensa de artigos-resposta. Náo só para justificar sua objegáo em participar de tal encontro como também para evidenciar as opinióes sobre a alianga "frentista".
O operário maleiro e sindicalista anarquista Antonio Vaz18, para demonstrar a impossibilidade de colaborar com a "frente" convocada pelos cooperativistas, evidenciava, em um de seus artigos publicados em A
Pátria19, as finalidades do estatuto de uma cooperativa ligada a CSCB em Petrópolis:
"'Art 2o - Sao seus fins:
a) Promover entre os seus membros e para eles, a venda de todos os géneros de consumo agrícolas, pastoris e industriáis, adquiridos diretamente ou indiretamente;
b) Adquirir para serem vendidos aos socios, todas as mercadorias e manufaturas domésticas produzidas por socios e suas familias;
c) Adquirir térras e instrumentos de trabalho para socios que desejarem residir em regióes rurais, mediante pagamento a prazo e em produtos agrícolas.
Art 3o - Para o primeiro item (a) do artigo 2°, a Cooperativa de Consumo estabelecerá em local apropriado, um armazém regional e tantos armazéns distritais quantos necessários se tornarem pelo desenvolvimento de suas operagóes e aumento de numero de socios consumidores.
Art. 4° - Para o segundo item (b) do art. 2o, instalará, por intermédio do Sindicato Profissional, tantas cooperativas distritais de consumo forem os grupos de sete ou mais aderentes a estes estatutos, que realizem qualquer cultura ou indústria doméstica, por si ou suas familias, ou que residam em regióes rurais, onde possam colaborar como adquiridores diretos de mercadorias necessárias ao consumo dos membros das cooperativas urbanas de consumo.
Art. 5o - Para o terceiro item (c) do art. 2o, organizará ñas regióes rurais, por intermédio do Sindicato Profissional, pequeñas cooperativas de produgáo em terrenos coletivos, até que esses terrenos se tornem propriedades individuáis, mediante pagamento da parte destinada a cada socio, na forma indicada no mesmo item (c) do art. 2o.''20
Segundo Antonio Vaz o "canto de sereia" do cooperativismo náo resolvería o problema social, mas "insuflaría em seus cooperadores" a falsa crenga na harmonía com os regimes de "salariato" e propriedade. Assim:
"Como se vé náo visam nem a extingáo do dinheiro, nem da lei, isto é, aeeitam a sociedade conforme está constituida — com todo o vampirismo, toda a opressáo do forte contra o fraco, a exploragáo do senhor contra o escravo. Náo resolvem nem a questáo económica, nem política, nem social. Sáo trambolhos aos quais o proletariado só deve ligar para afastá-los do seu caminho com a ponta do pé."21
Vaz também denunciava a influéncia negativa do aparecimento de cooperativas em locáis onde já existiam sindicatos de resistencia, tomando como exemplo o fechamento da sucursal da Uniáo dos Operários em Fábricas de Tecidos, no bairro da Caseatinha, em Petrópolis, causado pela fundagáo da cooperativa dos operários da Companhia Petropolitana. Segundo este, a sucursal da UOFT:
"(...) náo seria vista com bons olhos pelos magnatas do industrialismo desse bairro. Náo hesitamos por isso até afirmar que foram eles os primeiros a sugerir a criagáo dessa tal cooperativa com o fito de desnortear seus assalariados, de lhes desviar a atengáo da Sucursal. Mas mesmo náo sendo eles os promotores diretos e indiretos de tais "arapucas" irrecusáveis aeeitam mais depressa uma cooperativa que em nada os prejudica, do que uma organizagáo que procura esclarecer seus componentes, pondo-lhes bem diante dos olhos os motivos do seu mal-estar, de sua miséria em contraste com a abastanga dos plutócratas."22
No Distrito Federal, as cooperativas de operários téxteis fundadas nos bairros da Gávea, Vila Isabel e Andaraí, ocasionaram um influxo irreversível na Uniáo, que, já em 1923, náo era mais ocupada de maneira preponderante pelos sindicalistas anarquistas que a haviam fundado em 1918.
Ainda no mesmo contexto, o operário socio da Uniáo Geral dos Trabalhadores em Hotéis, Restaurantes, Cafés e Similares, Manuel A. Pereira, ao denunciar a colaboragáo do Centro Cosmopolita23 com os cooperativistas, aproveitava para definir, com alguma ironia, a sua opiniáo sobre o líder reformista e suas relagóes com o PCB:
"Mas isso é vergonhoso. Porque se há traidores, se há quem esteja de acordo com o patronato, este é o sr. Sarandy Raposo que, como presidente da Confederagáo S. Cooperativista, a quem deseja ver filiadas todas as associagóes operárias do Brasil (pasmai, oh! gentes!), defende o interesse das duas classes.
O Sr. Sarandy quererá negar que o Centro Industrial do Brasil, a Liga de Defesa Nacional, Centro dos Proprietários de Motéis e outras associagóes retintamente burguesas fazem parte da Confederagáo? Quererá negar?
O Sr. Sarandy, cujas intengóes políticas estáo sendo exploradas pelos bolchevistas da zona (que por sua vez fornecem ineios de exploragáo política ao sr. Sarandy) quererá dizer que a Confederagáo só defende os interesses das associagóes operárias? Náo quererá dizer! Mas se se atrever a tal nós os desmascarariamos com os seus próprios atos.
Pescadores de aguas turvas, filadores, candidatos a deputados, a senadores, a ministros, a comissários do povo, a ditadores — tudo tem passado pelo campo dos trabalhadores de todo mundo. Os do Brasil também já tém sido vítimas de muitos embusteiros; e se náo se precaverem agora seráo novamente vítimas — e vítimas do mais audacioso de todos os empreiteiros da gamela orgamental."24
Mas talvez um dos artigos mais significativos seja o de Antonio Bernardo Canellas, particularmente por ser ele um comunista assumido25. Ao denunciar o interesse do PC nos cem mil filiados da CSCB — número anunciado pela própria Confederagáo em sua convocatoria para a "Conferencia dos Presidentes das Associagóes de Classe"26 — - Canellas critica duramente a alianga articulada por Astrojildo Pereira e a ingenu-idade dos comunistas ao franquearem á pregagáo reformista espagos sindicáis antes exclusivos dos revolucionários. Segundo o comunista, a frente proposta pelo Komintern confundia-se, dessa forma, com a "uniñcagáo atuadora" pregada por Sarandy Raposo. E concluí:
"O autor do nosso Duhring pró-mussoliniano é agora o Sr. Sarandy Raposo. Vamos ver o que vai sair dessa alianga realizada com assisténcia passiva dos comunistas oficiáis, que deste modo malbaratam o prestigio da revolugáo russa, á sombra da qual tém vivido e que é pena seja assim táo mal aproveitada."27
A vinculagáo dos comunistas dirigentes da Federagáo dos Trabalhadores do Rio de Janeiro (FTRJ) á CSCB, denunciada ñas "primeiras horas" pelo anarquista Marques da Costa, responsável pela coluna trabalhista de A Pátria2®, se encontrava expressa na representagáo que possuía a Associagáo dos Gráficos do Rio de Janeiro, na referida Confederagáo, a partir do socio Astrojildo Pereira. Assim como, a"Segáo Operária", do jornal ligado a administragáo de Arthur Bernardes, O País, também abriga va artigos de comunistas como Octávio Brarxdáo29 que, sob pseudónimo, divulgavam as premissas do partido no Brasil. Mesmo, o segundo número do jornal oficial do PCB, A Classe Operária, foi impresso ñas oficinas gráficas do periódico governista30.
A despeito da estrategia que iriam adotar os comunistas 110 Bloco Operário, nos pleitos de 1927, ao apoiarem os nomes de políticos "pequeno-burgueses" como Azevedo Lima e Mário Rodrigues31 e a agáo junto aos sindicatos cooperativistas, em agosto daquele mesmo ano, o governo baixa a "lei celerada"32. Tal medida iria afetar duramente as pretensóes de aseen sáo do movimento comunista e dificultaría ainda mais a manutengáo de um modelo sindical revolucionario. Mas, de alguma forma, a relagáo que se estabeleceu entre os membros do PCB e os líderes reformistas habilitou aqueles a uma sobrevivencia relativa no meio sindical da década seguinte. A experiencia adquirida ñas manobras trabalhistas no interior do estamento oficial, observadas muito de perto pelos comunistas, possibilitou a sobrevivencia dos "bolchevistas" á crise do sindicalismo revolucionário.
1
2002
D estarte, podemos observar sem maiores dificuldades, que a crise pela qual passa o sindicalismo revolucionário, nos anos que se seguiram á pesada repressáo dos órgáos de polícia e leis de de porta cao, foi causada por uma perda gradativa de militantes jogados em cárceres, internados no exilio do Oiapoque, assassinados por agentes de polícia, convertidos ao "bolchevismo" e ao avango do corporativismo "trabalhista". Entretanto, o anarquismo, ñas décadas posteriores ao advento do sindicalismo corporativo, iria ainda se manter como um vigoroso conjunto doutrinário de crítica ao capitalismo e ás estruturas de poder vigentes no país. A opgáo posterior dos anarquistas pela aglutinagáo de suas forgas em torno de periódicos de combate, ligas anticlericais e centros de cultura deveu-se, em grande medida, á perda de seu vetor de in se rea o social, o sindicalismo revolucionário. Carente de urna estratégia mais concreta de classe, o anarquismo perdería muito de sua visibilidade social, apesar de manter sua vigencia ideológica. A teoría anarquista, dessa forma, no pós-30, iria se caracterizar corno expressáo cultural e manancial revolucionário a ser oferecido aos grupos sociais em rebeliáo contra qualquer alternativa institucional de reforma.
Notas
1 Bous Fausto. Trabalho Urbano e Ccttfüto Soaal. Sao Paulo, Difel, 1977, p. 41.
2 Ibidem, p. 42.
3 ^ Voz do Trabalhador, 15/08/1908.
4 Angela de Castro Gomes. A Invenfao do Trabalkismo. Sao Paulo, Vértice; Rio de Janeiro, IUPERJ, 1988, p. 123.
5 Ibidem, p. 56.
" Fausto, op. cit., p. 55. ' Ibidem, p. 56.
8 Castro Gomes op. cit p. 124. ' Ibidem.
10 A VoZ do Trabalhador, 15/10/1913.
11 Ibidem.
12 Castro Gomes, p. 125. 15 Ibidem, p. 159.
14 Ibidem.
13 Ibidem.
15 Nos primeiros anos após a fundagao do Partido Comunista do Brasil seus militantes foram, em determinadas ocasióes, qualificados na imprensa operária enas colunas trabalhistas de "neo-comunistas". Tal fato explica-sepelautilizagáo do termo comunista para identificar determinadas tendencias no interior do próprio anarquismo.
17 Castro Gomes, op. cit., p. 164.
18 O portugués Antonio Vaz foi deportado para o seu país de origem em '1924. Edgar Rodrigues. Os Companheiros. Rio de Janeiro, VJR, 1994, p. 39.
WA Patria 11/11/1923.
20 Ibidem.
21 Ibidem.
22 A Patria 21/11/1923.
23 O Centro Cosmopolita, fundado em 1903, local do "Segundo Congresso Operário", em 1913, era uma associagáo de caráter classista. Os seus filiados pertenciam ao segmento dos "gastronómicos" e prestavam, no próprio estabeiecimento, servigos, de natureza diversa, ligados á classe. Até a fundagao do PCB esteve o Centro sob hegemonía dos anarquistas; após 1923 passa a integrar o grupo de associagóes ligadas aos "bolchevistas". Neste periodo, o Centro Cosmopolita, passa a disputar com a Uniáo Geral dos Trabalhadores em Hotéis, Restaurantes, Cafés e Similares a legitimidade junto á classe.
24 Patria 01/11/1923.
25 Antonio Bernardo Canellas foi protagonista de um dos ptimeiros casos de expurgo do PCB nos anos 20. Ver Edgard Carone. "Uma Polémica nos Primordios do PCB: O incidente Canellas e Astrojildo (1923)". In Memoria <& Hislória, Sao Paulo, Livraria Editora Ciencias Humanas Ltda., 1981.
26 A Pátria 27/10/1923. 2' Ibidem, 04/05/1924. 28 Ibidem, 17/08/1923.
2!> Octavio Brandao. Combates e Batalhas. Sáo Paulo, Alfa-Gmega, '1987, p. 240.
30 Alejandre Ribeiio Samis. Clevdándia do Norte: anarquistas, repressáo e exilio mterno no Brasd dos anos 20. UERJ, Dissertagao de Mestrado, 2000.
31 Mario Rjodrigues era á época o proprietário do jornal A Manka, apoiou o Bloco Operário e seu candidato Azevedo Luna. O jomaüsta cancidatou-se também, no mesmo período, á intendencia do Distrito Federal. Ver Samis. op. cit. p. 338.
32 A lei Aníbal de Toledo, de agosto de 1927, inspirada ñas suas congéneres de 1907, 1913 e 1921, atualizava as medidas de deportagáo e perseguagao ao elemento "radical" no país. A lei, por sua impopularidade, £cou conhecida nos meios operários como "celerada".
resumo
O texto procura demonstrara trajelória do sindicalismo no Brasil a partir do Inicio do século XX. As disputas entre os modelos sindicáis "trabalhista", anarquista e comunista deflnlram, em grande medida, as fransformacoes ñas estrategias do governo para enfrentar as organizagóes operarías. A aproximagáo dos comunistas de tendencias reformistas com o cooperativismo ampliou ainda mais as diveigéncias entre aqueles e os anarquistas. Tais querelas podem, com alguma precisao, esquadrinhar os motivos da crise que abateu pr olundainente o sindicalismo revolucionarlo no fim da década de 1920.
abstract
Tlils artlcle seeles to demónstrate the history of trade unionism in Brazil in the beginniug of the 2CF century. The dispute among unionist models of "workers", anarchistsand communists, largely shaped the changes of govemmentstrategles in iigliting labor organlzatlons. Thedifferences between socialist and anarchist became deeper witli the approach of Ule socialist with a reformlst orientation. The crisis Uiat has afflicted the revolntionary unionism in the late 192ÜS, can beanalyzed, in some degiee, by the study ol tíiose fights among socialist factions.
christian ferrer6
Em qualquer cidade do planeta, nao importa seu tamanho, há pelo menos uma pessoa que se diz anarquista. Esta presenta solitária e insólita seguramente oculta um significado que transcende o territorio da política, da mesma maneira que a dispersáo triunfante das sementes náo pode ser resumida apenas como luta pela sobrevivencia de uma linhagem botánica. Talvez a evolugáo "anímica" das especies políticas seja equivalente á sabedoria da aspersáo seminal na natureza. Da mesma maneira, as idéias anarquistas náo foram nunca orientadas por métodos intensivos do "plantío" ideológico-partidário: espalharam-se seguindo as ondulagóes inorgánicas da erva plebéia. Um pensamento que teve inicio na metade do século XIX, conseguíu proliferar sobre uma base bastante frágil na Suíga, Itália e Espanha, até chegar a ser conhecido praticamente em todo lugar habitado do planeta. Assim,
é possível considerar o anarquismo, depois da evangelizado crista e a expansáo capitalista, a experiencia migratoria mais bem sucedida da historia do mundo. Quem sabe seja este o motivo pelo qual a palavra "anarquía", antiga e ressonante, esteja aínda aquí, apesar dos agouros que deram por acabada a historia libertária. Referir-se ao anarquismo supóe um tipo de "milagre da palavra", sonoridade lingüística quase equivalente a acordarmos vivos cada novo dia. Também pode ser considerado um milagre o fato de que o ideal anarquista tenha aparecido na historia, uma dádiva da política; sendo a política, por sua vez, uma dádiva da imaginagáo humana. A persistencia desta palavra se sustenta, sem dúvida, em sua potencia crítica, na qual habitam tanto o pánico como o consolo, ambos derivados do estilo "de garra" e da sede de urgencia próprios dos anarquistas: suas biografías sempre adquiriram o contorno da brasa ardente. Mas se a idéia anarquista persiste é também porque ñas significagóes que ela absorve se condensa o mal-estar que a hierarquia gera. Porém, para a maior parte das pessoas, o anarquismo, como saber político e como projeto comunitário, transformou-se num misterio. Náo necessariamente em algo desconhecido ou impossível de conhecer, mas em algo semelhante a um misterio. Incompreensível, inaudivel. Invisível.
Náo há indicio de que a aparigáo histórica do anarquismo no século XIX fosse um acontecimento necessário. As ideologías operarías, o socialismo, o comunismo, foram frutos inevitáveis, germinados na selva da vida industrial. Mas o anarquismo náo: sua presenta foi um acontecimento inesperado, e é possível especular que poderia nunca ter se apresentado em sociedade alguma. Sei que uma tal suposigáo é inútil, pois o anarquismo efetivamente existiu, e qualquer historiador profissional saberá dispersar bandeiras causais sobre o mapa da evolugáo das idéias operarías e da política de esquerda. Mas a ucronia que esta especulagáo supóe nao é ociosa. Facetas políticas do anarquismo estavam presentes ñas idéieis marxistas, ñas idéias liberáis, ñas construgóes comunitarias dos primeiros sindicatos. Por que, entáo, este hospede incómodo e inesperado fez seu abrupto e notorio aparecimento e se instalou como uma farpa ñas idéias políticas de seu tempo? Foi o anarquismo uma errata no livro político da modernidade? Pensó que o mistério desta anomalía política é diretamente proporcional ao mistério da existencia da hierarquia. Erro ou dádiva, sua difícil persisténcia e o fato de que em certos momentos a populagáo confiou e depositen no anarquismo a chave de compreensáo do segredo do poder hierárquico e, ao mesmo tempo, um ideal de sua dissolugáo, faz supor que esta idéia desmesurada é a única saída existencia! que aquela época ofereceu a sofredores e ofendidos, que ainda tem forga, mesmo que sua voz náo consiga atravessar a barreira do som midiática e política.
Cada época segrega uma zona secreta, um tipo de "inconsciente político" que opera como um ponto cegó e centro de gravidade soterrado que náo admite ser pensado por um povo, e as linguagens que tentam penetrar nessa zona sáo tratadas como blasfemas, ictéricas ou exógenas. O anarquismo foi o estilhago, o irritador dessa zona, a invengáo moderna que a própria comunidade, obscuramente, precisou, para poder compreender provisoriamente o enigma do poder. Toda época e toda experiéncia comunitária propóem interrogagóes quase sem solugáo para seus habitantes. É exatamente por isso que em toda cidade estáo distribuidos alguns recintos e rituais que devem tornar provisoriamente compreensíveis seu mal-estar e seus enigmas. Assim, prostíbulo, igreja, estádio de futebol e sala de cinema acolhem as interrogagóes proferidas pelo desejo, a criagáo do mundo, a guerra e os sonhos. O anarquismo acolheu interrogagóes associadas ao poder, foi a cratera histórica pela qual emanaram respostas radicais ao problema, a encruzilhada de idéias e práticas na qual se condensou o drama do poder. O fato de que, em suas linguagens e em suas condutas, a sinceridade consumasse um vínculo sólido e peculiar com a política, deu a esse movimento de idéias uma potestade singular, subtraída para sempre ao marxismo-leninismo e ao republicanismo demócrata, obrigados a continuas negociagóes entre rneios e fins. A conduta irredutível, o fundamentalismo da consciéncia, a convicgáo inegociável, a política da contrapoténcia, foram as qualidades moráis que garantiram que a imaginagáo popular confiasse em líderes sindicáis anarquistas ou em certos homens exemplares, mesmo quando aqueles que se diziam anarquistas fossem uma minoría demográfica no campo político. Essa determinagáo demográfica explica por que as vidas dos anarquistas foram táo importantes quanto suas idéias teóricas. Cada vida anarquista era a prova da liberdade prometida, o testemunho vivo de que uma parte da liberdade absoluta fora prometida e existia na térra.
A hierarquia se apresenta diante de milhóes como uma vertical i dade, imemorial como uma pirámide e perene como um deus. Pouco menos que invencível. Mas a historia de um povo é a historia de suas possibilidades existenciais, e o reaparecí mentó esporádico da questáo do anarquismo — isto é, da pergunta pelo poder hierárquico — significa, talvez, que essa possibilidade permanece em aberto, e que através déla filtra-se o retorno de tudo que é reprimido no territorio da política. Logo, o anarquismo seria uma substáncia moral flutuante que atrai intermitentemente as energías refratárias da populagáo. Opera como um fenómeno raro, como um eclipse ou um arco-iris duplo, um ponto de atragáo dos olhares que precisam compreender o poder separado da comunidade. A última das térras raras da tabela periódica dos elementos de Mendeleiev. Seria possível dizer que o anarquismo náo existe, mas insiste.
Evoca-se toda palavra como objeto de museu, mas também se degusta como um fruto apenas arrancado do galho. No ato de nomear, um equilibrio sonoro consegue que se evidencie um resto animador na rotineira fossilízagáo das palavras. O anarquismo, que conviveu intimamente com esse equilibrio por muito tempo, debate-se hoje entre ser tratado como resto temático pela paleontología historicista e sua vontade de continuar sendo uma ramíficagáo da ética (uma possível moral coletiva) e uma filosofia política vital. Resolver esta questáo requer identificar seu "drama cultural", conformado por paradoxos e por redemoinhos de tensóes que se tornam evidentes em situagóes de extremo perigo ou quando o tempo de uma idéia comega a esgotar-se.
Sabe-se que a luta por expandir os limites da liberdade, mito político, consigna e emblema afetivo vitorioso que mobilizou as energías emotivas de milhóes de pessoas, foi a paixáo do século XIX. No final desse século o mito da liberdade separou-se em trés diregóes, orientadas pelo comunismo, o reformismo e o anarquismo. Quando aquela paixáo política foi "capturada" vitoriosamente pelo marxismo e endossada a todo o imaginário e á maquinaria que conheeemos sob o nome de "comunismo", ou de suas várias ramificagóes paralelas, náo somente foi desdobrado um modelo de agáo política e de subjetivagáo do militante, mas também um triunfo histórico que ao mesmo tempo iniciaria — ainda que inadvertidamente para seus fiéis — seu "drama cultural": a cristalizagáo liberticida de uma idéia num molde, despótieo-naeional primeiro, depois imperial. Décadas mais tarde, custou-lhe muito caro á esquerda a longa subordinagáo sem crítica ao modelo soviético. A obsessáo pela eficácia e o centralismo autoritário, a relagáo oportunista entre meios e fins, os siléncios diante do intolerável, sáo cargas históricas pesadas demais até para um santo ou um tita. É muito difícil que volte a aparecer uma erenoa no "modelo" asiático de revolugáo e, lentamente, os partidos autodenominados marxistas váo se transformando em grupos apóstatas ou em seitas em vias de extingáo. Suas linguagens e seus símbolos rangem e se dispersan!, talvez para sempre.
O drama cultural do reformismo socialdemocrata também deriva, em parte, curiosa ou tristemente, de seu éxito como eficaz substituto do caminho "maxi-malista" de transformagáo social. As expectativas depositadas nos partidos reformistas foram enormes na maioria dos países ocidentais, entre a Primeira Guerra e 1991, ano do fim do regime comunista na Uniáo Soviética. A "genialidade" do reformismo residiu em sua habilidade para devir em um eficaz mediador entre poderosos e "perdedores", e para humanizar essa relagáo. Mas com o passar do tempo, a socialdemocracia deixou de representar um avango exn relagáo á cultura política conservadora para se transformar no ideal de administragáo do estado de coisas ñas democracias ocidentais. A "atualizagáo" dos partidos de direita, o desaparecimiento do "cosmos soviético" e a renovada pujanga do capitalismo ñas duas últimas décadas tornaran! a socialdemocracia incapaz de diferenciarse da direita liberal, além dos barulhentos rituais moralistas, sendo ainda a recente proposta da "terceira via" pouco menos que um farol publicitário. Seu drama cultural é que a "reforma" é levada adiante por forgas que tradicionalmente foram consideradas de direita, inclusive quando as mudangas sáo feitas por líderes de centro-esquerda. Perdido o monopolio da transformagáo no capitalismo tardío, e sendo as reformas prote-cionistas comparativamente paupérrimas em relagáo á atual e descarnada construgáo do mundo, o ciclo cultural do reformismo comega a estreitar-se dramáticamente. Já é uma moral de retaguarda.
O comunismo pareceu sempre uma corrente lluvial que se dirigía, impetuosamente, para uma desembocadura natural: o océano pos-histórico unificador da humanidade. Para seus críticos, esse rio estava sujo, irremediavelmente poluído, mas inclusive para eles era impossivel deter a corrente. Entretanto, esse rio secou como se um sol super potente o tivesse dissolvido apenas num instante. Restou apenas o molde vazio do leito. E as estrías que ali restam, e a ressaca acumulada, já estáo sendo numeradas e classificadas por historiadores e curadores de exposigóes. Se insistíssemos com as metáforas hidrográficas, náo correspondería ao anarquismo a figura do rio, mas sim a do geiser, corno também a do trasbordamento, cía inunclacáo, cío rio subterráneo, da tormenta, do redemoinho do mar, do romper da onda, cío olho da tormenta. Fenómenos naturais, tocios, inesperados e desordenados, ainda que dotados de uma potencia particular e irrepetível. Este diadema de fluidos já nos adverte sobre seu drama, no qual náo se podem conciliar seu poder de transtornar e sua frágil persistencia posterior, sua capaeidade para agitar e mobilizar o mal-estar social de uma época e sua incapacidade para garantir uma sociabilidade harmoniosa depois da purga de urna situagáo política, sua tradigáo impetuosa de aeosso ético á política da dominagáo e sua dificuldade para amplificar seu sistema de icléias. A palavra "anarquismo" tem ainda um sonoro, mesmo que focalizado, prestigio político (tendo-se salvado cías máculas endossáveis ao marxismo, já que suas mútuas biografías divergiram há um bom tempo). Esse prestigio — talvez um pouco equívoco — está tingido de uma cor tenebrosa, que náo cleixa ele ser percebida por muito jovens como uma aura lírica. O tenebroso acopla o anarquismo á violencia e ao jacobinismo plebeu; o lírico, ao clesejo ele pureza e á intransigencia.
Mas náo há quase anarquistas, ou entáo suas vozes náo sáo audíveis. Talvez nunca existissem muitos, se aceitamos que a definigáo ele anarquista supóe uma identidade "forte", esforzado ativismo de resultados mínimos, e uma ética exigente. As circunstancias históricas nunca Ihes foram propicias, mas ainda assim conseguirán! ser "contrapesos" ético-políticos, compensagáo a uma espécie de mal di cao chamada hierarquia. Talvez o mundo seja ainda hospitaleiro porque este tipo de contrapesos existe. Uma cidade seria inabitável se nela só acontecessem comportamientos automáticos, maquinais e resignados. O anarquismo, pensamento anómalo, representa "a sombra" da política, o que náo pode ser representado, a imaginagáo anti-hierárquica. E o anarquista, ser improvável, mesmo existindo em quantidades demográficas quase insignificantes, assume o destino de exercer uma influencia libertária de tipo radical, que muitas vezes passa inadvertida e outras se condensa num ato espetacular. Destino, e condena, porque ao anarquista náo Ihe é dado estabeiecer nem fáceis nem rápidas negociagóes com a vida social a tu al, e justamente é essa impossibilidade que em algum momento de sua existencia faz com que o anarquista padega de seu ideal como de um feitigo, do qual náo sabe como se libertar. Aquela influencia tem seu objetivo: a dissolugáo do velho regime psicológico, político e espiritual da dominagáo. Para realizá-lo, o anarquismo recorreu a um arsenal que só ocasionalmente — e náo substancialmente — pode ser acolhido por outros movimentos políticos: humor de parodia, temperamento anticlerical, atitudes irredutíveis de autonomía pessoal, ebuligáo espiritual acoplada a urgencias políticas, comportamento insolente, impulso da agáo política á maneira de contrapoténcia e, enfim, uma teoría que radicaliza a crítica ao poder até limites desconhecidos antes da época moderna. Sua imaginária impugnadora e seu impulso crítico nutrem-se de uma gigantesca confianga ñas capacidades criativas dos animais políticos, uma vez libertos da geometría política centralista, concéntrica e vertical.
A dissolugáo do mundo soviético e a crise do pensamento marxista pareceram dar ao anarquismo a oportunidade de sair das catacumbas. Porém, a queda do "sovietismo" levou consigo o abanico socialista inteiro, pois inclusive o anarquismo estava familiarizado com o imaginario comunista afetado pela derrubada: era uma de suas varetas soltas. Os acontecimientos políticos do bienio 1989-91, festejados midiaticamente como se se tratasse da decapitagáo de Luís XVI, abriam comportas geopolíticas mas também enclausuravam tradigóes emancipatórias. Náo só o pior, também o melhor délas. Junto á derrubada da ordem soviética, fechava-se um es paco auditivo para as mensagens proféticas de tipo salvador. E na voz anarquista ressoou sempre um tom bíblico. Para seus profetas, a ordem burguesa equivalía á Babilonia. No inicio dos anos 90 náo estava concluida a historia — tal como sugerido por uma consigna veloz e banal —, mas sim, talvez, o século XIX: constatava-se que as doutrinas marxistas, anarquistas e inclusive as liberáis em sentido estrito, liquidificavam-se e evaporavam-se da historia do presente. Presenciávamos o canto do cisne do humanismo. Uma de suas conseqüéncias foi o desaparecimiento da memoria social, isto é, das linguagens e símbolos que carregavam o projeto emancipatório moderno e o modelo de antropología que Ihe correspondía. Ao mesmo tempo, a política clássica, vinculada á representagáo de interesses (versáo reformista) ou á pugna social contra o absolutismo e a ordem burguesa (esquerda e anarquismo), perde forga e legitimidade. Já faz tempo que a política, emi escala mundial, opera segundo o modelo organizacional da rnáfia. A ordem mafiosa é, de saída, a metáfora de fundagáo de um novo mundo, e isso em todas as ordens institucionais, das gremiais ás universitárias, das empresariais ás municipais. Ou se está dentro da esfera de interesses de uma máfia particular, ou se está desamparado até limites apenas comparáveis com o comego da revolugáo industrial. Este pode ser o destino que enfrentaremos, mal cruzadas as portas do terceiro milenio.
Já que todo Estado precisa administrar a energia emotiva da memoria coletiva, as maneiras de controle e moldagem dos relatos históricos chegam a ser assuntos estratégicos de primeira ordem. A ruptura da memoria social foi causada, em alguma medida, por mudangas tecnológicas, particularmente pela articulagáo entre os poderes e os instrumentos midiáticos de transmissáo de saberes. É possível encontrar uma causa, talvez mais ativa, no desaparecimento de subjetividades urbanas que eram resultado de um molde popular náo ligado á cultura das classes dominantes. Essas trivialidades urbanas eram efeito da "cultura plebéia", que na Argentina e durante meio século foi dominada pelo imaginário peronista. Ao longo do século passado, a velha cultura popular (mistura de imaginário operário e antropología "folk") se metamorfoseou em cultura de massa, o que transformen lenta porém radicalmente a maneira de arquivo e transmissáo da memoria das lutas sociais. E quando a historia e a memoria se retraem, as populagóes podem edificar seu agir apenas em fundamentos táo instantáneos quanto lrágeis. Por sua vez, o destino da paixáo pela liberdade — mito central do século XIX — é incerto em sociedades permissivas, do tipo das atuais sociedades ocidentais, ñas quais o "libertário" chega a ser uma demanda possível de acoplar ás ofertas de um mercado de produtos "emocionáis", da psicoterapia á indüstria pornográfica, da produgáo de fármacos harmonizadores do comportamento ás promessas da industria de biotecnología. Esta última, em particular, revela certos síntomas sociais da atualidade: leitura do mapa genético, transmutagáo da carne em alambiques de clonagem, aprimoramento tecnológicos dor órgáos, cirurgia plástica, silicone injetável no corpo á maneira de vacina contra a rejeigáo social. O "modelo estético-tecnológico" desdobra-se como um "sonho" que pretende apaciguar um mal-estar que, por sua vez, nada tem de superficial. Em economías flexibilizadas, em países nos quais foi destruida a idéia coletiva de nacáo, com habitantes que mal conseguem se projetar para o futuro, condenados a idolatrías menores, a recorrer á moeda como lugar-comum, a realizar apostas que náo se sustentam no talento de cada um, a experiencia coletiva torna-se dura, cruel, carente e, por momentos, delirante. Cada pessoa está solitáriajunto ao seu corpo descarnado, aquilo no que, em última instáncia, se sustenta. A "ansiedade cosmética" revela-nos o peso que arrastamos, o esforgo que fazemos por existir. Mas também nos revela que a "arte de viver contra a dominagáo", na qual se desenvolveu o anarquismo, está suspensa, porquanto as necessidades humanas se transformara drásticamente e hoje náo mais se articulara com a memoria das lutas sociais anteriores. Se o destino da época seguisse este curso, uma forga semelhante áquela do dilúvio derrabaría as pontes da historia.
Autocracia e forne. Os dois irritadores do "mal-estar social" na modernidade. Náo mais o sáo, ou ao menos náo estáo ativos na mesma medida em que as imagens de sofrimento nos acostumaram a pensá-los. Diferente deve ser, entáo, o destino da política libertária numa situagáo social assinada pela licenciosidade em questóes de coni|»rtamento, por uma notável capacidade estatal de recuperagáo das invengóes refratárias ou pelo menos por uma inesgotável capacidade de "negociagáo" com estas invengóes, e na que as pessoas no raelhor dos casos estáo desorientadas e, no pior, dotadas de uma percepgáo cínica da vida social. Para imaginar as formas de luta do próximo futuro seria necessário identificar náo somente o rumor do mal-estar social em nossos dias, mas também se deveria dirigir o olhar para as transformagóes existenciais do século. A última memoria de lutas sociais transmitida á atualidade foi a das rebelióes juvenis dos anos 60, em especial suas facetas associadas ás mudangas subjetivas — o "parricidio de costumes" — e á música eletrónica urbana. Memoria que é transmitida, quase em sua totalidade, pela ordem midiática e pasteurizada, para torná-la compatível ás indústrias do ócio. É evidente que náo é o modelo da fome aquele que informa ás atuais geragóes no ocidente. O mal-estar político, porém, para poder desdobrar-se sobre um terreno social náo adubado ou trilhado pela imaginagáo hegemónica atual, precisa identificar novas formas de viver: contrapesos existenciais. Cada época contribuí com a historia da dissidéncia humana com um "contrapeso", individual ou coletivo, que balanceia o despotismo e a sujeicáo. O contrapeso "libertário" esparziu, ao longo de sua mais que centenária historia, práticas organizacionais e emocionáis: invengoes sociais. E assim com os prehistóricos inventaram a roda e a agricultura, os gregos o conceito e o teatro, e os primeiros cristáos o ideal de irmandade, assim também os anarquistas inventaram algo: o grupo de afinidade. "Invengáo" que ingressa no tipo superior das obras humanas, onde se acostuma incluir o jogo, a festa e a melodía.
A defesa anarquista da autonomía individual questionava a tradigáo da heteronomia eclesiástica ou estatal, mas o substrato existeneial que permitiu sua expansáo náo dependeu de uma idéia ou uma técnica, mas sim de sua articulagáo com práticas sociais que necessariamente eram culturalmente preexistentes ás teorías libertárias. Essas práticas vinham germinando na longa historia da experiéncia humana que antagonizou os usos hierárquicos. Para Marx — como também para aqueles que se empaparam da tradigáo anarcosindicalista —, a fábrica e o mundo imaginário do trabalho supunham um excelente cimento para uma nova sociedade. Mas outro foi o substrato existenoial no qual se enxertou o grupo de afinidade anarquista. Esse espago antropológico já comegava a germinar no século XIX e os anarquistas foram os primeiros em perceber sua silenciosa expansáo. Antes que a alianga sindicato-anarquismo estivesse bem consolidada (e já desde que os primeiros grupos de simpatizantes "da idéia" se organizaram no ampio círculo que o compasso ele Bakunin desenhou da Espanha á Besarábia) a prática grupal na qual as pessoas se vinculavam "por afinidade" concedeu ao anarquismo um trago distintivo, distanciando-o da centralidade vertical concéntrica própria dos partidos políticos democráticos ou marxistas, modelo que se incrusta no imaginário político tradicional. A afinidade náo só garantía reciprocidade horizontal, mas também, e mais importante, promovía a confianga e o mutuo conhecimento dos mundos intele-ctuais, emocionáis e hedonistas de cada um dos integrantes. Esta condigáo grupal permitía umamelhor compreensáo da totalidade da personalidade do outro, assim como de suas potencialidades e dificuldades. De onde provém o ideal dos grupos de afinidade? Talvez da tradigáo dos clubes revolucionários prévios á Revolugáo Francesa, ou dos "salóes literarios" que floresceram no século XVIII, e seguramente na longa época na que os grupos carbonários do século XIX experimentaran! a clandestínidade, condigáo de ¡mediato herdada pelo anarquismo; enfim, da tradigáo cía "autoclefesa" e da "conspiragáo". Também, talvez, dos usos e rituais magónicos, clos quais Bakunin era próximo, tendo sido membro de uma segáo italiana da franco-maconaria. Pense, por exemplo, na importáncia que teve a taberna (ou pub) na constituigáo da sociabilidade de classe nos primordios cía revolugáo industrial, ou o café público na construgáo da opiniáo pública liberal do século XIX, ou — para as sufragistas — os salóes que ampararan! uma nova figura social da mulher na metade desse mesmo século, ou os grupos de leitura entre os camponeses espanhóis no rom eco do século passado, ou ainda e atualmente, a plática de trocar "fanzines" entre adolescentes em idade ainda escolar em p ra cas públicas ou eoncertos de rock. As práticas de afinidade náo sáo, portanto, a prerrogativa do "local militante", mas a efusáo possível de experiencias afetivas compartilhadas pela coletividade.
A afinidade é o substrato social do anarquismo, mas um horizonte mais ampio acolhe o espago antropológico que é sempre favorável a ele e desde sempre recebe o nome de "amizadef. Variadas sáo as linhas genealógicas que se confluem no desdobramento moderno da amizade, tal como a conhecemos atualmente. Seria necessário agregar ao ideal clássico da philia grega o ideal da fraternidade revolucionaria. Um e outro insistirán! na igualdade posiciona! dos amigos e ñas agóes de "cuidado do outro". Durante o século XX, a amizade comegou a transcender a relagáo interpessoal e passou a ser uma prática social que transita sobre espagos afetivos, políticos e económicos antes ocupados pela familia tradicional, fazendo o papel de resguardo contra a intempérie a qual o Estado ou o capitalismo submetem a populagáo. A amizade supóe ajuda mutua, económica, psicológica, reanimadora, inclusive consultiva, e — eventualmente — política, transformando-se assim num tipo de tónico e numa rede fundante da sociabilidade atual. Ai de quem náo tem amigos! Carece entáo de uma das amarras que nos unem á vida e nos reconciliam com ela. A esta genealogía de práticas amistosas, deve-se incorporar a amizade entre mulher e mulher, entre homem e mulher, que foram propiciadas, como nunca antes, pelas transformagóes culturáis do século passado somadas ao desvanecimiento do "lar" como espago económico obrigatório. Cabe adicionar a elas a amizade entre homossexuais e mulheres, antes sustentada em certa clandestinidade e em certos guetos e hoje exposta abertamente. Talvez também cabe adicionar a amizade entre ex-casais.
Todas essas formas da amizade eram quase insignificantes no século XIX, ou seu raio de agáo era muito limitado. Muito mais que as viagens para o espago, Internet, o transplante de órgáos ou a penicilina, sao estes novos formatos da amizade as grandes inovagóes que devem ser creditadas no inventario do século XX.
O anarquismo foi o contrapeso histórico da dominagáo. Mas náo foi o único: também a socialdemocracia, o populismo, o marxismo, o feminismo e, inclusive, o liberalismo reclamam essa categoría. Mas o anarquismo foi a mais descarnada de todas as autopsias políticas modernas e a mais exigente de todas as propostas para superar o estado de coisas do século XIX. Justamente por ter escolhido um ángulo de observagáo táo vertiginoso, também o anarquismo se transformou — imperceptivelmente no comego, para seus próprios pais fundadores — num saber trágico. Pois descobrir que a hierarquia é constante histórica, peso ontológico e enraizamento psíquico táo imponentes, leva a admitir que seu desafio suscita pánico, como se tratando de renegar um deus olímpico ou abandonar para sempre a casa paterna. Os anarquistas sáo conscientes de sua própria desmesura conceitual e política. Suspeitam que seu ideal nasceu contra as leis da natureza, que poderia ter sido abortado, que a imaginagáo coletiva poderia náo té-lo como necessário. E o anarquismo, que passou por muitas fases lunares em sua historia (as fases carbonária, messiánica, insurrecional, anarcosindicalista, sectária, sessentista-libertária, punk, ecológica) precisa hoje de um mito da liberdade que seja "revelador" do mal-estar social e que dé a boa parte da populagáo um impulso de rejeigáo, tal como o desafio blasfemo e desculpabilizador empurrou os anarquistas contra a igreja, e o desafio anti-hierárquico ao negar a ordem estatal. Se continuará existindo "milagre da palavra", isto é, anarquismo, é porque ele pode vir a ser contra-senha para a esperanga coletiva e para lutas sociais libertas do lastro de modelos autoritários. O misterio da hierarquia cedería entáo sua opacidade a uma re ve la pao política.
resu mo
A presenta insistente do anarquismo no mundo atual é problematizada aquí como anomalía política e misteriosa que em suas muitas fases históricas tem questlonado constan te mente a perenidade e a vertica-lldade com que a hlerarqulzagao tem se apresentado aos povos. A inquietado anarquista frente ao drama histórico do poder e a invengao de sociabilidade como efeito da desmesura de lldar com a hlerar-quizacáo como sendo aperas uma das possibilidade» existenciais de um povo, acabam por transforma lo num saber trágico e como tal.
abstract
The Inslstenoe of anarchlsm in tlie present world is tnken in this artlcle as a political and mysterious anomaly that has been hlstorically questlonlng the inslstence vertlcallty that hlerarchy lias presented to peoples. The anarchlst uneasiness before the histoncal drama over power and the Invention of soclabllltlesas livlng practioes and exlstential posslhlllttes, ended up transforming it in a tragic knowledge, and being so, resüess and revealing of a deep dlscontent.
analíticas anarquistas do federalismo
natalia montebello 7
Com o fim da Segunda Guerra, o século XX redimensionou muitas das opinioes que fundaram, até entáo, as derrrarcagoes territoriais do Ocidente. Náo que a necessidade do Estado, sua forga ou sua soberanía fossem colocadas em questáo: podemos pensar que a territorialidade do Estado ganharia novos contornos, talvez mais elásticos ou dinámicos, ou xnelhor, rnais federativos. Quando Winston Churchil propóe, em setembro de 1946, a idéia de Estados Unidos da Europa, enuncia uma urgencia que seria a marca da política deste continente em toda a segunda metade do século. Século que se en cerra cronológicamente, mas que, ao contrário, abre-se politicamente com a discussáo federativa como urgéncia que perpassa nomes e nagoes, e se potencializa planetariamente, assim como o século XVIII fechou com o federalismo norte-americano.
Longe de anunciar a ineficacia das fronteiras bem
tragadas de territorios e/ou, ideologías, o segundo grande espetáculo da guerra entre os modernos Estados nacionais pós em prática justamente a forga dos governos que surgern do interior dessas fronteiras, anunciando, sim, a multiplicagao exponencial que se imprime na forga do Estado quando a ciencia abre o caminho da tecnología a servigo da violencia sistemática e legítima, que é a prerrogativa do Estado.
Temos aqui uma problemática, a do Estado, apresentada pelo ponto de vista da crítica anarquista, ou melhor, anarquizante: aquela que questiona o Estado abandonando as preocupagóes de grau e privilegiando as analíticas dos eíeitos, que resultam sempre em submissáo. E falo de submissáo ao pensar na repetígáo, por consentimento expresso ou omissáo, do principio de universalismo que se expressa como necessidade do Estado. Chamo de pensamento anarquizante em relagáo á problemática do Estado aquele pensamento que investe, como filosofía política, na afirmagáo de práticas libertarias, prescindindo, antes de mais nada, da universalidade do próprio pensamento, questionando o pensar que consagra esta ou aquela necessidade do Um — qualquer um — que fala por todos.
Ñas linhas que seguem, apontarei para tres problematizagóes possíveis, escolhidas por pura vontade, mas segundo a nogáo de série, analítica apresentada por Proudhon como pensar náo universalista e náo centralizador. Pensar federativo sobre o federalismo...
Minhas palavras provém de afinidades, aqui, de trés textos. O principio federativo, também de Proudhon, Investigando sobre ajustica política, de William Godwin, e Discurso da servidáo voluntária, de Etienne de La Boétie. Estas afinidades sáo possíveis pela série, que combina unidades analíticas, náo por continuidade cronológica, ou mesmo por relagóes estabelecidas pelos próprios autores, mas por conexóes que buscam problema tizar, nunca demarcar territorios teóricos. Problematizar para abandonar fórmulas que prometen! solugóes segundo este ou aquele padráo, abandonando, assim, qualquer síntese de contrarios como solugáo última a se esperar.
Torno de La Boétie a negagáo do Um para combiná-la, neste ensaio analítico, cotn o pensar de Godwin e Proudhon sobre o federalismo. Seu contra o Um dissolve o imperativo da obediéncia universal, assim como em Godwin e Proudhon o incómodo que a universalizagáo da obediéncia provoca resulta em investimiento para pensar a política — ou também para pensar o pensar da política — pelo ponto de vista da federagáo descentralizada. Godwin e Proudhon, por sua vez, náo nos oferecem nenhuma fórmula do tipo "a maneira anarquista de pensar o federalismo"; náo se trata disto. Há, nestes trés autores, uma interrogagáo contundente á unicidade que deriva do Estado centralizador, interrogagáo esta que em La Boétie se desdobra na afirmacáo da vida sem o senhor, assim como em Godwin e Proudhon desdobra-se em descentralizagáo federativa.
Quando lauco máo da analítica da série, opero numa extensáo de pensamento que é, antes de tudo, descentralizada, horizontal e localizada. Extensáo descentralizada, porque a série náo aponta para problemas e solugóes universais, irías para p roble matiza góes específicas; horizontais, na medida ern que dispensa as profundidades ideáis; e, portanto, também localizada, uma vez que a série náo tem validade para alérn do seu ponto de vista. A própria nogáo de ponto de vista nos remete náo só á localizagáo, mas também á superficie, a diferenga da profundidade teórica, o que novamente interrompe qualquer universalizagáo.
Assim, a série reclama por nogóes com as quais pensamos locaiizadamente — ou dispensando a dimensáo universal. Opero com nogóes que remeten! á visibilidade permitida pelo ponto de vista. Nao que o ponto de vista imponha um ponto final, ou mesmo anuncie uma solugáo definitiva. Nem solugáo, muito menos definitiva, nem ponto final: ao se propor uma série, propoe-se uma possível problematizagáo, um olhar direcionado a um problema, e o resto estará sempre por ser pensado.
A série proposta, que chamo de "náo ao Um", descreve uma extensáo do pensamento político que interrompe a continuidade do argumento da necessidade do governo universal. Por governo universal, entendo o governo centralizado, fundado na obrigatoriedade da obediéncia á lei, tanto da lei que deriva cía vontade cío príncipe, como da lei que deriva da vontade geral. A interrupgáo da continuidade cío governo é dimensionada, nesta série, como federalismo descentralizado. E, na medida em que o federalismo descentralizado tracluz a clissolugáo cía relagáo entre autoridade institucionalizada e obrigagáo de obediéncia, podemos entender os efeitos deste federalismo como uma extensáo de afirmagáo e crítica anarquista.
Meu interesse, entretanto, náo me leva a pensar o anarquismo como discurso que responde modernamente á existencia do governo pela supressáo deste e pela afirmagáo de um conjunto de nogóes que possibilitam espagos de liberdade. Interessa-me pensar o federalismo descentralizado como proveniéncia moderna do anarquismo e, sinalizar que o anarquismo se atualiza em práticas descentralizadas e federativas.
Na série devem ser encontradas as unidades com as quais seráo propostas combinagóes, no que se chama de razáo ou relagáo entre elas, segundo o ponto de vista. Se a série é o "náo ao Um", como interrupgáo ao argumento da necessidade do governo, e o ponto de vista é a afirmagáo cío federalismo descentralizado, como ampliagáo progressiva de espagos de liberdade, resta encontrar as unidades e as combinagóes.
As unidades da série, na ciencia da política, sáo, diz Proudhon, seus clois principios: autoridade e liberdade.
Se esta ciencia é potencializada, através da metodología serial, por dois únicos principios, o mesmo Proudhon quebra a delimitagáo pela possibilidade infinita de combinagóes destas duas unidades. Isto é, se combinamos os principios de autoridade e liberdade, numa extensáo que é mostrada pelo ponto de vista federativo, vemos que é a nossa escolha de combinagóes possíveis o que determina a extensao da série, ou melhor, o que nos oferece as demarcagóes dos mapas. Desta maneira, observamos que, por responder ao governo como continuidade, portanto lógicamente, a nossa série dialoga tanto com o que podemos entender como extensóes de autoridade, como com extensóes caracterizadas pela preponderancia do principio de liberdade.
A nogáo federativa, no interior da analítica proposta, responde ao governo, á geografía, unitaria ou federativa, que resulta de sua soberanía. Privilegiar o diálogo, ora com uma série que investe no principio de autoridade ora com outra que investe no de liberdade, náo é mais do que o resultado de uma escolha. Mesmo considerando a nogáo progressiva da agáo do principio de liberdade, mostrada por Proudhon em O principio federativo, no próprio texto, Proudhon também dissolve as divisóes convencionais entre tipos de governos ou regimes, apontando para o que ele chama de defesa fanática de uma pureza de idéias que náo existe na aplicagáo, e mostrando que chamar um governo de monárquico ou democrático náo é, na maior parte das vezes, mais do que uma eonvengáo.
O mesmo pederíamos encontrar na Justica. política, redimensionando a discussáo pela ótica da moral, onde, ao mostrar que o governo é sempre a cristalizagáo de um erro — ou a institucionalizagáo de uma injustiga — , Godwin dialoga tanto com concepgóes conservadoras do governo — e neste caso Burke é seu interlocutor preferencial —, como com concepgóes que investem na ampliagáo de liberdades civis, como é o caso de Paine e os Federalistas, Rousseau, Montaigne e Locke, igualmente interlocutores privilegiados de Godwin — como também depois de Proudhon.
Outras combinagóes? Conectar o "nao" de Boétie ao tirano — que abre as portas da Renascenga — com o náo ao governo que se debruga sobre as Revolugóes Americana e Francesa, em Godwin e Proudhon, dentro de uma cartografía federativa, que, mais uma vez, náo investe ñas origens, ou no tragado continuo e necessário que surge da interpretagáo sobre as origens. La Boétie, Godwin e Proudhon guardam afinidades, no interior das diferengas, dentro de um discurso no qual o "náo" — demoligáo — é afirmagáo de liberdades.
É, entáo, dentro desta extensáo do pensamento libertário, onde o pensar anarquiza o pensamento, que a política torna-se vital, dispensando instancias e reivindicagóes de ampiiagóes de direitos, assim como reformas ou trocas de nomes para preservar o mesmo. Ao pensar o federalismo descentralizado, langando máo do "náo ao Um", xnostra-se que este pensar náo é uma saída teórica que responde a uma discussáo de época ou de continuidades e sínteses conceituais, mas sim uma problematizagáo pertinente a afirmagóes de universalismos, possível, no pensar político, corno extensáo horizontal e descentralizada, que reclama por vontades interessadas em afirmar liberdades recíprocas.
Na série, entáo, nao se discutem totalidades, de idéias ou de obras, mas, novamente, algumas combinagóes das suas unidades que permitem verificar o ponto de vista proposto. Qual será o nosso ponto de vista? Queremos saber qual o percurso que nos permite afirmar o federalismo descentralizado como resposta política que interrompe a continuidade do governo como necessidade, principalmente ñas extensóes ñas quais é possível preservar o argumento da necessidade do governo quando este é considerado um mal necessário.
Devenios ainda observar que esta extensáo do anarquismo náo recorre á luta revolucionária, e a entendo, portanto, como proveniéncia pacifista do anarquismo e, em especial, do federalismo anarquista. La Boétie o dissera claramente: ao tirano náo é necessário derrocar, enfrentar, enfim, resistir pela forga, basta deixar de obedecer, basta querer náo mais servir. Se, ao mostrar o funcionamento da servidáo, o que La Boétie descreve é a agáo da vontade de todos, dos cinco sentidos de todos, prolongando e infiltrando o poder do mais fraco dos homens, o tirano, bastaría deixar de prestar este servigo para ser livre; sem a vontade de servir, a dominagáo do tirano é inviável.
Godwin tem por intengáo, ao escrever Enquiry Concerning Política!. Justice, pensar a problemática do governo como assunto de argumento e demonstragáo, e mais, como assunto que deve ser sempre submetido á discussáo de todos. Ao pensar as revolugóes, sua intengáo náo faz mais do que prolongar-se: as revolugóes devem ser revolugóes, antes de mais nada, de sen timen tos e disposigáo, provenientes do uso da razáo, nunca da violencia. A intensidade de urna revolugáo no pensamento é inversamente proporcional á violencia cía luta revolucionária. Pelo pensar os homens aproximam-se da verdade — é o que Godwin entende por capacidade, própria a todos, de aperfeigoar-se —, pelo erro da violencia.
Se há alguma coisa que possa ser chamada de verdade, cliz Godwin, ela eleve ser superior ao erro. O erro, por sua vez, é minimizado ou evitado no terreno cía ciencia, isto é, pelo uso ininterrupto da razáo. Logo, para revolucionar o presente nos sugere trés verbos: "escrever, argumentar, discutir"; que opoe a trés substantivos: "indignagáo, furor, odio". Assim, á razáo, exercitada pela livre e ampia discussáo, Godwin opoe a violencia. Avisa-nos, ainda, que "quando descendemos do terreno da luta violenta, abandonamos de fato o campo da verdade e langamos o resultado á sorte e ao cegó capricho. (...) No bárbaro fragor cía guerra, do clamoroso estrépito das lutas civis, quem poderá predizer se o desenlace será miserável ou venturoso?"1
Godwin e La Boétie buscam a afirma gao de espagos de liberdade que prescindem da reivindicagáo por serem "naturais" ou "lógicos", muito mais do que discorrer sobre o problema da lula revolucionaria, Estáo interes-sados em afirmar, náo em derrocar. Da mesma maneira Proudhon, nao tanto pela sua consistente crítica ás revolugóes — principalmente á Americana e á Francesa —, mas sirri pela afirmagáo de liberdades que perpassa sua filosofía o faz descartar, primeiro da lógica, a luta revolucionária. A ampliagáo progressiva da liberdade, efeito potencial de seu método, é uma clara resposta á violencia, mesmo que supostarnente libertadora, das lutas revolucionárias. Se tomamos de Proudhon, ainda, suas palavras sobre as rnais espetaculares revolugóes de seu tempo, vemos que sua crítica dirige-se ao que pode ser considerado como sua iniqüidade: o senhor-rei cedeu lugar ao povo-rei. Como Godwin, Proudhon também relaciona o resultado de uma revol iigáo ao tanto de pensamento e discussáo que a antecede. A aposta na política-ciencia o leva, em O que é a propriedade?, a diferenciar "progresso" de "revolugáo", e reforma de mudanga.
Quando, no final do século XVIII, William Godwin encontra na historia a repetigáo da violéncia e da guerra, responde á violéncia e á guerra com a supressáo da forma política que llies dá continuidade: o governo. O alvo de Godwin: a inquestionada associagáo entre autoridade institucionalizada e obediéncia universal. Constata que a historia dos governos é a historia do crime, corno ameaga e como castigo, ou a historia da violéncia sistemática enquanto efeito da prerrogativa do Estado de garantir a seguranga das vidas e da propriedade privada. Diante desta constatagáo responde com a interrupgáo do argumento da prevengáo geral, que transforma o Estado em máquina de violéncia, sendo que minimizar os perigos da violencia é a atribuí gao ontológica do Estado. Se o Estado é o produtor universal da violencia que ele deve eliminar, operar no seu interior para deter os efeitos indesejáveis de toda sua auto-suficiencia é, no mínimo, um lírico exercicio de candidez— poderia muito bem ser, no entanto, o cálculo estratégico de adogar estes efeitos para preservar as vantagens.
Se Godwin escancarou a injusta institucionalizagáo da violencia no governo, sua preservagáo ñas opinióes que o considerara necessário e a preservagáo, novamente, destas opinióes, como reveréncia ao passado, Etienne de La Boétie, escancara o acaso, o raau encontro que dá sentido ás palavras "tirano" e "súdito", dissolvendo uma na outra. O próprio percurso da Servidáo voluntária nos mostra como "tirano" náo é antónimo de "súdito" e vice-versa, como náo há oposigáo ou exterioridade que delimite governo e governados: há urna progressáo geométrica que relaciona um a dez, dez a dez mil, dez mil a milhóes... e, assim, náo havendo uma origem que explique e que, portanto, permita pensar medidas, há um acaso que determina uma medida: o governo é sempre absoluto. Diante do acaso e de sua totalizagáo, La Boétie irrompe com a insubmissáo, com náo mais servir, de onde as relagóes devem ser inventadas entre iguais.
Nesta desobediencia, mais do que urna negagáo do tirano, há uma afirmagáo que desobedece ás palavras: náo há til-ano melhor ou pior, mas também nao há súdito mais ou menos subjugado. Simplesmente, náo havendo servidáo, náo há tirano, náo há súdito. Desta maneira, se é terrível que o tirano seja o ponto de vista que descreve o súdito, é igualmente terrível que o cidadáo seja o ponto de vista que descreve o governo.
Godwin, no século XVIII, e anteriormente La Boétie, no XVI, disseram claramente que o governo náo percle forga nenhuma, eficácia nenhuma ou violencia nenhuma quando se tenta, mesmo que benevolentemente, redimensioná-lo, atualizá-lo, suavizá-lo, humanizá-lo. Entenderam que o governo se prolonga em si mesmo, se refaz e se atualiza. Ou melhor, entenderán! que é o governo, a institucionalizagáo da violencia, aquilo que transforma a violencia em necessidade de governo.
Por que se preserva o governo? Porque muitos tiram muitas vantagens disto, diría La Boétie, e porque os homens nem imaginam que podem querer, que bastaría querer para náo ter um tirano. Bastaría um "náo" lógico ao governo. Por que os homens nem imaginam que podem viver sem governo? Porque náo pensam, escrevem e discutem sem pensar o governo a náo ser como uma necessidade, diría Godwin. Aqui, um "náo" moral.
Podemos, entáo, perguntar: é possível pensar, escrever e discutir descartando a oposigáo tirano-südito? Ou antes: quais sáo os efeitos desta oposigáo que aprisionan! a imaginagao e o pensamento entre as palavras? Respondendo a esta pergunta, diría que resulta, da oposigáo, uma centralizagáo: do tirano sobre os súditos, no tempo de La Boétie, ou dos cidadáos sobre o governo, no tempo de Godwin, mas uma náo difere da outra. Monarquía ou democracia: há sempre um lugar, institucionalizado, para colocar a própria vontade. Tiranía ou governo representativo: há sempre uma voz que fala por todos. Do século XVI até a primeira metade deste século, a voz e a vontade ecoaram em territorios que prometiam, com certa tranqúilidade, a paz e a prosperidade geral.
Acreditou-se, neste tempo, que os problemas colocados pelo territorio, problemas políticos e económicos evidentes, seriara resolvidos pelo dimensiona-mento do territorio. Encontrou-se, assim, uma equagáo: repúblicas pequeñas para a paz e a ordem internas, repúblicas grandes para a forga política e económica. Esta equagáo, que modernamente é republicana e federalista, colocou definitivamente em discussáo um tema que, a despeito da coincidencia das palavras (Estados Unidos, da América, no século XVIII; e da Europa, no XX) se mostra insuficientemente pensado.
Europa, na segunda rnetade do século XIX, escuta novas palavras libertarias: a teoria sobre o governo federal nao tinha sido nunca pensada. Se entendemos isto como nao foi satisfatoriamente ou suficientemente pensada, hoje ainda nos fazemos esta pergunta: o federalismo foi, ou é hoje, suficientemente pensado? Proudhon potencializa o "náo lógico" de La Boétie e o "náo moral" de Godwin, desenliando um pensamento moderno.
Depois da Segunda Guerra, a promessa da paz e a prosperidade geral tornou-se a grande incerteza, frente á missáo do governo: garantir a seguranga, interna, dos cidadáos, e externa, da nagáo. Quando, em 1788, os norte-americanos resolverán! a equagáo da seguranga — que devia resultar em paz e prosperidade —, pela insergáo da variável federativa, redimensionaram a centralizagáo, preservando o governo ao eliminar os perigos que territorios isolados, grandes ou pequeños oferecem a sua continuidade. A revolugáo em nome do governo constituiu os Estados Unidos da América. Pouco mais de 1 50 anos depois, a Europa teria que reavaliar os perigos que a forga — também autodestrutiva — de seus territorios isolados oferecia diante da promessa de paz e prosperidade. Churchil propóe os Estados Unidos da Europa. Até hoje, sabemos muito bem, náo houve governo que pudesse oferecer, tranquilamente, a promessa de paz e prosperidade, mas sucessivas federalizagoes de territorios isolados tornaram-se a única saída diante do aniquilamento económico e o único refugio, mesmo que frágil, diante da guerra.
A supranacionalidade que caracteriza o internacionalismo deste meio século náo parece ter incorporado a dúvida diante da centralizagáo: a palavra, "supranacionalidade" já é uma descrigáo eloqüente do dimensionamento das urgéncias políticas e económicas que surgem do interior de territorios demarcados pela continuidade do governo. O prefixo potencializa o conceito: o intervencionismo, na política e na economía, parece ser a tradugáo mais acabada da promessa que o Estado moderno náo esquece. Todos devem ser iguais, todos devem associar-se — ajustar-se —, e aqueles que náo prosperen! e que insistam no confronto bélico seráo castigados pelo isolamento.
Da mesma maneira, reivindicar o isolamento náo é mais do que aniquilamento romántico que apenas poderia satis fazer ideologías. Assim, entre a fecleracáo e o isolamento de territorios centralizados, voltamos á pergunta: é possível pensar, escrever e discutir descartando a oposigáo tirano-súdito? Pensamentos anarquizantes perpassam de múltiplas maneiras esta pergunta. Anarquizantes: pensar sem o governo é uma maneira de pensar que náo presta contas nem ás demarcagóes políticas e económicas, nem tampouco ás históricas, que conformam territorios, confinando inteligencias e talentos em servidóes voluntarias que perderam a imaginagáo.
Náo ao Um, tirano ou governo, é uma proveniencia anarquista que dissolve, e náo divide, fronteiras artificiáis. Neste sentido, Proudhon, Godwin e La Boétie, a despeito de historias de idéias, pronunciaran! verdades que aínda hoje continúan! insuportáveis para um mundo que insiste em destilar prefixos para as totalizagóes que confinan! em nome da paz e da prosperidade.
Pensamentos anarquizantes tem respondido a confinamentos terrítoriais de toda índole. Se o federalismo é o tema que perpassa a solugáo norteamericana á continuidade do governo, encerrando o século XVIII, o internacionalismo do final do século XX mostra que o tema náo foi ainda esquecido, e que é maior do que as cronologías.
O federalismo, modernamente, foi em primeiro lugar a resposta republicana ao problema do tamanho do territorio em relacáo ao tanto de liberdade civil, isto é, de garantía de seguranza individual e nacional, que governos inspirados na vontade geral poderiam oferecer. Por sua vez, a interrupgáo anarquista á continuidade do governo se torna federativa ao dispensar a autoridade central, afirmando que esta nao é necessária.
Estas duas extensóes federativas da política sáo, também, uma resposta ocidental, náo só á monarquía ou aos governos antigos, mas a um problema que a antigüidade náoconhecia: a populagáo. A populagáo, náo só por seu acelerado crescimento potencial, mas por seu acelerado e, também, potencial tránsito, tornar-se-ia uma forga política que dividiría o pensamento entre aqueles que equacionavam a forma de pacificá-la e aqueles que a entendían! como uma forga que devia, de fato, atualizar-se.
No primeiro caso, deu-se á populagáo a cadeira do rei, o trono. E assim separa-se, na política, o mundo antigo do mundo moderno: o argumento da vontade geral corno fundamento do governo. Preservando-se o trono, p reservón-se também a forma circular da soberanía: a vontade geral antecede á lei, que funda o governo, que deve resguardar e executar a vontade geral. Para tanto, o governo tem a prerrogativa da forga e os cidadaos a prerrogativa da obediéncia á lei. Chama-se a isto liberdade civil. Nada mais elucidativo a este respeito do que a frase que Thomas Paine pronunciara alguns meses antes da independencia norte-americana: assim como nos governos absolutos o rei é a lei: nos países livres a lei deve ser o rei.
A vontade geral torna-se, desta maneira, a atualizagáo do rei e, quando a política se dispoe a come-morar a preservagáo do governo, o aumento da populagáo coloca novamente em serio risco o principio do governo: a medida que a república aumenta, a vontade geral, seu fundamento, torna-se mais dispersa, e o bem comum, sua missáo, mais comprometido. Da mesma maneira, quanto menor a república maior a possibilidade de um ataque estrangeiro, o que evidentemente também compromete o bem comum. Como solucionar este impasse? O que Locke anunciara como poder federativo, Montesquieu assentara como república federativa, e os Estados Unidos, pouco mais de vinte anos depois do pronunciamiento de Paine, consagraran) corno revolucáo em nome do governo. Tudo coerente, entretanto, com Paine — basta lembrar que o grande argumento a favor da república federativa, apresentado por Montesquieu, é a fórmula que conjuga a forga da monarquía com a liberdade da república.
A república federativa se mostrou a resposta moderna mais consistente ao problema do territorio, quando este representa urna anieaga á vontade geral. E de fato o é, sempre que as demarcagóes geopolíticas resguardem as fronteiras que instauram e preservara a necessidade do governo. Também tbi a equagáo mais acabada da continuidade do governo. Mas quando o governo é interrogado em seu principio, estas fronteiras lógicamente se dissolvem e deslocam o problema, náo mais para o tamanho do territorio, mas para o conjunto de opinióes que fundamentara este territorio corno demarcagáo legítima de fronteiras. Desta interrogagáo, resulta uma demarcagáo arbitrária, que está na base da obediéncia irrestrita e eterna á lei.
O anarquismo responde á máxima da necessidade do governo sobre todos, seja este do rei ou da lei — do povo. Mostrando a continuidade entre um e outro, desliza-se da historia para a lógica para demonstrar, como o fizera Gcxlvvin, que todo governo é fundado em opinióes. Nada mais do que opinióes.
Mais do que dissolver territorios centralizados, o pensamento anarquista dissolve, com a mesma intensidacle, territorios de saber que, langando mao de verdades inexplicáveis, centralizara o discurso da ciencia que mais interessa aos homens, a política. Ao escrever a Jusliga política, Godwin submete ao exercício da demonstragáo e da argumentagáo as opinioes que fundam o governo. Dirige-se ao governo para interrogar tanto a reagáo conservadora diante da Revolugáo Francesa, quando Edmund Burke faz a apología da monarquía, quanto o entusiasmo liberal que precederá a Revolugáo Americana com Locke, Montesquieu e Rousseau, e que a acompanhara com Paine e os Federalistas. Godwin responderá a este entusiasmo provocado pelo mundo novo, dissolvendo a necessidade de pensar a liberdade do ponto de vista do governo, investindo, portanto, contra os efeitos deste ponto de vista na política. Responde particularmente á afirmagáo de Paine sobre o governo, que pode ser sintetizada na expressáo de que qualquer governo é, em última análise, um mal necessário, de onde restaría apenas dimensioná-lo segundo o maior bem que se possa extrair de sua inquestionável existéncia — e dimensionar, também, as formas institucionais de controle ou preservagáo deste máximo de bem.
Relaciono assim o percurso de Godwin, ao mostrar a continuidade da obediéncia, tanto a La Boétie, que dissera, no século XVI, que para náo ter um tirano bastaría náo rnais servi-lo, corno a Proudhon, que trés séculos depois investiu náo na interrupgáo da continuidade da voirtade do senhor, mas no federalismo descentralizado como interrupgáo libertária da continuidade do governo na modernidade, afirmando a potencializagáo da agáo do principio de liberdade, em detrimento do principio de autoridade. De certa maneira, o pensamento de Godwin preparou uma extensáo na qual o federalismo descentralizado encontraría ressonáncias no que a historia das idéias chama de anarquismo. Mas esta extensáo, se vista pela negagáo ao poder do Um, dá visibilidade a uma afirmagáo que transborda as leituras cronológicas: afirmagáo de que os homens podem inventar suas relagóes, e que para tanto contam com sua razáo, seu talento e sua vontade. E mais: que nunca urna autoridade universal poderá dizer, e ao dizer ordenar, de que maneira cada um deve viver. Extensóes de liberdade que se abrem no pensamento político, se projetam, pelo anarquismo, como resposta federativa diante de qualquer centralizagáo.
Mas o anarquismo náo é um decálogo — tanto faz se teórico ou religioso — que diz de que maneira viver melhor; mesmo porque a vida, assim como sua negagáo sistemática e legitimada na forma do governo, náo aponta para uma discussáo de grau ou intensidade. Ao contrário, ao pensaren! a política como argumentagáo e demonstragáo, Godwin e Proudhon imprimirán!, na política, seu federalismo: isto é, sua forma de proferir náo ao Um.
Afirmagóes de federalismo descentralizado ou de sociedades sem senhor interrompem toda urna série de verdades que muito bem poderíamos ver como demarcagóes da obediéncia irrestrita á lei. Numa guiñada lógica que sempre nos surpreende por sua forga, La Boétie desmonta a legitimidade do senhor, deixando em evidencia apenas o que esta tem de acomodagáo ou conveniencia. Tanto Godwin como Proudhon pensaram em seus detalhes as idéias que consagraran! a necessidade do governo. Nos mostraram, certamente, uma historia da violencia sistemática e do pensamento complacente, Mas muito mais do que mostrar a invalidade destas idéias, investirán! na deseentralizagáo federativa como extensáo do pensamento político que náo se amolda ao universalismo e a qualquer um de seus qualifieatives de ocasiáo. O Um, senhor ou governo centralizado!- desta ou daquela vertente, desvanece pelo gesto irreverente que o entende apenas como "mais um".
Nota
1 Wlilliam Godwin. Inveságaáon acerca de la jusááa política y su rnjlumáa en la virtud e la. dicha generales. Buenos Aires, Editorial Americanale, 1945, p. '123.
resumo
Para equacionaro federalismo no interior de uma analítica anarquista, afirmacoes de La Boétie, Godwin e Pioudhon sao combinadas, segundo a nogáo de série, proposta metodológica apresentada por este último. Assim, desenha-se uma série que investe na negagao da autoridade central como Imperativo universal, em nome de qualquer bem. Senhor ou tstado, súditos ou cidadáos, tanto faz. Questlona-se, cronologías a parte, a necessidade do IJm. lima resposta possível: o federalismo deseen tralizado.
abstract
ln order to think federalism into an anarchistanalysis,claims from La Boétie, Godwin and Proudhon are combined accordlng to the conceptof theories bnilt by tlie latter. Thus, it is possible to come up with a theory tliat denies central autliorityasan universal imperative, on behalf of anyone. Lord or state, subject or citizens, it does not matter. The necessity of tlie OME isqueslioned apart from chronologies. An answer is possible: decentrallze federalism.
quando o sol penetra no dia dá um dia de sol muito bonito muito belo
Stela do Patrocinio
a dialética da autoridade e da liberdade
paulo-edgar cdmeida resende8
Fierre Joseph Proudhon. Do Principio Federativo. Sáo Paulo, Ed. Imaginario, 2001, 134 pp.
Esta obra trata do Federalismo enquanto principio geral de reorganizado revolucionária da sociedade. Toda a reilexáo tem como eixo a dialética da Autoridade e da Liberdade. Por autoridade entendam-se as soberanías, embasadas na tríplice transcendencia: do Estado sobre a Sociedade, do Capital sobre o Trabalho, da Religiáo sobre a Mente. Por liberdade o movimento de ultrapassagem da sociedade do capital pela sociedade do trabalho, do regime governamental pelo regime económico, da revolugáo política pela revolugáo social; cío socialismo estatal pelo socialismo libertário. Tratase do cerne teórico de toda a sua produgáo posterior. Diante da crítica radical ao Estado em suas obras anteriores, Proudhon se coloca cliante do horizonte mais ampio das relagóes entre povos. A federagao se apresen ta como forma de contrabalangar a liberdade e a autoridade. Isto se torna possível na medida em que Proudhon, ao invés de aprisionar seu raciocinio no par Estado-Mercado, aprofunda sua reflexáo sobre as lutas contra a desigualdade económica, coroada pelo autoritarismo em nivel político. Concebe a federagao como rede de associagóes autónomas, com interesses comuns.
A sociabilidade nos clássicos da antiguidade tendía a ser naturalizada. As posigóes estruturais do escravo e do amo, do servo e do senhor seriam pré-ordenadas na nascenga. A explicagáo da desigualdade nos clássicos da teoría política da modernidade, chega a Proudhon historicizada, mas como unificagáo, unidade precária, á base do contratualismo ou da dicotomía hegeliana entre entendimiento corporativo no nivel da sociedade civil e razáo universal do bem comum, acessível apenas do ángulo estatal. É uma sociabilidade sujeita a desfazer-se e a refazer-se, sempre a daño dos que, na correlagáo de forgas, encontram-se sem o controle da produgáo. O raciocinio de Proudhon se torna cristalino: se náo há a pré-ordenagáo da sociabilidade hierarquizada, se náo vigora o arranjo de natureza, se a desigualdade náo é fenómeno natural, a questáo do poder económico e político tem de ser apreendida em sua realidade histórica. Por esta trilha, desvela as relagóes da política e da economía na sociedade capitalista do século XIX.
A unidade de objetivos entre os desiguais no interior do Estado nacional é problematizada. A partir do movimento operário revigorado pela revolugáo industrial e a urbanizagáo, a idéia libertária da insuficiencia da política e dos limites do pacto social, na sociedade do capital, consubstanciam-se as potencialidades da sociedade do trabalho. Passa pelo crivo de sua crítica á Revolugáo Francesa, que proclama o advento da igualdade, da liberdade, da soiidariedade. Mas ela se esgota nos formalismos de participagáo.
Deixa como legado a autoridade, e náo consolida a sociedade, antes se esmerando no seu governo. O movimento revolucionario esterilizou-se ñas consti-tuicoes políticas. O nivelamento dos individuos pelo sufragio universal deixa intacta a náo reciprocidade social. O povo sobe um degrau na ordem político-institucional, mas permanece a inferioridade do trabalho em relacáo ao capital. Longe de pura e simplesmente desqualificar o processo desencadeado pelas Revolugóes burguesas, Proudhon anota a queda da venda monárquica dos olhos do povo, que se depara com a grande contradigáo de participar da soberania política e permanecer subjugado económicamente.
A revolugáo deverá entáo gestar o regime económico, superando o seu contrário, o regime gover-namental. O revolucionário terá sobretudo de lidar com as contradigóes do presente, sem o afá de ter o futuro aprisionado numa ordem de idéias que o enclausure. Ninguérn será capaz de ser portador de um projeto pronto para ser implantado, formulado por vanguardas iluminadas. O que cabe é detectar o movimento da historia a cada passo. E 1848 revela a consciéncia mais desenvolvida dos trabalhadores, que se defrontam com duas correntes de opiniáo: o sistema comunista governamental e o sistema mutualista proudhoniano.
No sistema comunista governamental a comunidade uniformizada é concebida sob a influéncia do próprio preconceito da propriedade. A comunidade é proprietária náo só dos bens, mas das pessoas, das vontades. Tudo é propriedade do Estado. O movimento operário é cooptado pela burocracia opressora que resta-belece a autoridade e anula a liberdade. A diferenga entre o sistema capitalista e o sistema comunista estatal está no fato de o sistema de propriedade e suas vantagens mudar de enderego, com exclusáo em ambos os casos, dos produtores.
O revolucionário náo visa a purificar o capitalismo, como tampouco opta pela profilaxia do Estado. Tendo como forma e conteúclo de sua agáo o trabalho, convéncese que antes de qualquer tipo de convengáo, os trabalhadores se assoeiam na produgáo. Antes mesmo da legislagáo, da administragáo que centralizara o processo decisorio, impondo disciplina e obediencia, a sociedade se constituí de várias formas pela dinámica económica e é neste nivel que se desvela seu formato, seu significado. Ñas duas situagóes anteriores do capitalismo e do estatismo, o coletivo é entregue pronto de modo transcendente.
No sistema mutualista, a iniciativa da ordem coletiva se constituí sem apelo a instáncias superiores, prescindindo de qualquer tipo de delegagáo, que ratifique a verticalizagáo das relagóes. A recuperagáo do coletivo pela mediagáo do trabalho realiza a liberdade dos produtores, no sentido da autogestáo, em lugar da heterogestáo. Constitui-se, assim, no nivel económico a Federagao agrícola-industrial.
Ao mutualismo autogestionário, em nivel económico, corresponde o federalismo descentralizador no nivel político, o oposto da hierarquia ou centralizagáo administrativa e governamental. A federagáo se ancora na autonomía das unidades federadas, com articulagáo náo burocrática. A era constitucional da razáo de Estado é chamada a ser superada pela era da Federagao política ou da Descentralizando. Na diregáo contraria ao Estado nacional, de diregáo centralizada, Proudhon detecta, no movimento histórico, a alternativa da Federagáo progressiva que leva á confederagáo de regióes, de provincias, com fluidez de fronteiras, delineadas e modificadas á medida que o desenvolvimento social o postule, sem sobrepor-se como marco limitador.
Em resumo, na república de Proudhon, a liberdade ó elevada á potencia trés. a autoridade é reduzida á sua raíz cúbica.
visoes do estado andredegenszajn9
Frank Harrison. The Modern State. Montréal, Black Rose Books. 1983, 227 pp.
(...) por mais profunda que seja. a perda da. liberdade. nunca está perdida o bastante, nunca se acaba deperdé-la
Pierre Clastres
Frank Harrison apresenta em seu livro um panorama sobre o Estado moderno. Apesar de ter sido escrito há quase duas décadas, mostra-se mais atual do que a maior parte das análises contemporáneas sobre o tema. Harrison constrói sua argumentagáo a partir da perspectiva da resistencia ao Estado, através das múltiplas correntes do pensamento crítico. Conceitos como propriedade, revolugáo, poder e liberdade sáo discutidos a partir das concepgoes de diversos autores e tendo como paño de fundo o debate entre socialistas e anarquistas.
Esta náo é uma obra imparcial ou isenta. E náo pretende ser. O subtítulo do livro, an anarchist analysis (uma análise anarquista), explícita a abordagem e a crítica que o autor desenvolve. O livro de Harrison adquire maior releváncia neste momento em que críticas e contestagóes parecem ser absorvidas pelo conservadorísimo dominante, que nutre uma falsa esperanga de um novo mundo reconstruindo o que já está colocado. Faltam espagos para reflexóes que radicalizem a crítica e procurem buscar possibilidades além daquelas que nos sáo apresentadas — das cédulas aos recdity shows.
The Modern State é um livro da Black Rose Books,
editora canadense que publica, desde 1970, livros críticos e con testadores no campo das ciencias humanas. Longe de ser uma editora comercial, a Black Rose Books é um projeto editorial que contribuí para o debate crítico a partir de novos pontos de vista e referenciais. Em um contexto no qual a decisáo de publicar livros é resultado de um cálculo económico definido pela demanda, é importante que (ainda) existam editoras orientadas por estes principios. Náo é por acaso que o livro náo foi traduzido para o portugués.
A afirmagáo do anarquismo diante de outras formas de sociabilidade ganha ainda mais validade no momento atual, em que este é esvaziado de seu sentido e sua forga. Quando náo se identifica o anarquismo á baderna, ele é enquadrado como socialismo revolucionário, pacificando, assim, o debate. Harrison, a partir de sua fundamentagáo histórica e da apresentagáo dos embates entre socialistas e anarquistas, deixa claro quais sáo os elementos de ruptura entre as duas perspectivas.
A partir de formulagóes teóricas de individualismo e anarquismo, Harrison apresen ta críticas ás concepgóes socialistas de Estado e de organizagáo social. Seja pelo viés liberal de pensadores como Williain Godwin ou por meio do individualismo de Max Stirner, a argumentagáo do autor mostra que o Estado, independente de sua forma ou organizagáo, é um instrumento de repressáo e de protegáo da propriedade, seja este um Estado liberal ou socialista. "Todo Estado", afirma Max Stirner, "é despotismo, seja o déspota urn ou muitos".
Em uma época em que as discussóes preponderantes realizam-se em torno da reforma do Estado, Harrison é preciso em demonstrar que este tem sido reformado incessanteniente, e desde sua origem tem permanecido o mesmo. Para que o Estado sobreviva e possa se conservar, sáo necessárias reformas que tragam a idéia de um constante aprimoramento. Esta idéia também náo é recente. Maquiavel já dizia que um bom príncipe é aquele capaz de introduzir aquilo que já existe como se fosse a novidarle, e assim conservar o Estado e o poder do soberano.
A análise apresentada sobre o Estado e sua relagáo com o individuo náo perderá sua atualidade enquanto a sociedade estruturar-se sobre valores de autoridade e hierarquia. Harrison pretende, em seu livro, desconstruir a concepgáo socialista de revolugáo e liberdade, demonstrando que a dominagáo náo é determinada pelas condigóes daquele que está no controle do Estado, mas pela sua própria existencia. A liberdade no anarquismo náo se alcanga pela conscientizagáo das massas ou pela tomada do Estado, pela substituigáo da propriedade privada pela propriedade estatal ou pela mobilizagáo e participagáo de todos. A liberdade realizase na sua prática, por meio de associagóes livres e, principalmente, por uma experiencia libertária de vida.
edson topes 10
luce em travessias, memorias e percursos anarquistas
Margaretli Rago. Entre a liberdade e a historia: Luce Fabbri e o anarquismo contemporáneo. Sáo Paulo, UNBSP, 2001, 368 pp.
Nao se trata de uma biografía, mas de um diálogo entre a vida da libertária Luce Fabbri e sua produgáo intelectual, com a constituigáo do movimento anarquista na Itália e América Latina. Margareth Rago náo se aparta das conversas miúdas, inventando o passado, desvelando ínfimas, expressivas e incomensuráveis personalidades anarquistas e conquistas do movimento, em diferentes momentos históricos. A presenta dos fragmentos da memoria de Luce Fabbri, nao está para a construcáo fixa, linear e pronta de seu passado. Respeita-se ai a possibilidade caótica da reni ernorizagáo, com sua ternporalidade própria, imbricada em sentimentos e silencios e suas emergencias desconhecidas ou cío menos provocadas: "náo se trata apenas de contar a historia de uma anarquista, mas de contá-la libertariamente" (p. 26).
Entre os capítulos do livro, os aspectos mais marcantes da vida de Luce, sua relagáo com o pai, o anarquista Luigi Fabbri, a ascensáo do fascismo na Itália, perseguigóes, exilio, a luta no espago político, a poesía, o casamento, a experiencia espanhola — enfim, a Luce anarquista —; náo numa dispersáo que os isolam, mas interligados aos acontecimentos históricos do período entre guerras do século XX, ditaduras latinas e tantos anarquistas em tránsito nómade, entre lugares e costumes.
Para Margareth, boa parte da historia da tradigáo libertária encontra-se velada, interrompida pelo silencio, desconhece-se muito da produgáo intelectual de alguns anarquistas e as editoras insistem em náo os publicar. A narrativa da própria Luce, faz resgatar alguns anarquistas já de vozes caladas pelo tempo, apresentando tanto á pesquisadora como ao leitor a surpresa de ter de encontrá-los e ás suas vidas intensas, inquietas e arriscadas. Entre eles, o próprio Luigi Fabbri, que trabalhou insistentemente em diversas imprensas anarquistas, na Europa e América Latina; ou Concepción Fernandes, que Luce chegou a conhecer, manter em memoria, mas que sem nenhurn livro escrito, é citada apenas em notas da revista Argentina "Todo es Historia" em que é apresentada como "oradora, poeta excepcional e dirigente política de grande coeréncia".
A intensidade do iluxo de imigrantes á América I/a ti na, que possibilitou a existéncia do anarquismo em países como Uruguai, Argentina, Brasil, México, Chile e Perú, correspondía o fluxo de idéias. A "im igra gao francesa, italiana, portuguesa e espanhola, reunindo muitos ativistas internacionalistas, anarquistas e socialistas fugitivos de seus países, provoca, sem dúvida, uma intensa movimentagáo social entre 1870 e 1930" (p. 118). Esses anarquistas se aglutinaram em sindicatos, centros de cultura social, grupos de estudo, bibliotecas livres, teatro, imprensa, etc. Por todos os lados, o fascismo, as ditaduras e as perseguigoes policiais. Este é o percurso de Luce, que foge do fascismo de Bolonha, na Itália, exila-se com a familia no Uruguai, onde encontra um povo de tradigáo libertária que remete á década de 1870, quando ¡migrantes franceses provenientes da Comuna de Paris, já haviam criado a Segáo Uruguaia da Associagáo Internacional dos Trabalhadores (AIT), além de periódicos como El Internacional, La Revolución Soáal, La Lucha Operaría e La Federación de los Trabajadores, que já apresentavam os ideários anarquistas aos trabalhadores uruguaios; a fuga de Malatesta para Argentina e sua erráncia pela América já havia intensificado também a propaganda libertária.
Luce esteve altamente engajada na luta contra os totalitarismos, fossein eles os de Mussolini, Franco, Gabriel, Terra, ou as ditaduras militares das décadas de 1970 e 1980, atuando com amigos e colaboradores como Max Netlau, Abad de Santillán, HugoTreni, Maria Lacerda de Moura, Louise Michel, Nelly Ferreira, Ana Maria Gómez, Ermácora, e outras, em revistas, jornáis, fundos de apoio e inventando sociabilidades libertárias opostas ao autoritarismo, em momentos nos quais os anarquistas eram progressivamente derrotados tanto pela repressáo do Estado burgués como pelo comunismo. Nesta constelagáo de preocupagóes e radicalidades resistentes, confunde-se a historia do anarquismo e a historia pessoal de Luce Fabbri, como se formassem uma malha.
O anarquismo para Luce constitui-se como experiéncia intensa, náo só como resposta ao poder centralizado, mas como uma prática libertária que impregna a vida, corno constituicáo ética sofisticada. Luoe esforcou-se em dizer que o anarquismo náo comporta catecismo. Implica pequeñas construgóes coletivas e individuáis que ampliem a liberdade; e se em algurn momento arriscou definigóes é porque entende o anarquismo como um saber histórico que necessita atualizar-se sem apagar suas marcas. Sua concepgáo dispensa uma certeza metafísica de um final perfeito, absoluto: interessam-lhe os meios, o presente cheio de invengóes para construgáo de uma vida baseada na liberdade, solidariedade e justiga social, temas que Ihe sáo caros.
Luce e Margareth Rago se encontraram pela primeira vez por ocasiáo do Congresso "Outros 500. Pensamento Libertario Internacional", realizado em 1992 na PUC/SP. Margareth procurava figuras marcantes do anarquismo, quando estudava as "rnulheres anarquistas". Tornaram-se amigas. No livro encontramos algumas anarquistas marcantes, delicadas inquietas com a coragem de afirmar anarquismos.
ousar ser uns thiago rodrigues
Doria Accioly e Silva & Sonia Alem Marrach (orgs.). Mauricio Tragtenberg, uma vida para as Ciéncias Humanas. Sáo Paulo, Editora da Unesp/ Fapeap, 2001, 328 pp.
Mauricio, um homem de palavra. Da gramática académica antropofágica, do verbo combativo popular, das idéias flamejantes em duelos viscerais, do compromisso consigo. Em sala de aula, ñas páginas de jornal, na porta de fábricas, em teses, em livros, em casa: coeréncia heterodoxa. Este Mauricio salta, plural em si, desta coletánea de textos nascida de uma jornada de palestras, homónima ao livro, e realizada na Faculdade de Filosofia e Ciencias da UNESP de Marília, em 1999. Falecido, entáo, há pouco, Mauricio emerge das falas, forte, íntegro, vivo. Os textos trafegam entre depoimentos pessoais, muitas vezes emocionados e quase herméticos aquele que náo partilhou das experiencias relatadas, e reflexóes sobre a produgáo académica de Tragtenberg, sua trajetória intelectual, sua influencia na academia e sua postura nos embates políticos. Das trés partes em que se estrutura o livro, respectivamente, Memorias de um coruAuio, Contribuigao asciendas humanase Coeréncia entre teoría e prútica, o mosaico de contribuigóes dos autores compóe um Mauricio Tragtenberg firme e combativo, corajoso náo por ambicionar o status de mártir, mas por deliberada escolha existencial.
Somos apresentados ao autodidata, ausente da escola desde muito jovem e sem afinidade alguma pela prática comercial táo valorizada em sua familia. Longe da escola, mas imerso numa sede insaciável de saber, Mauricio náo se forma, ao contrario, se constrvi aproximando-se, com ouvidos interessadíssimos, de pessoas interessantes. Em "Mauricio Tragtenberg e a familia Abramo: algumas lembrangas" e "Mauricio Tragtenberg rra mocidade" temos acesso, pelos relatos de Lélia Abramo e Antonio Cándido, a fragmentos desse Mauricio jovem e sedento, devorador de livros na Mário de Andrade, participante ativo de discussóes políticas. Discussóes que vi brava m no campo da crítica social, da militáncia socialista, do aprendizado dos clássicos. Nutrindo-se do convivio com o velho socialista Herminio Sacchetta, Mauricio leu, discutiu e filtrou o saber produzido por 'marxistas malditos' como Rosa Luxemburg em tempos de stalinismo. Conheceu, também, os pensadores libertários: Proudhon, Bakunin, Kropotkin. Incómodo em ambientes sectários e exclusivistas, Tragtenberg era avesso a verdades, ao incontestável.
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A aversáo ao esquerdismo autoritário, conduziu Mauricio a produzir-se, como afirma Edson Passetti em seu artigo, um "socialista heterodoxo". "Intelectual herético", ressalta Ricardo Antunes, auténtico e, por essa razao, insuportável aos muitos sacerdotes das certezas. Ao conjugar Marx, Bakunin e Weber, Tragtenberg produziu uma ferina reflexáo acerca da burocracia no capitalismo contemporáneo, sem jamais descuidar da crítica contumaz á "universidade tecnocrática" formadora de "assessores de tiranos", "'recursos humanos' para a burocracia das empresas privadas e do Poder Público"1. A rigidez no pensar era ineoncebivel para alguém que aprendeu em liberdade, investindo em seus talentos para se tornar, como nos diz Paulo Resende em seu texto, um "intelectual sem cátedra".
Intelectual iconoclasta, Mauricio foi, também, militante singular. Sempre desconfiado das conviccóes intransigentes, Tragtenberg atrevia-se a náo se identificar com um partido, um sindicato, uma corrente de pensamento. No livro, relatos de ..José Carlos Morel e Antonio Ozaí da Silva, entre outros, nos apresentam um Mauricio Tragtenberg em permanente atividade política extra-académica. Ainda que presente em momentos importantes do novo sindicalismo cío final da década ele 1970, Mauricio náo exibia suas armas preferencialmente em palauques. Convicto de que um trabalhador só seria livre se náo delegasse a ninguém a tarefa de lutar por si, Mauricio Tragtenberg investíu com determinaeáo na defesa da autogestáo, da organizagáo sem representantes, da autonomía na reivinclicagáo por interesses locáis. Socialista libertário, Mauricio náo acreditava na elaboragáo vanguardista dos anseios proletarios. Assim, através da sua coluna "No Batente", publicada duas vezes por semana no Noticias Populares dos anos oitenta, o pensador-militante náo se arvorou a falar pelos trabalhadores, mas neutro sentido, fez daquele espaco uma vía para que assalariados pudessem falar e se ouvir. Postura anarquista contraria á cessáo de voz e inimiga das vanguardas clarividentes. A coluna, segundo Mauricio, "dirige-se a quem está 'no batente' e náo aqueles que estáo afastados da produgáo querendo falar em nome dos que trabalham" (apud Silva: 123). Em linguagem direta, um golpe certeiro em intelectuais oportunistas e sindicalistas pelegos.
Em discussáo que nos evoca o diálogo Deleuze-Foucault acerca do papel do intelectual, Mauricio eré na validade de um 'saber operário' completamente apto a entender e criticar sua realidade, fato que faz do intelectual instrumento para a luta dos trabalhadores, náo cabendo a interpretagáo e o refino dos supostos murmúrios pueris emitidos pelas massas. A visáo libertária acerca do indissociável duplo teoría/prática se fez impressa em reflexóes como A delinqüéncia académica e Saber e poder (ambos de 1979) e na sua atividade militante-jornalística. Mauricio via a pequenez das disputas por prebendas e títulos, postos e honrarías porque dispunha de olhos que aprenderam a enxergar 'de fora' e 'para fora' da academia, mesmo fazendo parte déla. Ou melhor, mesmo estando nela.
Podemos, certamente, desconfiar de um livro que homenageia quem náo dispunha o peito a comendas. Contudo, os textos se mostram, em sua grande maioria, corno relatos sobre uma grande vida. Vida que, sem dúvida, seduz e instiga o leitor que pouco conhece a obra de Mauricio Tragtenberg. De fato, as poucas páginas reproduzidas de seu livro Memórias deum autodidata no Brasil, deixam vontade por mais. Mauricio, o que náo falava pelos outros, ainda é mais saboroso quando fala, ele mesmo, de si. A coletánea de artigos, no entanto, náo pode ser considerada laudatoria: é homenagem, sim, mas sem devogáo. Os textos apresentam portas para que outros sedentos adentrem o mundo deste interessa-díssimo interessado que foi Mauricio Tragtenberg.
Nota
1 Tragtenberg em Burocracia e Ideologia, apud Gandini: 170, 172.
estrela de vestido azul e óculos escuros
solete oliveira
Stela do Patrocinio. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2001, 157 pp.
Stela rocha em menir. Stela estrela. Náo uma estrela aleatoria. Estrela do mar, assim ela designa seu nome. Estrela salgada de mergulhos rasos e profundos. Estrela na superficie da explosao de gases que Ihe imprimem cor.
Stela-livro. A publicagáo de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome é resultado do esforgo de ¡numeras pessoas que esbarraram em Stela em meio a sua existéncia livre, apesar de seu confinamiento manicomial durante trinta anos. O livro foi organizado, cuidadosamente, por Viviane Mosé, em nove partes intituladas por versos extraídos dos poemas falados de Stela, pois ela fazia poesía falando: "Um homem chamado cavalo é o meu norne"; "Eu sou Stela do Patrocinio, bem patrocinada"; "Nos gases eu me formei, eu tomei cor"; "Eu enxergo o mundo"; "A parede ainda nao era pintada de azul"; "Reino dos bichos e dos animais é o meu nome"; "Botando o mundo interno pra gozar e sem gozo nenhum"; "Procurando falatório" e "Stela por Stela". A Azougue-Editorial no gesto certeiro de argento-vivo presenteia a poesía com a presenga da arte de Stela. A sensibilidade do editor e poeta Sergio Colín foi tomada pela palavra-invengáo da estrela-salso-argento.
Stela-Baía da Guanabara. O leitor é arremessado para dentro da boca banguela da artista repleta de seu "falatório", como ela prefere dizer. A boca insubmissa que cospe psicotrópicos e ignoráncias. Ela sabe muito bem o que quer degustar. Gosta de cigarros, fósforos, bolachas ele chocolate, coca-cola e óculos de sol. Náo nasceu para pastar. Negra alta de porte altivo, caminhando elegantemente sobre o ossário do cárcere manicomial, enfeitada de panos deixando antever seus bragos pintados de branco. Espargindo ein seu redor o desconcertó do ar no es paco vazio.
Stela foi apanhada na juventude, arrancada de seu vestido azul quando debrugava no chao da Rúa Voluntários da Patria, ern Botafogo, na busca de seus óculos escuros. Stela foi apanhada aos 21 anos pelos voluntários da pátria e da normalidade da razáo. Deram seu diagnóstico. Construíram Stela comodoente mental: "personalidade psicopática mais esquizofrenia hebefrénica, evoluindo sob reagóes psicóticas". Internaram-na em 15 de agosto de 1962 no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro. Mas ela no seu vestido azul só quería achar seus óculos escuros para ir até a Central do Brasil e depois a Copacabana. Seus óculos escuros quebraram. Em 1966 foi transferida para a Colonia Juliano Moreira, onde permanece até sua morte, em 1992. Acometida de uma hiperglicemia grave amputam-lhe uma perna. Stela, a partir de entáo, se nega a comer e a falar. Seu corpo é tomado por uma infecgáo. Arrancaran! seus dentes, sua perna, seu vestido azul e seus óculos escuros.
Stela falatório-artista. Stela se negou a morrer todas as vezes que a mataram. Sua poesía é uma evidencia disto. Evidencia no sentido atribuido por Artaud ao afirmar que só acreditava ñas evidencias capazes de agitar sua medula e suas visceras. A arte de Stela convulsiona os sentidos e subverte a linguagem. Contradiz a convengáo formal que provoca a cisáo entre a língua que fala e aquela que escreve. O dito do espago grafado do papel jotra de sua boca no exercício de uma fala que náo cessa de dizer. Escrita-gesto de saltos dos mil ritmos impressos por seu diafragma. Linguagem livre. Aboligáo da sintaxe. Língua e estómago exigentes. Estes eram seus instrumentos, aliados de sua paixáo pela vida.
Stela-inventa-corpo. De gestos precisos faz nascer língua, pernas, cabega, pés, estómago. Milbichos reinventados. Distante e próxima do grito selvagem no silencio do nada. Repleta no vazio transbordante da guerra incessante contra paredes brancas, paredes pintadas de azul. Guerra declarada contra o confinamento, em favor da vida. Stela nao se engana, na batalha entre rázoes soberanas em nome da verdade centralizada, ela afirma: "só o dentista vence outro cientista". Stela intensifica suas cores na tessitura escatológica de quem se sabe viva. Seu gesto-forca sofistica a crueldade. Coragem audaz na ultrapassagem do gozo. Instante átimo no vácuo de sua boca antropofágica. Engolir Stela é um convite e um risco, para quem, como ela, ainda se sabe vivo.
Puhliccugoes doNúcleo de Sociabilidade Libertária, do Program a de Estudos Pós-Craduados em Ciencias Sociais da PUC-SP.
Publicado eletrónica mensal. 1999-2002.
Libertarias, 1999 Foucault-Ficó, 2000
1. a anarquia Errico Malatesta
2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston
3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.
4. municipalismo libertario Murray Bookchin
5. reflexoes sobre a anarquia Maurice 3oyeux
6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky
7. a bibliografía libertária - um século de anarquismo em língua portuguesa Adelaide Gongalves & Jorge E. Silva
8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin
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9. deus e o estado Mikhaii Bakunin
10. a anarquía: sua filosofía, seu ideal Piotr Kropotkin
11. escritos revolucionários Errico Malatesta
12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares
13. do anarquismo Nicolás Walter
14. os anarquistas e as elei^des Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau, Grave, Vidal, 2o D'Axa, Bellegarrigue & Cubero
15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Bretón, Schuster, Kyrou & Legrand
16. nestor makhno e a revolugáo social na ucrania Néstor Makhno, Alexandre Skirda e Alexandre Berkman
17. arte e anarquismo Pietro Ferrua, Michel Ragon, Gaetano Manfredonia, Dominique Berthet e Cristina Valenti
18. análise do estado - o estado como paradigma do poder Eduardo Colombo
19. o essencial proudhon Francisco Trindade
20. escritos contra marx Mikhaii Bakunin
Pierre Joseph Proudhon. Do Principio Federativo. Sáo Paulo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.
Anarquismo no Banco dos Réus (O) (1969-1972) - Edgar Rodrigues - 206 P. Ilust.
Anarquismo e Feminismo - Margareth Rago - 32 P. Anarquismo ou Marxismo: uma opgáo política - Gilberto Green - 200 P.
Anarquismo - uma Introdugao Filosófica e Política -
Silvio Gallo - 100 P.
Anarquismo á Moda Antiga - Edgar Rodrigues - 48 P. Anarquismo Hoje (O) - Jorge E. Silva - 80 P. Atuagáo Libertária no Brasil - Oscar Farinha Neto - 104 P. Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia (O) - Edgar Rodrigues - 340 P. Ilust.
Bartolomeu & Nicolau - Olavo Cabral Ramos Filho - 24 P. Banqueiro Anarquista (O) - Fernando Pessoa - 56 P. Colonia Cecilia - (Um Pouco de Ideal e de Polenta) -
(Teatro) - Renata Pallottini - 72 P.
Companheiros (Os) - Edgar Rodrigues - Vol. 1, 2, 3, 4, 5. Construgáo da Anarquia - Gilbert R. Ledon - 56 P. Despindo a Política: Notas Para Uma Crítica das Visóes Políticas do Mundo - Jean-Michel Michelena - 56 P. Dois Textos da Maturidade - Errico Malatesta - 16 P. Ooutrina Anarquista ao Alcance de Todos (A) - José Oiticica - 152 P.
Educagao Libertária: textos de um Seminário - María Oly Rey (Org.) e Outros - 208 P.
Democracia no Trabalho - Harold B. Wilson - 176 P. Entre Ditaduras (1948 - 1962) - Edgar Rodrigues - 304 P. Ilust.
Esbogo para uma Historia da Escola no Brasil - Algumas Reflexoes Libertérias - Diversos Autores - 128 P.
Foucault e o Anarquismo - Salvo Vaccaro - 40 P. Florentino de Carvalho - pensamento social de um anarquista - Rogérío N. Z. Nascimento - 208 P. Guia dos Cornudos - Charles Fourier - 24 P. Homem em Busca da Terra Livre (O) - Edgar Rodrigues -272 P.
Imprensa Libertária do Ceará (1908 - 1922) (A) -Adelaide Gongalves e Jorge E. Silva - 316 P. Individuo na Sociedade (O) - Emma Goldman - 40 P. Libertários (Os) (José Oiticica, Maria Lacerda de Moura, Neno Vasco, Fábio Luz) - Edgar Rodrigues - 218 P. Ilust. Moral Pública & Martirio Privado - A Colonia Penal da Cleveland ¡a do Norte - Alexandre Samis - 88 P. Nova Aurora Libertária (A) (1945-1948) - Edgar Rodrigues - 232 P. Ilust.
12 Provas da Inexistencia de Deus - Sébastien Faure - 80 P. Pedagogía Libertária na Historia da Educagáo Brasileira
(A) - Neiva B. Kassick E Ció vis N. Kassick - 36 P.
Poder e Dominio: uma visáo anarquista - Fábio López
López - 200 P.
Política da Libertario Urbana - Stephen Shecter - 200 P. Porque nao Eleger Governantes - Marcos Cesar (Grito) -72 P.
Pós-Estruturalismo e Anarquismo - Todd May - 40 P.
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deste modo, amigos meus, poder-nos-emos defender, pelo menos por algtrni tempo das duas terríveis pestes que nos ameacam: o tédio profundo do homem e a profunda compaixao pelo
homem
Nietzsche
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1 Sécuio XIX, autor de um único ivro e alguns escntos esparsos anarquizantes. Textos dispersos. Lisboa, Via Editora, 1979. Publicado originalmente em 1844, na Gazeta Mensal de Berlim, de Ludwig BuhL Tiadu^áo para o portugués de J. Bragan^a de Miranda.
2 Editor da Revista Utopia e professor na Universidade Técnica de Lisboa.
3 Pesquisador do Nu-Sol. Professor do Centro de Educagao da Universidade Federal de Santa Maiia, rnestre em Educagao pela UFSC e doutorando no PEPG em Ciencias Sociais na PLJC/SP. Desenvolve pesquisas sobre estrategias educacionais nao escolarizadoras no Brasil contemporáneo.
4 Jaime Cubero participou da reabvajao do Centro de Cultura Social de Sao Paulo, nos anos 80. Aglutinou anarquistas e libertarios e se tornou referencia para militantes e pesquisadores, acolhendo-nos com generosidade, humor e contundencia (Nota dos Editores). Palestra proferida na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro em Agosto de 1991.
5 Mestrando em Ciencias Sociais na PUC-SP e integrante do Centro de Cultura Social de Sao Paulo.
6 Professor da Universidad de Buenos Aires, editor da revista Artefacto e autor de diversos livros sobre temas anarquistas. Tradugáo de Natalia Montebellc.
7 Mestre em ciencias sociais pela PUC-SP e pesquisadora do ]Slu-SoL Este artigo tem por referencia minhadissertagao demestrado, Federalismo e anarquismo' uma cartografía dos principias de autandade e liberdade, apresentada á Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo em 2000.
8 Professor do Programa de Pós-Graduagao em Ciencias Sociais PUC/SP. Co-orgamzador, com Edson Passetti de Proudhon. SP, Ed. Atica, 1985.
9 Mestrando em Ciencias Sociais pela PUC-SP e pesquisador do Nu-Sol.